26 de janeiro de 2020

Conto de Cinema | Hotel à Beira-Rio


Se dúvidas houvesse, a retrospectiva organizada pela Cinemateca demonstrou aos espectadores portugueses que Hong Sang-Soo é, inquestionavelmente, um dos grandes cineastas contemporâneos. É verdade que certos elementos recorrentes nos filmes deste realizador mais conhecidos em Portugal – a insistência nas coincidências, numa estrutura em espelho com imperfeições e numa certa superficialidade que afinal é só aparente – podem gerar alguma exasperação e um certo cepticismo. Nesta retrospectiva, no entanto, passaram filmes que nos forneceram uma imagem mais completa da sua obra, ajudando-nos a compreendê-la melhor. Um deles foi Conto de Cinema (2005), que deixou claro que as metades dos filmes de Hong Sang-Soo são emparelhadas para mostrar que os acontecimentos da vida, mais do que serem determinados por elos causais, decorrem ao som de uma espécie de música do acaso composta por ecos e repetições. Poderíamos até dizer que, em Hong Sang-Soo, o cinema ajuda a sobreviver na medida em que repete impulsos para a morte (figurados, em Conto de Cinema, nas tentativas de suicídio e nas doenças quase mortais de algumas personagens) para os sublimar. Conto de Cinema é um filme sobre a necessidade de deixarmos para trás precisamente as coisas que se repetem, se queremos viver melhor. Dir-se-ia que Hong Sang-Soo repete para “perceber melhor o filme” e depois reformular a música dos acontecimentos. Mais recente, também Hotel à Beira-Rio (2018), último filme do realizador até à data, nos revelou uma faceta diferente da sua obra, apontando para novos caminhos. Neste caso, as repetições e os ecos (evidentes na organização das personagens secundárias em dois pares) são integrados na estrutura do filme sem divisões, não implicando a habitual fragmentação em metades sucessivas. Um poeta, preocupado com a morte apesar de parecer de boa saúde, convoca os seus dois filhos para um encontro num hotel misterioso onde está hospedado. No mesmo sítio estão alojadas duas raparigas que funcionam como uma espécie de coro ao longo do filme, acompanhando de longe o protagonista (com quem falam poucas vezes, incluindo num momento belíssimo numa paisagem cheia de neve acabada de cair) e comentando os acontecimentos, sem nunca interagirem com as outras personagens. Não há nada de superficial neste filme, embora tudo nele seja simples. As próprias conversas entre pai e filhos, na medida em que correspondem a uma espécie de balanço da vida do primeiro, são comoventes na sua tranquilidade e sabedoria e justificam a comparação com Ozu que por vezes é feita quando se discute o cinema de Hong. Os equívocos e o desassossego dos filmes anteriores do realizador foram assimilados. Aqui está tudo reduzido ao essencial, como se pelo menos este protagonista de Hong Sang-Soo tivesse percebido bem o filme em que participa – algo que o protagonista de Conto de Cinema se esforçava por fazer, com sucesso medíocre. Como pode um filme tão simples ter tanto impacto visual e emocional? Prodígios do cinema!


Outros filmes de Hong Sang-Soo no Cinéfilo Preguiçoso: A Virgem Desnudada pelos Seus Pretendentes (2000); The Day He Arrives (2011); Haewon e os Homens (2013); Right Now, Wrong Then (2015); On the Beach at Night Alone (2017); O Dia Seguinte (2017).

19 de janeiro de 2020

A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty


Gravado na RTP2 e visto agora, o filme A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty (1972) marca o início da longa colaboração entre Wim Wenders, aqui a realizar a sua segunda longa-metragem, e o escritor austríaco Peter Handke, que colaborou no argumento e é o autor da novela com o mesmo título em que o filme se inspira. Vários elementos deste filme voltariam a ser explorados por Wenders em obras posteriores, sobretudo na década de 70, por exemplo em Alice nas Cidades (1974) ou Movimento em Falso (1975): a errância da personagem principal, a aleatoriedade dos encontros e situações, a fugacidade das relações humanas. Outro aspecto que já se encontra aqui são as referências cinéfilas, por vezes quase à beira do fetichismo: não se trata de referências explícitas, mas sim de elementos ou ambientes que se associam a géneros como o filme policial ou o road movie, como as omnipresentes jukeboxes. Em todos os filmes de Wenders paira a desilusão pelo facto de a vida ser menos interessante do que o cinema; neste, parecem reunidos os ingredientes para um policial excitante, com um crime, um culpado, um inquérito e a expectativa de saber se o criminoso será capturado; esta expectativa, no entanto, vai-se gorando com o correr do tempo (para citar um título do próprio Wenders). O tédio e a inconsequência invadem o enredo; o espectador vê-se perante um objecto difícil de classificar. A intriga cabe numa frase (um guarda-redes, depois de ser expulso de um encontro, deambula por Viena, estrangula uma mulher e viaja até uma aldeia onde restabelece o contacto com uma antiga namorada). Não há o mínimo esboço de exploração psicológica; não há clímax nem evolução. Alguns pormenores bizarros (como uma misteriosa queda de abóboras) sugerem uma alienação psíquica da personagem, mas são demasiado esparsos para sustentarem leituras baseadas em perturbações mentais, sonhos ou visões do protagonista. A metáfora futebolística enunciada por este, que descreve o guarda-redes como alguém à margem do jogo (ou da vida) cuja missão é antecipar as intenções dos outros jogadores e que por isso pode dar a impressão de agir erraticamente e sem iniciativa, tanto pode ser um ponto de partida para uma análise do filme como não passar de mais uma pista falsa. O interesse do filme A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty reside sobretudo na sua recusa de ser aquilo que poderiam esperar dele. Esta recusa, porém, está longe de ser uma desresponsabilização criativa ou uma abdicação: funciona como uma redução ao absurdo cheia de potencial criativo, como se comprovou em muitas das obras que Wenders (com ou sem Handke) realizou ao longo da carreira.

Sobre outro filme resultante da colaboração entre Wenders e Handke: Os Belos Dias de Aranjuez (2016).

12 de janeiro de 2020

In a Lonely Place


Visto em DVD e baseado num romance de Dorothy B. Hughes, In a Lonely Place (1950), de Nicholas Ray, é sobre um argumentista de Hollywood estafado e com tendência para ser violento (Dix Steele/Humphrey Bogart – num papel excelente que lhe serve como uma luva) que se vê envolvido numa história estranha de homicídio durante a qual conhece uma mulher por quem se apaixona (Laurel Gray/Gloria Grahame). In a Lonely Place é muitas vezes associado aos filmes Sunset Boulevard, de Billy Wilder, e All About Eve, de Joseph Mankiewicz, ambos realizados no mesmo ano, devido à sua visão desencantada sobre o meio do cinema, corporizada na personagem do actor alcoólico em declínio que vai aparecendo ao longo do filme enquanto alter ego não só do protagonista mas também do próprio cinema de Hollywood. Tudo começa com um livro que Dix Steele não tem vontade de ler mas que lhe pedem que adapte ao cinema. Por acaso, a menina do bengaleiro comenta que leu o livro todo. No dia seguinte, os jornais anunciam: menina do bengaleiro morta depois de argumentista a levar para casa para ela lhe contar uma história. (Coisas que acontecem quando se faz tudo para evitar ler maus livros.) O homicídio por resolver, de que Dix se torna automaticamente suspeito, permanece obsessivamente na cabeça de todas as personagens, a ponto de a relação dos protagonistas se tornar uma representação do arquétipo cinematográfico do casal em que um dos elementos suspeita que o outro é um assassino, podendo a qualquer momento matá-lo a ele também, uma figuração da ideia segundo a qual as pessoas que mais amamos são precisamente as que mais nos podem magoar ou mais facilmente nos podem destruir. Só o protagonista reage como parece reagir a tudo o que acontece na sua vida: como se se tratasse de um acontecimento susceptível de integração num argumento. Dix Steele chega mesmo a descrever a morte da rapariga como um passo essencial da sua relação com Laurel Gray: “Há muito tempo que te procurava. Uma rapariga foi morta e encontrei-te.” Num dos momentos mais interessantes do filme, ele explica que uma boa cena de amor tem de ser sempre sobre outra coisa além disso e assim acontece sempre que este casal está em cena: neste filme, o amor é indissociável do medo e da desconfiança e a linguagem corporal de Dix e Laurel contradiz muitas vezes o que é dito nos diálogos. Todo o filme explora o potencial mortífero do protagonista; ainda que este ao mesmo tempo seja retratado como homem apaixonado e meigo, o espectador e as personagens nunca perdem o receio de um dos seus acessos de agressividade redundar em morte. Deste modo, personagens e espectadores estão sempre na posição de argumentista, tentando adivinhar o que poderá passar-se a seguir e nunca podendo descontrair completamente. Por todos estes motivos, In a Lonely Place é um filme inteligente, mas, talvez pela sua associação (ainda que irónica) aos códigos do film noir e ao contexto de uma época específica de Hollywood, também parece mais datado do que On Dangerous Ground (1952), um filme que explora temas mais intemporais.