25 de fevereiro de 2024

Os Excluídos

O Cinéfilo Preguiçoso interroga-se muitas vezes sobre o que pode levar realizadores talentosos, com abundância de meios à sua disposição, a optarem por fazer filmes tão obedientes a convenções e tão pródigos em lugares-comuns e receitas narrativas que já foram usadas até à exaustão. Essa interrogação justifica-se perante Os Excluídos, de Alexander Payne (2023). Este filme é a enésima versão de uma história protagonizada por personagens que parecem nada ter em comum, mas descobrem afinidades inesperadas quando as circunstâncias as forçam a conviver. Neste caso, as circunstâncias são umas férias de Natal numa escola privada da Nova Inglaterra, no início dos anos 70: um professor de História irascível, um aluno em conflito com a mãe e o padrasto, e uma cozinheira que acabou de perder o filho ficam sozinhos na escola, o primeiro por incumbência, os outros por não terem para onde ir. Ao fim de dez minutos, qualquer espectador já percebeu para onde o filme se encaminha. Aos poucos, as personagens revelam traumas, inseguranças e aspirações que as aproximam, quebrando a hostilidade inicial. A mensagem é cristalina e, reconheça-se, louvável: todas as pessoas têm alguma coisa para ensinar, a natureza humana é a mesma, independentemente do estatuto social, da idade e do percurso. A espaços, em particular no segmento passado em Boston, há cenas bem conseguidas e convincentes que, no entanto, não chegam para dissipar a sensação de déjà vu: diálogos, situações e dinâmicas assemelham-se a muitos outros que qualquer cinéfilo já viu inúmeras vezes. É um exercício interessante estabelecer paralelos com obras como The Breakfast Club (John Hughes, 1985), sobre um grupo de estudantes que cumpre um castigo numa escola deserta, ou The Shining (Stanley Kubrick, 1980), onde a acção se passa nos corredores vazios de um hotel isolado pela neve – para citar apenas dois exemplos de filmes que, partindo de pressupostos semelhantes, se distinguem pela originalidade e pela capacidade de evitar o pântano das ideias feitas, ao contrário de Os Excluídos. Não se pode, porém, dizer que este seja um filme inteiramente falhado. As personagens são credíveis, Paul Giamatti é um grande actor, a competência técnica é inegável e alguns exteriores caracterizam-se por uma beleza tranquila e singela que é realçada pela excelente banda sonora. Ainda assim, é compreensível que o espectador saia da sala a pensar que o cinema pode ser muito, muito mais do que aquilo que viu desfilar diante dos seus olhos nas duas horas anteriores.
 
Outro filme de Alexander Payne no Cinéfilo Preguiçoso: Sideways (2004).

18 de fevereiro de 2024

O Grupo

O Cinéfilo Preguiçoso continua interessado em ver filmes de Sidney Lumet, e o DVD de O Grupo (1966), baseado num romance de 1963 de Mary McCarthy com o mesmo título, já estava na lista de espera há algum tempo, não só pela associação a esta escritora e a este realizador, mas também por ser considerado uma espécie de precursor de séries como O Sexo e a Cidade e Girls. O enredo segue a história de um grupo de oito raparigas de classe alta que, depois de terminarem o curso em Vassar, em 1933, têm de enfrentar a vida real – entre a Grande Depressão e o início da Segunda Guerra Mundial. Dentro da obra de Lumet, podemos associá-lo a Doze Homens em Fúria (1957), também um retrato colectivo (embora no masculino) em que a individualidade das personagens não se perde. Aliás, em O Grupo, temos pena de não poder acompanhar a história de cada personagem individualmente, à medida que a narrativa avança, pontuada tanto pelo boletim informativo que anuncia casamentos, nascimentos e conquistas profissionais das colegas de faculdade, como pelas conversas em que as personagens, em grupos mais pequenos, comentam depreciativamente estes acontecimentos. Para encontrarmos uma personagem feminina próxima destas na obra de Lumet, teremos de a procurar na intensidade de Diana (Faye Dunaway) em Network (1976). Dando por si num mundo muito diferente daquele para o qual foram preparadas, as protagonistas do filme reagem com uma intensidade histérica e febril, o que terá levado Elizabeth Bishop a classificá-lo como um dos piores filmes que já tinha visto. O tom do livro, no entanto, como é típico da obra de McCarthy, é mais distanciado, cáustico e satírico. Ainda assim, o contraste entre o livro e o filme não é totalmente desinteressante. Já houve quem recordasse a obra de Whit Stillman a propósito desta longa-metragem, mas talvez fosse mais correcto dizer que se Whit Stillman alguma vez realizasse um filme de terror sobre ser mulher e tivesse Boris Kaufman como director de fotografia, o registo seria muito próximo deste. Mary McCarthy é impiedosa com as suas personagens, sujeitando-as a problemas financeiros, casamentos com homens prepotentes, dificuldade de obtenção de métodos contraceptivos, alcoolismo, violência doméstica, doenças mentais verdadeiras e falsas, etc. Quase ninguém escapa à infelicidade e nenhuma teorização das protagonistas sobre as suas próprias vidas as ajuda a assimilar o desapontamento. É interessante constatar que o livro de McCarthy tem alguma inspiração biográfica. A personagem mais próxima da autora é Kay (Joanna Pettet), precisamente aquela que acaba por ser mais punida pela incapacidade de se adaptar ao contraste entre os ideais e a realidade. Tal como Mary McCarthy, Kay casa-se uma semana depois de terminar a faculdade, com um aspirante a dramaturgo (interpretado por Larry Hagman, o JR da série Dallas). Num episódio sinistro, o marido alcoólico e infiel de Kay decide interná-la num hospital psiquiátrico sem o seu consentimento, como aconteceu à própria McCarthy, no seu segundo casamento, com o escritor e crítico Edmund Wilson. Mesmo que ver este filme de Sidney Lumet não seja sempre uma experiência agradável, continua a ser uma obra interessante graças à sua agilidade narrativa, ao interesse histórico, à riqueza das personagens e à sua influência em narrativas posteriores sobre mulheres.

11 de fevereiro de 2024

Vidas Passadas

Já não é a primeira vez que o Cinéfilo Preguiçoso se surpreende com o aumento da afluência de público nas salas que frequenta e que se pergunta se se tratará de uma tendência robusta ou de uma efémera flutuação estatística. A sala em que assistiu a Vidas Passadas (2023) estava apinhada, o que ainda é mais surpreendente por se tratar de um filme independente, parcialmente falado em coreano, e por ser a primeira longa-metragem de uma realizadora desconhecida, Celine Song, que até agora se tinha dedicado à escrita para teatro e televisão. É admissível que o facto de o filme contar uma história simples com contornos românticos, assim como a inesperada nomeação para Óscar de melhor filme, estejam a contribuir para a sua popularidade. Vidas Passadas centra-se na relação entre duas personagens, Na Young e Hae Sung, que começa com uma paixoneta infantil em Seul e persiste ao longo do tempo, sempre à distância, depois de Na Young emigrar com os pais para a América e acabar por se casar e enveredar por uma carreira de escritora. Quando Hae Sung, ao fim de vinte e quatro anos, finalmente a visita em Nova Iorque, interrogam-se sobre como seriam as suas vidas se tivessem tomado decisões diferentes. Vidas Passadas adopta um tom contido, sóbrio e plácido para contar esta história centrada nas angústias sobre as diferentes vidas alternativas, paralelas à existência real, a que o acaso e o livre-arbítrio nos conduzem. Nos diálogos entre estas personagens e Arthur, o marido norte-americano de Nora (nome adoptado por Hae Young na sua nova vida), surge recorrentemente uma palavra coreana que exprime um conceito budista afim da “providência” ou do “destino”. As duas personagens usam essa palavra para tentar explicar a sua relação à luz do que terão sido um para o outro em vidas passadas. A ambiguidade da palavra “vida” é explorada de forma subtil: pode referir-se a hipotéticas encarnações anteriores, num contexto budista, ou a épocas passadas de uma mesma vida, de que nos sentimos tão desligados como se tivesse sido outra pessoa a vivê-las. A maneira linear e despojada como Song conta esta história, claramente autobiográfica, é outros dos trunfos: recorrer a excessos emocionais e invenções estilísticas seria quase inevitavelmente uma receita para o desastre. Contudo, essa virtude coincide com a maior fraqueza do filme, que se mantém num registo brando e indistinto, a que falta alguma coisa que eleve Vidas Passadas ao patamar de obra genuinamente interessante e capaz de deixar marcas. Seja como for, saúde-se o sucesso que parece estar a obter. Não há razão para que os numerosos espectadores que passaram parte de uma tarde de Inverno na companhia deste filme tenham dado por mal empregado o seu tempo.

4 de fevereiro de 2024

Anatomia de Uma Queda

Quando vemos Anatomia de Uma Queda (Justine Triet, 2023), premiado com a Palma de Ouro, recordamos inevitavelmente um filme que estreou em Portugal há mais ou menos um ano: Tár (Todd Field, 2022). Ambos têm como protagonista uma mulher forte que cai em desgraça por motivos que não ficam totalmente esclarecidos. Nos dois filmes, damos por nós a perguntar-nos se desconfiamos da protagonista apenas por ser uma mulher com sucesso – uma figura tão rara, que só pode ter conquistado esse estatuto de modo desonesto, manipulando todos, claro. Talvez por explorar mais a noção de narrativa, Anatomia de Uma Queda é menos intenso do que Tár. Enquanto no filme de Todd Field estamos dentro da cabeça em desintegração da protagonista, no de Justine Triet situamo-nos numa sala de tribunal, um local onde todos tentam impor a sua própria descrição dos factos, sabendo que ganhará não a verdade, mas a versão mais convincente – como aliás afirma explicitamente um dos advogados. Sandra Voyter (Sandra Hüller), a protagonista sobre quem recai a suspeita de ter matado o marido, um escritor frustrado que supostamente lhe faz a vida negra, é, além disso, uma romancista de sucesso – portanto, alguém que sabe contar histórias. Esta capacidade reforça a desconfiança que suscita: em tribunal, o advogado da acusação chega a ler passagens dos seus livros para a incriminar. Enquanto espectadores, temos acesso apenas a um momento da vida deste casal, através do registo sonoro de uma discussão, feito pelo marido, e mesmo esta situação deixa lugar a dúvidas. É o único momento em que vemos o marido em acção; de resto, ele é sempre descrito por outros.  Em contraponto aos relatos da protagonista, temos os depoimentos contraditórios das testemunhas, mas também os do filho do casal, não menos contraditórios. O filho, deficiente visual desde um atropelamento que ajudou a minar a relação entre os pais, é uma personagem crucial,  que durante grande parte do filme parece ser a única pessoa que quer descobrir a verdade, em vez de impor uma versão própria dos factos. Como nunca ficamos com a sensação de que sabemos o que realmente aconteceu, podemos descrever Anatomia de Uma Queda como um filme que reflecte sobre o conceito de narrativa, mas sem propor uma narrativa unificadora. O Cinéfilo Preguiçoso já tinha visto um filme de Justine Triet (Sibyl, 2019), com temas e personagens relativamente próximos (escritores, psicanalistas e realizadores), mas Anatomia de Uma Queda é bastante melhor, por se dispersar menos em caminhos secundários. Como já tantos sublinharam, Sandra Hüller é uma actriz notável, mas convém destacar também mais dois actores: no papel de advogado de defesa, Swann Arlaud, de quem já vimos também um desempenho (ainda mais) impressionante, no papel de Yann Andréa, em Quero Falar sobre Marguerite Duras (Claire Simon, 2021); e ainda, no papel do filho cego, o extraordinário Milo Machado Graner (que esperamos ver em breve no próximo filme de Arnaud Desplechin).