Quando pensamos em filmes que se passam em comboios, de quais nos lembramos imediatamente? O Cinéfilo Preguiçoso pensa logo em North by Northwest (Alfred Hitchcock, 1959), Antes do Amanhecer (Richard Linklater, 1995) e Darjeeling Limited (Wes Anderson, 2007). (Claro que há mais filmes em comboios, incluindo Europa, de Lars von Trier, e Hitchcock tem outros filmes em que este meio de transporte desempenha um papel mais importante, mas estes títulos são os primeiros que lhe ocorrem.) Frequentemente, os filmes em comboios acompanham personagens elegantíssimas que têm conversas espirituosas e marcantes, às vezes logo depois de se conhecerem. Em Compartimento Número Seis (Juho Kuosmanen, 2021), visto no videoclube de uma operadora de telecomunicações, nem as personagens são elegantíssimas, nem as conversas são apaixonantes. Adaptando um romance de Rosa Liksom (2011) com o mesmo título, este filme, que partilhou o Grande Prémio de Cannes com O Herói de Asghar Farhadi, conta a história de Laura, uma estudante finlandesa de arqueologia que em fins da década de 1990 faz uma viagem pela Rússia para aprender a língua. Incentivada por uma namorada que teve em Moscovo, decide ir de comboio até Murmansk, para ver os petróglifos, umas inscrições em rochas datadas do segundo ou terceiro milénio antes de Cristo. A viagem corre mal logo desde o princípio, quando a namorada decide não ir e Laura percebe que terá de partilhar durante vários dias o compartimento do comboio com Lyokha, um mineiro russo de aparência grosseira. Obviamente, estas duas personagens tão diferentes vão acabar por simpatizar uma com a outra, mas, em contraste com o que acontece num filme como Antes do Amanhecer, em que os protagonistas de ar angelical vivem uma aventura inesquecível, as personagens de Compartimento Número Seis parecem feias e antipáticas, e o realizador prefere explorar os contratempos, imprevistos e contrariedades que se desenrolam no ambiente claustrofóbico do comboio. Esta segunda longa-metragem de Juho Kuosmanen, realizador finlandês nascido em 1979, tem algumas características interessantes: a reconstituição da atmosfera da década de 1990, com o walkman e a câmara de vídeo da protagonista, cabines telefónicas em vez de telemóveis, e canções como Love is the Drug, dos Roxy Music, e Voyage Voyage, de Desireless, na banda sonora; o contraste entre a claustrofobia do comboio e os espaços vastos e vazios da Rússia; a ideia de que nem sempre aquela que parece a vida mais perfeita e com mais citações artísticas e literárias é a forma de existência mais genuína; a capacidade do realizador de captar a corrente subterrânea de entendimento entre os protagonistas, quando à superfície tudo aponta para o contrário; e também o facto de os espectadores não chegarem a ver os petróglifos – como acontece em tantas viagens, a importância do objectivo inicial dilui-se pelo caminho. Ainda assim, o facto de estas opções estéticas mais realistas não tornarem este filme melhor do que, por exemplo, o de Linklater lembra-nos que o cinema não é necessariamente um instrumento realista; pelo contrário, é uma forma de exercício de liberdade estética. Será que daqui a alguns anos vamos recordar Compartimento Número Seis? É duvidoso; depende do que o realizador fizer a seguir. Se recordarmos, talvez seja por se distinguir destes modos dos outros filmes que se passam em comboios.
26 de junho de 2022
19 de junho de 2022
Apresentação | Our Sunhi
12 de junho de 2022
Erotikon | Angel
O Cinéfilo Preguiçoso aproveitou para ver a Double Bill desta semana na Cinemateca, onde foram exibidos os filmes Erotikon (Mauritz Stiller, 1920), com acompanhamento ao piano de João Paulo Esteves da Silva, e Angel (Ernst Lubitsch, 1937). Ambos giram em torno de um casal com um marido totalmente obcecado com a profissão e uma mulher que tem de se distrair de outros modos. A ironia instala-se logo no início de Erotikon, quando a mulher, depois de deixar à porta da universidade o marido, entomólogo famoso, puxa o caderninho em que apontou as tarefas do dia – 1. manicure; 2. ensinar o comerciante de peles a ser mais paciente; 3. subir aos céus com o barão Félix –, que têm de ser entendidas mais literalmente do que no início parece. Sempre hilariantes e surpreendentes, as ilustrações dos intertítulos, muitas delas de inspiração entomológica, dão o tom para este filme com personagens que têm aspirações existenciais e sentimentais surpreendentemente modernas. Estabelece-se um contraste entre o ambiente romântico, trágico e grandioso da ópera e do bailado, associado à mulher, e a atmosfera burguesa, em que se insere o marido. Para perturbar este esquema, no entanto, mesmo o marido dá mais importância às preocupações universitárias do que às convenções burguesas: recusa-se a participar num duelo para defender a honra enquanto não terminar o estudo dos escaravelhos azuis. Indiferentes a quaisquer preocupações associadas à respeitabilidade e aos bons costumes, todas as personagens acabam por conseguir o que querem através da substituição do par inicial por um quadrado. Tanto Erotikon como Angel adaptam textos prévios – o primeiro, a peça A Raposa Prateada, do húngaro Franz Herzeg; o segundo, uma peça do também húngaro Melchior Lengyel. No segundo caso, fazem-se algumas elisões e cortes no que toca ao passado e comportamento da protagonista que são concessões à moralidade vigente. Apesar disso, Angel mantém uma complexidade muitíssimo interessante, graças tanto à extraordinária encenação, que joga habilmente com quem sabe o quê, como ao impressionante desempenho de Marlene Dietrich, capaz de representar duas personagens diferentes numa só – por um lado, uma Lady casada com um político respeitadíssimo; por outro, uma mulher misteriosa que tenta enganar o tédio de modo sofisticado. Nesta história sobre um triângulo em que há dois homens que sentem uma proximidade inesperada ainda antes de descobrirem que já partilharam mais do que uma mulher, a surpresa é o facto de a personagem típica da mulher adúltera entediada ter afinal uma personalidade bem diferente das habituais Madames Bovary e Annas Kareninas. Devido à complexidade da história e ao carácter inesperado de certas situações, os espectadores poderão recordar um filme como Madame de… (Max Ophüls, 1953), em que também há um casal com uma relação pouco convencional. Tanto em Erotikon como em Angel, temos personagens que inicialmente parecem corresponder a determinados estereótipos, mas depois se individualizam pelas suas escolhas. Por não ser só irónico ou satírico, Angel é um filme muito melhor, mas continua a ser divertido ver Erotikon mais de cem anos depois da sua estreia, e não só por ser considerado a matriz das comédias de alcova de Hollywood da década de 1920; aliás, o próprio Stiller emigrou da Suécia para a América seis anos depois deste filme, embora da sua curta carreira além-Atlântico não conste uma única comédia.