Um único fotograma é quanto basta para identificarmos a assinatura de Aki Kaurismäki. Ao longo dos anos, o cineasta finlandês tem construído uma obra em que certos traços estilísticos e temas surgem de forma recorrente. Em O Outro Lado da Esperança (2017), tal como em quase todos os seus filmes anteriores, as interpretações são inexpressivas, a fotografia (a cargo, como sempre, do grande Timo Salminen) assenta em tons retro, os cenários parecem parados no tempo, a iluminação é predominantemente artificial e não faltam momentos musicais kitsch mas surpreendentemente cativantes, protagonizados por bandas cujos membros parecem tão cépticos e fustigados pela vida como as personagens do filme. O enredo baseia-se em duas histórias paralelas, que se cruzam no último terço da narrativa: a de Khaled (Sherwan Haji), refugiado sírio em busca de asilo político, e a de Wikström (Sakari Kuosmanen), vendedor de camisas que decide mudar de vida depois de deixar a mulher e acaba por comprar um restaurante. As duas histórias intersectam-se quando Wikström oferece emprego e uma identidade falsa a Khaled, cujo pedido de asilo tinha sido recusado. Apesar de quase tudo no cinema de Kaurismäki, do guarda-roupa à música, passando pelos adereços, remeter para uma época indefinida mas várias décadas distante, a preocupação com problemas contemporâneos permanece bem viva. A questão dos refugiados, que já tinha sido abordada na longa-metragem anterior (Le Havre, 2011), permite ao realizador explorar alguns temas da sua predilecção, em particular a solidariedade e a compaixão que se estabelecem entre pessoas solitárias que se movem em esferas completamente diferentes. Esta mensagem de fé na natureza humana está longe de ser unidimensional: o cinismo e o interesse nunca estão ausentes dos filmes deste realizador. O inimigo, identificado de forma inequívoca por Kaurismäki, não são os sentimentos humanos, por mais negativos e egoístas que sejam: é a tecnocracia do Estado e o fanatismo, dois factores que contribuem para aniquilar as esperanças de Khaled. Para finalizar, uma nota de admiração pela maneira como Kaurismäki consegue fazer coexistir num mesmo filme, sem prejudicar a sua coesão, elementos de comédia nos limites do slapstick (a experiência de culinária japonesa) e um momento profundamente tocante que nos aproxima do registo de documentário: o relato da fuga de Khaled através da Europa. O Outro Lado da Esperança recebeu o Urso de Prata para melhor realizador no mais recente festival de Berlim.
29 de outubro de 2017
22 de outubro de 2017
Porto
O filme Porto de Gabe Klinger (2016) é sobre a ligação de uma noite entre
dois estrangeiros no Porto: Jake (o americano Anton Yelchin) e Mati (a francesa
Lucie Lucas). Talvez uma das suas características mais interessantes seja o
modo como aborda a dimensão temporal do amor: no dia a seguir ao primeiro
encontro que tiveram, Mati rejeita Jake e opta pelo namorado português que quer
casar e ter filhos, apesar de ela própria não o desejar essa forma de vida;
anos depois, no entanto, continua a recordar essa noite e essa ligação. O tempo
desta relação supostamente breve afinal é longo e transcende as poucas horas
que dura, parecendo, em contraste, brevíssimos todos os anos que se seguiriam
na vida da protagonista. A dada altura, nessa primeira e única noite, as
personagens comentam que é como se aquela ligação já tivesse acontecido antes
de acontecer, visto que já sabem o que cada uma delas dirá antes de ser dito
(um pouco como na canção «Where or When», com letra de Lorenz Hart,
lembramo-nos nós). Do mesmo modo, com uma hora e dezasseis minutos, Porto é um filme reduzido (ou
engrandecido) ao essencial, mas há nele tempo para tudo o que precisa de
explorar, incluindo a atmosfera da cidade em que decorre. Um dos momentos mais
memoráveis é a sequência longa que acompanha o percurso nocturno dos
protagonistas transportando uma série de caixas através do nevoeiro das ruas
íngremes do Porto e das escadas do edifício sem elevador para o qual Mati se está
a mudar. Convém salientar que Gabe Klinger não vê o Porto através de um olhar
turístico, embora o encare com um olhar estrangeiro que, sobretudo nas cenas em
cafés, bares e restaurantes, lembra não só Jim Jarmusch (que, aliás, é produtor
executivo deste filme) mas também Kaurismäki. Quem viver ou tiver vivido no
Porto não reencontrará a sua cidade neste filme (nem em mais nenhum
outro lado, incluindo no próprio Porto), embora sem dúvida reconheça alguns
fragmentos da sua experiência nesse lugar: o nevoeiro, pessoas encasacadas a
caminho de algum lado, a Estação de São Bento, o Café Ceuta, a Confeitaria
Cunha, o rio, as pontes, o som das gaivotas, um Bulhão sem as figuras
supostamente pitorescas que povoam outras abordagens. Outro elemento importante
desta longa-metragem é uma ideia de leveza, que Jake descreve como uma disponibilidade
de perder tudo («of losing it»), para depois poder (re)começar. Para quem viu Paterson, de Jarmusch, é uma ideia muito
próxima daquela que, na cena final, um turista japonês recorda casualmente ao
protagonista quando lhe oferece um caderno de páginas em branco. Na vida de
Mati, todavia, isso não passa de uma aspiração por concretizar. Assinale-se,
para concluir, a aparição da lendária Françoise Lebrun (de La Maman et la Putain, 1973) no papel de mãe de Lucie. A cena entre
mãe e filha, passada num pequeno apartamento parisiense, é, à maneira do
próprio filme, lúcida, contida, breve e centrada numa questão a que se
subordinam todas as outras: o que estamos dispostos a fazer para evitar a
solidão?
15 de outubro de 2017
Os Fantasmas de Ismaël
O Cinéfilo Preguiçoso é admirador de longa data de Arnaud Desplechin. Enquanto a primeira fase da sua carreira ficou marcada pela exploração de registos muito diferentes e em que cada filme parecia assinalar um novo começo, Desplechin parece agora apostado em revisitar temas, obsessões e tiques, sem grandes preocupações de inovação formal. Os Fantasmas de Ismaël (2017), muito à semelhança, por exemplo, de Um Conto de Natal (2008) ou do fabuloso Reis e Rainha (2004), caracteriza-se não só pela exploração de relações familiares disfuncionais e de bloqueios criativos e emocionais, mas também por personagens hiperactivas e por um excesso de energia narrativa, parcialmente resolvido por meio de enredos paralelos ou episódios supérfluos. Dependendo da opinião de cada um, esse excesso e essa hiperactividade podem ser vistos como sintoma do descontrolo do realizador ou como uma sucessão de derrapagens controladas, necessárias à dinâmica do filme. Em Os Fantasmas de Ismaël coexistem pelo menos três filmes diferentes: a história de Ismaël (Mathieu Amalric), um realizador de cinema cuja mulher regressa depois de uma ausência de vinte e um anos; o enredo do filme que está a ser rodado (uma intriga improvável de espionagem que envolve uma personagem inspirada no irmão de Ismaël e um agente russo especialista em Jackson Pollock); e as aventuras da rodagem do filme, posta em risco pelos caprichos do realizador. O frenesim tresloucado da última meia hora do filme contrasta com a toada mais calma, quase contemplativa, da primeira parte, dominada pela história do regresso da mulher de Ismaël, Carlotta (um nome que evoca Vertigo, de Hitchcock). Surpreende que Desplechin, pouco dado a erros de casting, tenha escolhido Marion Cotillard para interpretar Carlotta: é uma actriz competente, mas demasiado transparente e carente de ambiguidade para este papel. É inevitável tentar imaginar o que a grande Emmanuelle Devos, omnipresente na primeira fase da carreira de Desplechin, faria com um papel destes. Em contrapartida, Charlotte Gainsbourg é excelente: o seu desempenho sóbrio e fluido ajuda a impedir que o filme se desagregue por completo na sua fúria centrífuga. Quanto ao inevitável Amalric, a sua actuação é um espelho do próprio filme: por vezes brilhante, por vezes exasperante, e visceralmente indissociável do universo de Desplechin.
8 de outubro de 2017
City Girl | Divine
Esta
semana, Double Bill na Cinemateca,
com os filmes City Girl (F.W. Murnau,
1930) e Divine (Max Ophüls, 1935). Há
mais de dois meses que o Cinéfilo Preguiçoso não entrava numa sala de cinema –
e, desta vez, não propriamente por preguiça –, mas quando as luzes da sala M.
Félix Ribeiro se apagaram e o pianista Daniel Bruno Schvetz começou a tocar
piano para acompanhar o filme de Murnau, outro universo se impôs. O tema
unificador das duas sessões desta Double
Bill era o suposto contraste entre o campo e a cidade. Em City Girl, temos um agricultor que vai a
Chicago vender a colheita de trigo e se apaixona por uma empregada de
restaurante, a rapariga da cidade do título, acabando por casar com ela e
levá-la para o campo. Cansada da confusão e da poluição, esta rapariga urbana
sonhava com a «a vida limpa» e as pessoas amáveis do campo, mas quando lá chega
conclui que as pessoas não são tão diferentes como se
pensaria. Por sua vez, no filme de Max Ophüls temos uma rapariga do campo que
uma amiga convence a ir trabalhar como corista em Paris. A grande ironia deste segundo
filme reside no facto de a protagonista nunca se deixar seduzir pelos encantos
da cidade (aventuras, luzes da ribalta, tentativas de sedução, roupas, drogas,
etc.), acabando por preferir uma vida muito semelhante àquela que inicialmente
deixara. Sobre o filme de Murnau, diga-se que a secção que se passa na cidade,
subtilmente hopperiana, é muito mais interessante do que a que se passa no
campo, apesar da beleza dos momentos iniciais desta segunda secção. Na folha da
Cinemateca, Manuel Cintra Ferreira explica que o projecto inicial de Murnau era
fazer um filme sobre «o carácter sagrado do pão», mas o realizador viu-se depois obrigado
pelo produtor a dar mais destaque aos conflitos familiares e sentimentais. Nos
episódios que decorrem no campo, a presença das personagens desagradavelmente
estereotipadas do pai e dos ceifeiros contribui para a impressão de um filme
algo desequilibrado, embora ocasionalmente muito belo. Quanto a Max Ophüls, se
alguma vez fez um mau filme, o Cinéfilo Preguiçoso ainda não o viu. Neste Divine, consegue captar na perfeição a
energia do teatro, tanto no palco como nos bastidores, em parte graças à
versatilidade e ousadia dos movimentos de câmara – uma das imagens de marca
deste cineasta. Pela liberdade formal e pelo humor iconoclasta e pueril,
Divine poderia ter sido filmado em plena Nouvelle
Vague.
1 de outubro de 2017
Transe
Tem-se instalado uma certa tendência para fazer crer que um bom argumento é aquele que submete o espectador a truques, armadilhas e reviravoltas infindáveis, revelando-lhe gradualmente a verdade sobre os factos narrados. Os Suspeitos do Costume (1995, realização de Bryan Singer, argumento de Christopher McQuarrie) foi talvez o filme que mais ajudou a lançar essa tendência, que se presta aos abusos mais irritantes, mas também a variações fascinantes e engenhosas (veja-se, por exemplo, alguns filmes de David Mamet). Transe (2013), de Danny Boyle, visto esta semana em DVD, encaixa-se perfeitamente nesta categoria. O enredo gira em torno de um assalto a uma casa de leilões e das consequências da amnésia de Simon (James McAvoy), um funcionário, cúmplice dos criminosos, que sofre uma agressão durante o assalto e se esquece do lugar onde escondeu a tela de Goya roubada. Para recuperar a memória de Simon, o bando recorre aos serviços de uma hipnoterapeuta (Rosario Dawson), que depressa revela saber muito mais sobre o caso do que se pensaria à primeira vista. A ideia de construir um thriller baseado na evocação de memórias obliteradas pelo trauma não é destituída de interesse. Infelizmente, Boyle faz questão de gastar a sua energia a usar cada plano para supostamente demonstrar virtuosismo e ousadia formal, em vez de aproveitar as potencialidades da ideia de base. Transe é o exemplo perfeito de um filme que se confunde com um longo número de prestidigitação e cujo objectivo parece resumir-se a trocar as voltas ao espectador. As personagens são exploradas de forma artificial, os actores trabalham em piloto automático e os clichés do filme de gangsters estão bem presentes, se bem que camuflados pelo aparato visual e por várias camadas de pretensa sofisticação. Para cúmulo, a associação ao tema da arte é extremamente ténue e parece existir apenas para conferir uma frouxa caução cultural: em vez de um quadro de Goya, o objecto escondido poderia ser um diamante ou um caderno com uma fórmula secreta, sem que o resto de filme sofresse alterações de maior. É curioso notar que, dois anos depois de Transe, Danny Boyle realizou Steve Jobs (2015), filme muito mais consistente e interessante. Sem dúvida que o facto de ter Aaron Sorkin como argumentista ajudou um bocadinho. Saber escolher os colaboradores é tão, ou mais, importante do que ter talento.
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