25 de setembro de 2022

All the Vermeers in New York

Depois de A Paixão de Swann (1984) e Mektoub, Meu Amor: Canto Primeiro (2017), o Cinéfilo Preguiçoso continua interessado em descobrir filmes que tenham a ver, mais ou menos directamente, com a obra de Marcel Proust. All the Vermeers in New York (1990), visto esta semana graças à Internet, é uma das longas-metragens mais conhecidas de Jon Jost, um realizador que pode ser classificado dentro do cinema dito “experimental”, mas que também criou filmes, como este, mais próximos do cinema comercial e narrativo. As personagens principais são Anna, uma francesa aspirante a actriz, e Mark, um corretor financeiro solitário que visita frequentemente os museus nova-iorquinos (Metropolitan e Frick) onde pode contemplar os quadros de Vermeer, com o objectivo de esquecer a monotonia e a pressão do trabalho. Um pouco como Swann, na Recherche, Mark fica obcecado com Anna devido a uma pretensa semelhança fisionómica entre ela e as mulheres retratadas por Vermeer, apesar de essa semelhança parecer bastante ténue. Do encontro entre ambos pouco resulta de concreto, ou pelo menos pouco nos é mostrado, além de algumas conversas superficiais e um pedido de ajuda financeira por parte de Anna. A obra de Vermeer não parece ter um impacto muito profundo em nenhuma das personagens. Anna, que navega na vida sem qualquer investimento emocional e interfere na vida das pessoas que se cruzam com ela, limita-se a contemplar os quadros; quanto à relação de Mark com Vermeer, reduz-se ao culto do escapismo e do ideal de beleza feminina que o leva a abordar Anna. No final do filme, Mark sofre um colapso depois de uma última visita aos Vermeers, o que pode resultar do excesso de trabalho, mas também ser a concretização, na vida real, do episódio da Recherche (lido por Anna) em que o escritor Bergotte desfalece e morre depois de contemplar o famosíssimo fragmento de fachada amarela do quadro Vista de Delft. O filme inclui sequências que podem ser encaradas como críticas aos meios da alta finança e das galerias de arte e que contribuem para mobilar um enredo esparso, deliberadamente carente de desenvolvimento e espessura, mas onde não faltam cenas que remetem para muitas centenas de filmes baseados em encontros românticos: já vimos tantas personagens a cruzarem-se por acaso em museus, a visitarem terraços de arranha-céus, a serem separadas pelas contingências da vida! All the Vermeers in New York mostra-nos como a pintura resiste à mercantilização, aos exames distraídos por parte de visitantes ocasionais, às obsessões caprichosas e até aos movimentos de câmara lentos e deliberados de Jon Jost. Na Recherche, Bergotte morre a lamentar-se por não ter escrito como Vermeer pintou a Vista de Delft. A arte pode ajudar-nos a viver as nossas vidas, mas existe num plano distinto da vida. Anna regressa a França; talvez desista de ser actriz, ou talvez não. Os quadros permanecem expostos e continuarão a oferecer diferentes significados a quem se detiver a contemplá-los.

18 de setembro de 2022

Petite Maman

Vendo Petite Maman (Céline Sciamma, 2021) num canal de televisão, o Cinéfilo Preguiçoso recordou imediatamente uma expressão antiga – «duas mães e duas filhas, cobertas por três mantilhas» – que descreve uma situação em que estão presentes três mulheres (uma avó, uma mãe e uma filha), mas com sobreposição de papéis entre elas. Com ecos do enigma que a Esfinge propõe a Édipo (sobre uma estranha criatura que de manhã anda com quatro pés, à tarde anda com dois e à noite com três, mas fala com uma só voz), esta adivinha ancestral adequa-se extraordinariamente bem a um filme em que neta e filha se despedem de uma mulher que é avó de uma e mãe da outra. Também em Petite Maman os papéis de mãe e filha se sobrepõem: quando os pais de Nelly (Joséphine Sanz) voltam à casa da avó para a esvaziar depois da sua morte, Marion (mãe de Nelly) desaparece de modo inesperado. Por isso, enquanto faz o luto da avó, a menina sente falta da sua própria mãe e tenta assimilar também a ausência desta. Pouco depois, no entanto, encontra nos bosques em redor uma rapariga da mesma idade e que também se chama Marion (interpretada por Gabrielle Sanz, irmã gémea da actriz na vida real). Esta menina vive numa casa igual à da avó, mas no passado; portanto só pode ser a sua mãe, quando era pequena. Descritas deste modo, estas sobreposições parecem confusas, mas, graças à atmosfera de conto de fadas que reina em Petite Maman, desenvolvem-se com uma clareza e uma naturalidade surpreendentes. (Não custa imaginar a profusão de adornos e efeitos que um realizador menos comedido teria usado para explorar estas transições entre épocas, provavelmente estragando por completo o filme.) Esta situação permite a Nelly reflectir não só sobre o seu próprio luto de neta, mas também sobre o luto que a sua mãe faz enquanto filha, como se as fronteiras entre estas três mulheres fossem muito mais ténues do que parecem. Apesar de Petite Maman ser um filme em que o tempo e as personagens se desdobram e suspendem, e no qual parece não acontecer nada, a não ser o luto e outras coisas impossíveis, o espectador fica suspenso do ecrã precisamente por causa da atmosfera intemporal e enigmática em que se vê envolvido, como se pressentisse que no fim terá de se confrontar com uma esfinge que o vai intimar a decifrar e explicar este enredo que oscila entre o conto infantil, a história de fantasmas e o ritual de passagem. Depois de Retrato de Rapariga em Chamas (2019), Céline Sciamma continua a explorar o estatuto e a identidade das mulheres e meninas, aquilo que as une e separa ou distingue, o que são e o que podem tornar-se. Tal como no enigma da Esfinge, o mistério é a humanidade que as três personagens femininas partilham. O grande mérito de Sciamma consiste em mostrar este mistério com uma simplicidade tocante, que nunca deriva para a trivialidade.

11 de setembro de 2022

Mulher de Um Espião

Em face da pobreza das estreias recentes em sala e da irregularidade dos horários de exibição, o Cinéfilo Preguiçoso dá-se por feliz por ter conseguido ver Mulher de Um Espião (2020), de Kiyoshi Kurosawa. Este realizador japonês tem uma carreira já longa, que passou por filmes de género (policial, soft core) e evoluiu para filmes com mais pretensões, aclamados pela crítica e nos festivais. Contudo, nunca deixou de recorrer a convenções e temas do cinema comercial, jogando com as expectativas e a bagagem cinéfila dos espectadores. Mulher de Um Espião pode ser classificado como um filme de espionagem, passado no Japão, na época imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial. Um dos eixos principais do enredo, que opõe as perspectivas nacionalista e cosmopolita, baseia-se nas suspeitas que Satoko alimenta em relação ao seu marido, Yusaku, um negociante próspero e cineasta amador, à medida que se acumulam os indícios de que ele poderá ser um espião prestes a divulgar segredos sobre crimes de guerra do exército japonês na Manchúria. Estamos, claramente, em terrenos hitchcockianos – o autor de filmes como Suspicion (1941) é uma das influências assumidas por Kurosawa. É inevitável pensar também no soberbo Agente Triplo (2004), de Éric Rohmer. O filme não perde intensidade quando o espectador e Satoko vêem as suas suspeitas confirmadas: a cumplicidade entre marido e mulher engendra novas camadas de ambiguidade e incerteza que mantêm o interesse até ao final, deixando em aberto vários cenários possíveis. Este ambiente de incerteza sobre as intenções das personagens é explorado por meio de enquadramentos sóbrios e cenários burgueses e elegantes, interrompidos ocasionalmente por alguns espaços ou sequências mais misteriosos, filmados com uma definição que faz realçar os mínimos detalhes. Isto é coerente com o que Kurosawa fez em O Segredo da Câmara Escura (2016): nesse filme, os minuciosos daguerreótipos não fazem mais do que reproduzir a superfície, deixando intacta a natureza oculta dos retratados. Em Mulher de Um Espião, as imagens filmadas por Yusaku servem para a investigação (provas dos crimes que pretende denunciar), mas também para recreio e mistificação (o filme amador em que Satoko faz, na ficção, os mesmos gestos furtivos que fará na vida real, e que será apreendido pelas autoridades em vez do filme incriminatório). Existem muitos outros motivos de interesse neste filme que, por trás de um aparente academismo e da conformidade com códigos testados há décadas, revela uma inteligência narrativa notável. Saliente-se também a colaboração de Ryusuke Hamaguchi no argumento. Identificar a contribuição do celebradíssimo autor de Drive My Car (2021) é um exercício arriscado, mas é muito evidente que Hamaguchi sempre se deu bem com histórias em que a natureza íntima ou a identidade das personagens se vai revelando aos poucos, por vias tortuosas e inesperadas.
 
Outros filmes de Ryusuke Hamaguchi no Cinéfilo Preguiçoso: Touching the Skin of Eeriness (2013), Happy Hour (2015), Asako I & II (2018), Roda da Fortuna e da Fantasia (2021).

4 de setembro de 2022

Mektoub, Meu Amor: Canto Primeiro

Começamos o mês de Setembro com um filme sobre o Verão que se acaba – Mektoub, Meu Amor: Canto Primeiro, de Abdellatif Kechiche (2017), visto em DVD. Na verdade, a motivação para ver este filme, mais do que relacionada com a época do ano, foi indirectamente literária, já que alguns críticos chamaram a atenção para as suas correntes proustianas e o Cinéfilo Preguiçoso quer explorar alguns filmes com esta influência. Em Portugal, talvez Abdellatif Kechiche seja principalmente conhecido como o realizador de O Segredo de Um Cuscuz (2007) e A Vida de Adèle (2013). Em França, no entanto, é um nome que está sempre envolvido em polémica e Mektoub não escapou à regra: há um conflito ainda em curso com os produtores, em torno de um imbróglio com o financiamento das três partes do filme. Quando estreou em Cannes, Intermezzo, a segunda parte, gerou indignação e polémica – não só por causa da duração (três horas e meia, mais trinta minutos do que a primeira parte), mas também devido a acusações de abusos sexuais contra o realizador. E mesmo este Canto Primeiro desagradou a muitos, tendo chegado a ser descrito como «festival de twerk». O filme adapta o romance La Blessure, la vraie, de François Bégaudeau. Como Un jeune poète (Damien Manivel, 2014), passa-se em Sète, uma cidade à beira-mar a que o jovem protagonista regressa nas férias, para se reencontrar com a família e com os amigos no Verão de 1994, depois de desistir do curso de medicina que frequentava em Paris. Identificamos associações proustianas, deliberadas ou não, logo na primeira cena do filme, em que o olhar de Amin, o protagonista, se confunde com o do realizador, tal como, na Recherche, o olhar de M. se confunde com o do narrador: na sequência inicial, vemos o que o protagonista vê, mas também o protagonista a ver e o que ele não vê inteiramente. Além disso, como em Proust, durante todo o filme Amin é essencialmente um observador, e isso permite ao realizador traçar a cartografia social e sentimental do grupo de jovens (e figuras mais velhas) que vivem entre a praia e a discoteca. Outro nexo proustiano importante é a maneira como as relações ou interesses sentimentais das personagens principais dependem sempre da mediação de um terceiro elemento; tal como em Proust, as personagens não percebem nem assumem imediatamente quem ou o que as atrai mais entre os membros do grupo. É claro, porém, que, à semelhança da Recherche, o traço distintivo de Mektoub é aquele que mais exasperação causou: a atenção à duração e o modo como determinadas sequências se prolongam até à exaustão, transformando-se em pura sensação e melancolia. Mektoub inclui algumas cenas típicas do cinema francês – refeições de família ou grupo ao ar livre, o Verão e a praia, noites nas discotecas –, mas explora a sua duração de uma forma que as transfigura. Aliás, sobretudo pelo facto de nestas cenas tudo fluir a ponto de nem sempre se perceber bem o que estava no guião e o que foi improvisado, este filme evoca um realizador francês em particular – Maurice Pialat –, que, tal como Kechiche, nunca foi consensual e que também ganhou uma Palma de Ouro muito contestada. Independentemente das controvérsias, o Cinéfilo Preguiçoso, apesar de inicialmente ter sentido algumas dificuldades com o ritmo, gostou de Mektoub, Meu Amor: Canto Primeiro e está interessado em ver as duas outras partes. Consultando o significado da palavra «Mektoub», verificámos que quer dizer destino, e queremos saber o que vai acontecer a seguir.