25 de setembro de 2022
All the Vermeers in New York
18 de setembro de 2022
Petite Maman
Vendo Petite Maman (Céline Sciamma, 2021) num canal de televisão, o Cinéfilo Preguiçoso recordou imediatamente uma expressão antiga – «duas mães e duas filhas, cobertas por três mantilhas» – que descreve uma situação em que estão presentes três mulheres (uma avó, uma mãe e uma filha), mas com sobreposição de papéis entre elas. Com ecos do enigma que a Esfinge propõe a Édipo (sobre uma estranha criatura que de manhã anda com quatro pés, à tarde anda com dois e à noite com três, mas fala com uma só voz), esta adivinha ancestral adequa-se extraordinariamente bem a um filme em que neta e filha se despedem de uma mulher que é avó de uma e mãe da outra. Também em Petite Maman os papéis de mãe e filha se sobrepõem: quando os pais de Nelly (Joséphine Sanz) voltam à casa da avó para a esvaziar depois da sua morte, Marion (mãe de Nelly) desaparece de modo inesperado. Por isso, enquanto faz o luto da avó, a menina sente falta da sua própria mãe e tenta assimilar também a ausência desta. Pouco depois, no entanto, encontra nos bosques em redor uma rapariga da mesma idade e que também se chama Marion (interpretada por Gabrielle Sanz, irmã gémea da actriz na vida real). Esta menina vive numa casa igual à da avó, mas no passado; portanto só pode ser a sua mãe, quando era pequena. Descritas deste modo, estas sobreposições parecem confusas, mas, graças à atmosfera de conto de fadas que reina em Petite Maman, desenvolvem-se com uma clareza e uma naturalidade surpreendentes. (Não custa imaginar a profusão de adornos e efeitos que um realizador menos comedido teria usado para explorar estas transições entre épocas, provavelmente estragando por completo o filme.) Esta situação permite a Nelly reflectir não só sobre o seu próprio luto de neta, mas também sobre o luto que a sua mãe faz enquanto filha, como se as fronteiras entre estas três mulheres fossem muito mais ténues do que parecem. Apesar de Petite Maman ser um filme em que o tempo e as personagens se desdobram e suspendem, e no qual parece não acontecer nada, a não ser o luto e outras coisas impossíveis, o espectador fica suspenso do ecrã precisamente por causa da atmosfera intemporal e enigmática em que se vê envolvido, como se pressentisse que no fim terá de se confrontar com uma esfinge que o vai intimar a decifrar e explicar este enredo que oscila entre o conto infantil, a história de fantasmas e o ritual de passagem. Depois de Retrato de Rapariga em Chamas (2019), Céline Sciamma continua a explorar o estatuto e a identidade das mulheres e meninas, aquilo que as une e separa ou distingue, o que são e o que podem tornar-se. Tal como no enigma da Esfinge, o mistério é a humanidade que as três personagens femininas partilham. O grande mérito de Sciamma consiste em mostrar este mistério com uma simplicidade tocante, que nunca deriva para a trivialidade.
11 de setembro de 2022
Mulher de Um Espião
4 de setembro de 2022
Mektoub, Meu Amor: Canto Primeiro
Começamos o mês de Setembro com um filme sobre o Verão que se acaba – Mektoub, Meu Amor: Canto Primeiro, de Abdellatif Kechiche (2017), visto em DVD. Na verdade, a motivação para ver este filme, mais do que relacionada com a época do ano, foi indirectamente literária, já que alguns críticos chamaram a atenção para as suas correntes proustianas e o Cinéfilo Preguiçoso quer explorar alguns filmes com esta influência. Em Portugal, talvez Abdellatif Kechiche seja principalmente conhecido como o realizador de O Segredo de Um Cuscuz (2007) e A Vida de Adèle (2013). Em França, no entanto, é um nome que está sempre envolvido em polémica e Mektoub não escapou à regra: há um conflito ainda em curso com os produtores, em torno de um imbróglio com o financiamento das três partes do filme. Quando estreou em Cannes, Intermezzo, a segunda parte, gerou indignação e polémica – não só por causa da duração (três horas e meia, mais trinta minutos do que a primeira parte), mas também devido a acusações de abusos sexuais contra o realizador. E mesmo este Canto Primeiro desagradou a muitos, tendo chegado a ser descrito como «festival de twerk». O filme adapta o romance La Blessure, la vraie, de François Bégaudeau. Como Un jeune poète (Damien Manivel, 2014), passa-se em Sète, uma cidade à beira-mar a que o jovem protagonista regressa nas férias, para se reencontrar com a família e com os amigos no Verão de 1994, depois de desistir do curso de medicina que frequentava em Paris. Identificamos associações proustianas, deliberadas ou não, logo na primeira cena do filme, em que o olhar de Amin, o protagonista, se confunde com o do realizador, tal como, na Recherche, o olhar de M. se confunde com o do narrador: na sequência inicial, vemos o que o protagonista vê, mas também o protagonista a ver e o que ele não vê inteiramente. Além disso, como em Proust, durante todo o filme Amin é essencialmente um observador, e isso permite ao realizador traçar a cartografia social e sentimental do grupo de jovens (e figuras mais velhas) que vivem entre a praia e a discoteca. Outro nexo proustiano importante é a maneira como as relações ou interesses sentimentais das personagens principais dependem sempre da mediação de um terceiro elemento; tal como em Proust, as personagens não percebem nem assumem imediatamente quem ou o que as atrai mais entre os membros do grupo. É claro, porém, que, à semelhança da Recherche, o traço distintivo de Mektoub é aquele que mais exasperação causou: a atenção à duração e o modo como determinadas sequências se prolongam até à exaustão, transformando-se em pura sensação e melancolia. Mektoub inclui algumas cenas típicas do cinema francês – refeições de família ou grupo ao ar livre, o Verão e a praia, noites nas discotecas –, mas explora a sua duração de uma forma que as transfigura. Aliás, sobretudo pelo facto de nestas cenas tudo fluir a ponto de nem sempre se perceber bem o que estava no guião e o que foi improvisado, este filme evoca um realizador francês em particular – Maurice Pialat –, que, tal como Kechiche, nunca foi consensual e que também ganhou uma Palma de Ouro muito contestada. Independentemente das controvérsias, o Cinéfilo Preguiçoso, apesar de inicialmente ter sentido algumas dificuldades com o ritmo, gostou de Mektoub, Meu Amor: Canto Primeiro e está interessado em ver as duas outras partes. Consultando o significado da palavra «Mektoub», verificámos que quer dizer destino, e queremos saber o que vai acontecer a seguir.