26 de outubro de 2015

As Mil e Uma Noites: Volume 3, O Encantado



O terceiro volume de As Mil e Uma Noites (Miguel Gomes, 2015) começa com um prólogo protagonizado por Xerazade, a narradora das histórias que dão corpo a esta trilogia. Apesar de fluir demasiado ao sabor de ideias narrativas fugazes e superficiais, esta secção possui uma componente auto-reflexiva interessante: o cansaço de Xerazade e as dúvidas sobre se conseguirá continuar a aplacar durante muito mais tempo a fúria sanguinária do rei Xariar põem em causa o próprio dispositivo ficcional em que a trilogia assenta. Desgraçadamente, essa fadiga e descrença parecem contaminar o resto do filme. Ao contrário dos dois volumes anteriores, este é completamente dominado por uma única história (se exceptuarmos o episódio breve e dispensável A Floresta Quente): a da comunidade de passarinheiros que, entre Chelas e a Alta de Lisboa, se dedicam à captura e ao treino de tentilhões que se defrontam em concursos de canto renhidos. O registo, entre o documentário e a ficção, é aquele a que Gomes nos habituou; os hábitos, rituais e disputas dos criadores são mostrados com detalhe e empatia; não faltam momentos deliciosos, como a explicação sobre como a antiga arte de ‘virar’ um tentilhão (isto é, ensiná-lo a cantar) beneficiou com as novas tecnologias  (CDs, MP3…). Porém, o episódio arrasta-se muito para lá do interesse que consegue suscitar. Pior do que isso: pela primeira vez nesta trilogia, a liberdade narrativa e a criatividade, que chegam a ser intoxicantes nos volumes anteriores, dão lugar a uma certa complacência. A ausência de ecos da situação política e social do Portugal de hoje (os que existem são forçados, como a manifestação das forças de segurança) contrasta também com volumes um e dois. Mas nada disto chega para anular a impressão de que estas Mil e Uma Noites foram uma das aventuras mais ambiciosas e loucas do cinema português dos últimos anos.

19 de outubro de 2015

Caprice


A Festa do Cinema Francês já conheceu melhores dias em Lisboa. O Cinéfilo Preguiçoso lembra-se não só de sessões esgotadas, com a presença do realizador ou de algum actor emblemático, mas também de olhar para o programa e concluir tristemente que não ia ter tempo para ver todos os filmes que lhe interessavam. Este ano só um filme pareceu suficientemente convidativo: Caprice (2015), realizado por Emmanuel Mouret. Não se percebe muito bem por que razão este realizador (nascido em 1970) não é mais reconhecido pelo público português. Os seus filmes evocam imediatamente duas influências fortíssimas: Woody Allen e Éric Rohmer. Certas sequências e alguns temas deste Caprice parecem extraídos de filmes do realizador nova-iorquino: a relação entre um homem desastrado e uma mulher belíssima, mas aparentemente inatingível; os mal-entendidos e os actos irracionais da vida sentimental de pessoas com idade para terem juízo; conversas em restaurantes ou cafés; mesmo a presença do realizador como protagonista dos seus filmes é alleniana. A influência de Éric Rohmer aparece aqui filtrada por um tópico mais propriamente proustiano: a ideia de que as relações amorosas mais duradouras são decididas por um acaso. Rohmeriano é também o contraste entre as duas personagens femininas que dividem o protagonista: uma delas é «a escolhida», uma actriz famosa e mulher perfeita que o protagonista há muito desejava à distância, mas com quem as coisas parecem não funcionar com a intensidade previamente imaginada; a outra é «a encontrada», uma jovem aspirante a actriz, imprevisível e perigosa, que, contudo, não só percebe que a relação entre os dois seria a combinação perfeita, como também acaba, através de uma edição cuidadosa, por transformar num sucesso a peça aborrecida escrita pelo protagonista. Ainda que herdeiro destas influências fortes, Emmanuel Mouret produz um cinema único que, na sua aparente leveza e bom humor, nos deixa sempre a pensar em temas sérios, como os meandros e as armadilhas do amor. Este filme tem estreia prevista em sala.

12 de outubro de 2015

5 x 2



Uma vez que a estreia em Portugal do último filme de François Ozon, Une Nouvelle Amie, tem vindo a ser repetidamente adiada – enésimo exemplo da falta de respeito que certos distribuidores demonstram pelos espectadores –, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu rever 5 x 2 (2004) e não esqueceu a devida vénia à boa alma que inventou o DVD. Ozon é um cineasta hiperactivo e ecléctico cujo apetite por temas controversos lhe trouxe alguma fama de irreverente e até revolucionário. Contudo, a sua filiação remete-nos para o melodrama e para a Nouvelle Vague, e a sua abordagem e registo são essencialmente clássicos e muito devedores do cinema de género (thriller, musical). 5 x 2 pode ser descrito como o retrato de um casamento frágil. O facto de o filme ser narrado ao arrepio da sequência cronológica dos eventos nada acrescenta ou retira aos méritos ou impacto do filme, mas tem a vantagem de anular, logo à partida, qualquer interrogação sobre o desfecho, permitindo ao espectador concentrar-se nas personagens e no enredo – que, diga-se em abono da verdade, não requer grande dose de perspicácia. Se exceptuarmos Valeria Bruni-Tedeschi, excelente como sempre, o que fica de 5 x 2 é a história banal de uma mulher e de um homem que se unem, têm um filho e se separam sem que qualquer razão evidente o justifique. Talvez Ozon pretendesse precisamente erigir essa arbitrariedade em tema principal, mas o resultado final fica claramente aquém de Swimming Pool, Sous le Sable, Jeune & Jolie ou Dans la Maison.

5 de outubro de 2015

Haewon e os Homens




‘O tempo resolve tudo’, diz, numa das suas últimas cenas, a protagonista do filme Nobody’s Daughter Haewon (2013) (em francês, Haewon et les Hommes), realizado por Hong Sang-Soo. Se nem sempre resolve tudo, nos filmes de Hong o tempo traz pequenas mudanças e evoluções psicológicas. Isto sucede mau grado o tratamento pouco canónico que é dado à cronologia dos seus filmes. Também neste caso abundam as elipses, as bifurcações, as redundâncias e os limbos (por exemplo, os sonhos de Haewon), à semelhança do que se verifica em The Day He Arrives (2011), abordado pelo Cinéfilo Preguiçoso há três semanas. Outras semelhanças são a personagem do realizador de cinema tornado professor pela força das circunstâncias e o ambiente urbano de uma Seul discreta e isenta de traços distintivos, mas singularmente propícia a encontros e coincidências. Contrariamente a esse e a outros filmes de Hong, surge neste uma protagonista feminina forte e intensa cujo processo de assumir as rédeas da sua vida é o motor da narrativa. A maneira como Haewon enfrenta as suas relações sentimentais e as opiniões alheias, ou como deixa que o acaso e a vontade a conduzam a algo parecido com uma reconciliação com o mundo, faz lembrar Marie Rivière em O Raio Verde (1986), nesta que é uma das obras mais rohmerianas de um dos mais rohmerianos cineastas activos, tanto pelo modo como a protagonista se vai definindo através de confrontos verbais com outras personagens, como pela clarificação gradual da sua indecisão relativamente aos próprios desejos. Nobody’s Daughter Haewon e The Day He Arrives estão reunidos numa edição em DVD da France Inter integrada na colecção 2 Films de, que inclui obras de realizadores como Chantal Akerman, Philippe Garrel, Nanni Moretti ou Werner Herzog. Fica a sugestão.