24 de novembro de 2024

Jardins de Pedra

A acção de Jardins de Pedra (Francis Ford Coppola, 1987), visto esta semana em DVD, situa-se mais ou menos na época de Apocalypse Now (1979) e explora o mesmo tema principal: a guerra do Vietname. Enquanto em Apocalypse Now se mostra a realidade da guerra de forma brutal e contínua, em Jardins de Pedra quase tudo se passa fora de campo, à distância. As personagens principais são militares integrados num batalhão que, no cemitério de Arlington, dispensa aos que morreram em combate as honras militares que o protocolo determina. Apesar tanto da impressão de ordem e tranquilidade marcial que impera como da distância entre a costa leste dos E.U.A. e o teatro de operações, é sempre a guerra que determina os actos, pensamentos, dúvidas e aspirações das personagens. A relação entre o sargento Hazard (James Caan) e o jovem idealista Willow (D.B. Sweeney) é regida pela tensão entre o cepticismo do primeiro, que já não acredita nesta guerra, e o voluntarismo do segundo, convencido de que o lugar de um soldado é na linha da frente. Quer o perfil destas personagens, quer o sentimento paternal que Hazard nutre para com Sweeney são bastante típicos de filmes de guerra. Apesar do carácter atípico do cenário, em que a dimensão cerimonial e os exercícios substituem a violência da guerra real, muitas das situações são também comuns a numerosos filmes: o ambiente de quartel, a masculinidade tóxica, as piadas pueris, as personagens femininas como elo de ligação ao mundo extramarcial. O principal problema de Jardins de Pedra talvez seja a incapacidade de desenvolver as personagens para lá do estereótipo. O argumento de Ronald Bass, baseado num romance de Nicholas Proffitt, esgota-se quase sempre na sua função de veículo para ilustrar as situações e relações entre as personagens. Isto poderia ser adequado para um filme mais ousado do ponto de vista formal, mas Coppola, que nunca foi avesso à experimentação – relembrem-se filmes como Do Fundo do Coração (1982), Rumble Fish (1983) ou o recente Megalopolis (2024) –, assina aqui um filme pautado pela sobriedade e eficácia. A impressão que resulta disto tudo é de competência, mas também de algum convencionalismo. Jardins de Pedra vale essencialmente pela maneira como serve de contrapeso a Apocalypse Now e também por ilustrar o poder que a carnificina do Vietname teve para destruir e agitar vidas, no local e à distância.
 
Outros filmes de Francis Ford Coppola no Cinéfilo Preguiçoso: The Outsiders (1983); Tucker Um Homem e o Seu Sonho (1988); Tetro (2009); Megalopolis (2024).

17 de novembro de 2024

Estranha Sedução

Há algum tempo que o Cinéfilo Preguiçoso queria ver Estranha Sedução/The Comfort of Strangers, de Paul Schrader (1990, disponível em DVD). É um filme com várias características que, logo à partida, suscitam curiosidade: passa-se em Veneza; é realizado por Paul Schrader; adapta um romance de Ian McEwan (1981); e tem não só argumento de Harold Pinter, mas também banda sonora de Angelo Badalamenti, além de um elenco com Christopher Walken, Helen Mirren, Natasha Richardson e Rupert Everett. O resultado da combinação de todas estas componentes é, no mínimo, invulgar. O argumento chegou a Schrader já pronto, como projecto em busca de um realizador. Em entrevistas, Schrader faz questão de salientar que o filme conjuga as sensibilidades de três autores. Na obra de McEwan, salienta o desconforto que as imagens sem regras do inconsciente podem suscitar. Em relação às personagens de Pinter, faz notar que usam a linguagem para disfarçar as emoções, falando de tudo menos do que as preocupa e dizendo coisas que nada têm que ver com o que querem dizer. Sobre o seu próprio trabalho, alega que se limitou a criar uma superfície bela e irresistível que, à semelhança da superfície amável da linguagem, disfarça realidades mais perigosas. Estranha Sedução gira em torno de um casal inglês que, no limiar da desintegração em face dos dilemas típicos dos casais, decide repetir uma viagem a Veneza, cidade que tinha visitado apenas três anos antes. São duas personagens que, apesar de raramente discutirem, reagem com descontentamento silencioso e quase indiferente à acumulação de pequenas desfeitas e faltas de atenção mútuas. Em contraste com a dimensão banal ou comezinha desta relação, os percursos que as personagens traçam em Veneza vão, contudo, adquirindo cada vez mais estranheza. Claramente com o objectivo de evitarem qualquer confusão entre Estranha Sedução e Aquele Inverno em Veneza (Nicolas Roeg, 1973), filmes com evidentes pontos em comum, Schrader e Dante Spinotti, o director de fotografia, optaram por uma paleta com tons ocres e vermelho-tijolo, sob um céu bem azul, quase turístico, enquanto o filme de Roeg privilegia tons invernais mais frios, castanhos e brancos. Veneza, no entanto, continua retorcida sobre si mesma, com passagens por explorar, e cravejada de edifícios antigos, no interior dos quais nunca se sabe o que se vai encontrar. Após um encontro supostamente fortuito com Robert/Christopher Walken, uma personagem sempre vestida de branco, como um anjo da morte, que parece existir para contar sempre a mesma história, tudo muda para aquele casal que até na beleza parecia convencional. As personagens perdem-se em Veneza, a ponto de terem de dormir ao ar livre, esfomeadas, por não conseguirem encontrar o hotel. Não se percebe por que razão não resistem mais a quem suspeitam que pode destruí-los, mas, obviamente, o toque mais marcante de Schrader neste filme é traduzir em imagens venezianas a pulsão de morte que até dentro das personagens mais belas e banais é possível encontrar. Em Estranha Sedução as personagens comportam-se mais como autómatos que cumprem um programa prévio do que como agentes capazes de determinarem os acontecimentos, e erram ao sabor dos impulsos e dos desejos inconscientes. É difícil decifrar intenções ou significados num filme que resultou do trabalho sucessivo de personalidades artísticas tão fortes – e ainda bem. Estranha Sedução vale pela opacidade e pela maneira como deixa o tédio e a arbitrariedade precipitarem os acontecimentos, rumo a um final inevitavelmente funesto.

Outros filmes de Paul Schrader no Cinéfilo Preguiçoso: No Coração da Escuridão (2017), The Card Counter (2021); Master Gardener (2022).

Outros filmes em Veneza: Summertime (David Lean, 1955); Eva (Joseph Losey, 1962); Giro Turistico senza Guida (Susan Sontag, 1983); Aquele Inverno em Veneza (Nicolas Roeg, 1973).

10 de novembro de 2024

Megalopolis

Seria interessante fazer uma história do cinema centrada nos projectos cuja concretização demorou décadas a acontecer: como surgiu a ideia; que circunstâncias impediram a sua realização imediata; que alterações sofreu enquanto os anos iam passando e o realizador construía a sua filmografia... Os exemplos não faltam: O Estranho Caso de Angélica (Manoel de Oliveira, 2010) ou Histoire de Marie et Julien (Jacques Rivette, 2003), entre outros. Consta que a ideia do filme que viria a ser Megalopolis (Francis Ford Coppola, 2024) surgiu no final dos anos 70. Nunca saberemos qual teria sido o resultado se Coppola tivesse conseguido levar a cabo este projecto nessa altura. Só sabemos que o filme que finalmente estreou e dividiu a crítica, quase meio século depois, tem uma pujança que parece nascer do entusiasmo associado à génese de uma ideia nova. Megalopolis é um filme em que se sente o peso da experiência de Coppola e a sua insaciável paixão pelo cinema, mas não é um testamento nem um balanço. Estabelece um paralelo entre a Roma antiga e uma metrópole chamada Nova Roma que, naquele que parece ser um distópico futuro próximo, assiste ao confronto entre um presidente da câmara bem-intencionado, mas demasiado pragmático, e um arquitecto visionário que acredita ser capaz de transformar a distopia em utopia, através dos seus grandiosos planos de urbanização e do material mágico que inventou. É admissível que Coppola tenha pretendido defender ideias em que acredita, mas não são o confronto ideológico nem as alegorias históricas que fazem o mérito desta obra. Megalopolis deixa a impressão de ser um filme planeado e rodado com o entusiasmo e desplante de um principiante, mas com a segurança técnica e estilística própria de um veterano rodeado de excelentes técnicos de confiança. Pela maneira como copia, reinventa e subverte inúmeros planos, temas e figuras de estilo vindos da ficção científica, do peplum, do melodrama e de tantos outros géneros, com uma saudável ausência de medo do ridículo, Megalopolis resulta numa grandiosa homenagem ao cinema que também é uma homenagem ao poder criativo dos visionários, na linha de Tucker – Um Homem e o Seu Sonho (1988). O choque de intenções e discursos entre o arquitecto Cesar Catilina (Adam Driver), o político (Giancarlo Esposito) e o banqueiro (Jon Voight) revela ambiguidades inquietantes: a liberdade para reconstruir uma cidade à medida dos seus sonhos torna o primeiro tão poderoso e vulnerável a tentações populistas como os outros dois. O desfecho de Megalopolis sugere, ainda assim, que só o gesto artístico de um visionário pode alterar o curso da história e contrariar a ganância e o conformismo. Podemos concordar ou permanecer cépticos; podemos achar que o talento de Cesar para deter o curso do tempo é próprio de um demiurgo ou um simples truque de feira. O que é impossível é ignorar a pulsão vital que atravessa este filme e não admirar a maneira como Coppola, na fase final de uma carreira tão rica e singular, olha decididamente para o futuro, ciente das incertezas e contradições da sua utopia, mas movido por uma fé tenaz na humanidade, como se percebe graças ao texto final, versão secular e apátrida do pledge of allegiance que muitas crianças são obrigadas a recitar nas escolas norte-americanas.
 
Outros filmes de Francis Ford Coppola no Cinéfilo Preguiçoso: The Outsiders (1983); Tucker Um Homem e o Seu Sonho (1988); Tetro (2009).