26 de março de 2023

Tokyo-Ga

Há algum tempo já que o Cinéfilo Preguiçoso queria ver o documentário Tokyo-Ga (Wim Wenders, 1985) e este fim-de-semana, por acaso, encontrou-o no Filmin. Em 1983, Wim Wenders viajou para o Japão com o objectivo de filmar diferentes contextos e entrevistar algumas pessoas, em busca do que poderia restar do cineasta Yasujiro Ozu no seu país. Entre os entrevistados, está Werner Herzog, de passagem por Tóquio, que salienta que só através de uma arqueologia profunda do país será possível encontrar algum vestígio das imagens transparentes de Ozu (e que ele próprio estaria disposto a subir dez quilómetros para as encontrar). Em voz-off, Wenders responde ironicamente que, se encontrar alguma coisa, terá de ser nas cidades, já que não pretende subir tão alto. Esta divergência fundamental entre dois cineastas da mesma nacionalidade e geração é um dos momentos mais memoráveis do filme. Nos sítios por onde passa, Wenders não encontra realmente muitos vestígios de Ozu. Deixa-se fascinar por algumas idiossincrasias japonesas, como as máquinas de pachinko, o interesse obsessivo pelo golfe, a comida artificial que os restaurantes têm nas montras para anunciarem os pratos que servem e a influência americana na juventude, mas não encontra Ozu, a não ser nos comboios que atravessam a paisagem e num miúdo indisciplinado em que repara numa estação. O comentário em voz-off, cheio de lugares-comuns, expressa essa desorientação e faz notar que Wenders colaborou com excelentes escritores, como Peter Handke e Sam Shepard, mas, por si só, não é um bom escritor. Os momentos mais interessantes de Tokyo-Ga acabam por ser as entrevistas a dois antigos colaboradores de Ozu: o director de fotografia Yuharu Atsuta e o actor Chishu Ryu. Graças a eles, ficamos a saber que os filmes de Ozu, apesar de girarem em torno de personagens com enorme serenidade e grande capacidade de aceitação da vida, resultam de uma abordagem perfeccionista que leva em conta os mais ínfimos pormenores e se baseia em numerosas considerações técnicas. Atsuta revela que ainda guarda religiosamente o cronómetro que Ozu accionava no início de todas as cenas que filmava. Ryu explica que chegou a ensaiar vinte vezes uma cena, depois filmada mais vinte vezes, até Ozu ficar satisfeito. Nas conversas com estes dois entrevistados ressalta também a humildade de toda a equipa de Ozu, que funcionava como uma máquina bem oleada graças à admiração que estes profissionais sentiam pelo realizador. Estas entrevistas, portanto, acabam por sugerir que se Wenders pouco encontra de Ozu no Japão que visita, isso também se deve ao facto de os filmes do realizador japonês serem obras de arte eximiamente trabalhadas e não reflexos realistas de uma sociedade ou de um país. Tokyo-Ga permite-nos pelo menos chegar a esta constatação, apesar de ser um documentário um tanto autoindulgente e desorganizado, que hesita entre o didactismo palavroso e uma subjectividade baseada na montagem de cenas sem comentário, à maneira de Frederick Wiseman.

Outros filmes de Wim Wenders no Cinéfilo Preguiçoso: A Angústia do Guarda Redes no Momento do Penalty (1972); Os Belos Dias de Aranjuez (2016).

19 de março de 2023

Fogo-Fátuo

Depois de Oslo, 31 de Agosto (2011), de Joachim Trier, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver (em DVD) Fogo-Fátuo (1963), filme de Louis Malle baseado na mesma obra literária: Le Feu Follet (1931), de Pierre Drieu La Rochelle. As comparações entre as abordagens de Malle e de Trier são inevitáveis. Ambos os filmes se centram numa personagem que sai de um centro de reabilitação, passeia numa grande cidade e reencontra amigos; ambos descrevem uma trajectória de alienação, angústia crescente e aniquilação. Há pontos de contacto notórios: por exemplo, uma conversa com um antigo parceiro de vida boémia que entretanto formou família e assentou, dedicando-se à vida intelectual; uma cena em que o protagonista, sentado numa esplanada, observa os gestos e escuta as conversas de anónimos; uma festa. A principal diferença entre os dois filmes reside na maneira como a personagem, ao longo das poucas horas em que a acção se desenrola, se relaciona com as outras pessoas e com o ambiente que a rodeia. Enquanto o Alain de Fogo-Fátuo sofre de modo grandiloquente com a constatação progressiva do abismo que existe entre aquilo que deseja e o que o mundo lhe oferece, o Anders de Oslo, 31 de Agosto parece já ter feito há muito essa constatação e limita-se a cumprir as rotinas de socialização e retoma da vida normal que os outros esperam dele, sem ilusões em relação ao desfecho. Além disso, o filme de Malle desenvolve uma componente reflexiva, quase metafísica, e apresenta uma montagem dinâmica e complexa típica dos anos da Nouvelle Vague, ao contrário do filme de Trier, mais esparso e linear. Adivinha-se em Fogo-Fátuo uma maior afinidade com o estilo e as preocupações de Drieu La Rochelle e com uma abordagem filosófica e existencialista ao suicídio. Um ponto em comum entre os dois filmes é a importância do actor escolhido para o papel principal: Maurice Ronet (que, três anos antes, fora a primeira vítima de Tom Ripley em À Luz do Sol) consegue aqui um equilíbrio extremamente difícil entre a sobriedade e a capacidade de transmitir a fragilidade psicológica e o desespero crescente de Alain. Fogo-Fátuo pode ser uma excelente porta de entrada para quem queira descobrir a filmografia de Louis Malle, que se distingue por um eclectismo invulgar, mas também pela capacidade rara de conservar uma identidade artística bem definida ao longo das décadas, apesar da diversidade de formatos e temas. Saliente-se ainda, neste filme, a presença de Jeanne Moreau, num papel muito secundário, e a de um muito jovem Volker Schlöndorff, no cargo de assistente de realização. Curiosamente, foi também como assistente de Malle que Alain Cavalier começou a sua carreira (por exemplo, em Os Amantes). Traçar de forma exaustiva estas genealogias que configuram uma rede vasta de transmissão de saberes e influências seria um trabalho de historiografia gigantesco, mas fascinante.
 
Outros filmes de Louis Malle no Cinéfilo Preguiçoso: Os Amantes (1958); My Dinner With Andre (1981).

12 de março de 2023

Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles

Na edição mais recente da lista de melhores filmes de sempre que a revista Sight and Sound organizou, Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman (disponível no Filmin), ficou em primeiro lugar. Dando uma vista de olhos a esta nova lista, ainda sem a ter analisado a fundo, o Cinéfilo Preguiçoso fica com a sensação de que lhe falta alguma perspectiva histórica, na medida em que inclui títulos recentes que não temos a certeza se serão recordados no futuro (muitos dos quais realizados por homens) e ignora ou empurra para lugares secundários obras de realizadores há muito tempo importantíssimos para os cinéfilos em geral. Enquanto listas anteriores padeciam de uma reverência excessiva pelo cânone, destacando insistentemente filmes como Citizen Kane (1941) ou O Couraçado Potemkine (1925), esta privilegia a contemporaneidade e a diversidade. Numa lista em que receamos ver aparecer a qualquer momento um título ou outro da série Avatar, surpreende o facto de um filme tão «difícil» como o de Akerman ter ficado em primeiro lugar. Não vale a pena estarmos com paninhos quentes: Jeanne Dielman é um filme difícil de ver. Dura mais de três horas, tem poucos diálogos e documenta repetitivamente as rotinas de uma protagonista inexpressiva, com uma vida em que pouco acontece: a personagem principal dedica-se a actividades domésticas e prepara refeições enquanto ganha o seu sustento e o do seu filho recebendo homens que lhe pagam por sexo (atrás de portas fechadas). Já alguém disse que neste filme reina o «suspense do quotidiano»: de facto, continuamos a vê-lo na expectativa de perceber até que ponto a realizadora consegue aguentar a ausência de acontecimentos. É irónico que Jeanne Dielman tenha ultrapassado, no primeiro lugar da anterior versão desta mesma lista, um realizador que costuma ser descrito como «mestre de suspense». A questão é que continuamos a ver os filmes de Hitchcock não só para sabermos o que vai acontecer a seguir nas histórias que contam, mas sim tanto por motivos formais e visuais, como pela capacidade que têm de evocar questões que não estão imediatamente presentes na narrativa e nas imagens. E vemo-los (assim como aos filmes de outros realizadores que antes ocuparam os lugares cimeiros desta lista) com deslumbramento, esquecendo-nos de tudo o resto. O mesmo não acontece quando assistimos a Jeanne Dielman, que é um filme que só a posteriori se torna interessante, depois de um fim inesperado, quando começamos a pensar em todas as suas implicações e problemas. Tem sido descrito como «filme feminista», mas mesmo este rótulo parece simplificá-lo e empobrecê-lo. Jeanne não é bem uma simples «vítima do patriarcado»; dir-se-ia que escolheu aquela forma de vida e que está contente com ela, já que, até certo ponto, nada faz para a modificar. O que sabemos da sua história e dos seus antecedentes é demasiado escasso para permitir leituras sociológicas. Sem dúvida, o facto de este filme ocupar o primeiro lugar de uma lista em que antes se destacaram títulos tão diferentes traduz a tendência actual de valorização de critérios não estritamente estéticos na apreciação das obras de arte. O problema é que, enquanto os critérios estéticos nunca estão totalmente separados de outras considerações, os critérios não estéticos tendem a menorizar a vertente estética, acabando por privilegiar escolhas menos complexas e menos ricas. Não falta complexidade a este filme de Akerman, mas convém continuarmos a discuti-lo para percebermos se esta é inequivocamente cinematográfica e se os motivos não cinematográficos que o projectaram para a posição que ocupa nesta lista ampliam, interpretam mal ou prejudicam o seu valor cinematográfico. Será interessante não só conferirmos o lugar que ocupará nesta lista daqui a dez anos, mas também avaliarmos como esta distinção afectará a apreciação, no seu todo, da obra de Akerman, da qual constam filmes que, de um ponto de vista estético e artístico, estão mais alinhados com os critérios de valorização que a crítica privilegiou durante décadas, como, por exemplo, o extraordinário La Captive (2000). E esperemos também que daqui a dez anos haja mais mulheres a realizarem filmes, se quiserem – uma das melhores maneiras de combater a desigualdade é através da igualdade de oportunidades, que hoje ainda não existe.

5 de março de 2023

Oslo, 31 de Agosto

Ainda no Filmin, o Cinéfilo Preguiçoso viu Oslo, 31 de Agosto (2011), segunda longa-metragem de Joachim Trier, realizador norueguês que recentemente obteve um grande sucesso e reconhecimento crítico pelo filme A Pior Pessoa do Mundo (2021). Oslo, 31 de Agosto baseia-se no romance Le Feu Follet, de Drieu La Rochelle, que já tinha sido adaptado para o cinema por Louis Malle em 1963. A acção desenrola-se durante algumas horas da vida de Anders, um ex-toxicodependente na casa dos trinta anos que desfruta de uma licença para sair do centro de reabilitação onde vive. Anders visita alguns amigos em Oslo, vai a uma entrevista de emprego sem grande convicção, tenta telefonar a uma antiga namorada e acaba a noite numa festa em que quebra a sua abstinência alcoólica. Ao longo de todo o filme, há um contraste entre a componente social, feita de encontros mais ou menos embaraçosos, conversas e partilha de desabafos, e a angústia e o desânimo profundo que Anders sente e que só ocasionalmente vêm à superfície. A sociedade funciona à base de linguagem e códigos comuns; aquilo que é alheio a essa linguagem e que é do foro da experiência íntima existe como que num mundo paralelo. Trier consegue mostrar essa clivagem com notável sobriedade e inteligência, também graças à magnífica interpretação de Anders Danielsen Lie, presença habitual nos filmes deste cineasta. Oslo, 31 de Agosto perde alguma força quando passa das deambulações diurnas para as cenas na festa, na discoteca e, na madrugada seguinte, numa piscina que será encerrada no fim do Verão. Sucedem-se alguns lugares-comuns típicos dos filmes que mostram personagens em espirais destrutivas, com ou sem uma promessa de redenção ao virar da esquina. Contudo, mesmo esses lugares-comuns acabam por ter, de forma deliberada ou involuntária, uma função: demonstram que nem sempre um banho de piscina ao romper do dia simboliza um renascimento; nem sempre o cinema salva. Em face da abundância de filmes com mensagens de esperança que soam a falso, ou que se autodescrevem como “hinos à vida”, são de assinalar a honestidade e os escrúpulos morais com que Trier nos propõe um filme cuja única mensagem parece ser: a sociedade tem as suas leis, o tempo passa e às vezes as pessoas sofrem. Embora menos complexo, na aparência, do que A Pior Pessoa do Mundo, que completou a “trilogia de Oslo” de que Oslo, 31 de Agosto é a segunda parte, acaba por ser mais satisfatório do que este terceiro filme. O percurso de vida de Julie, errático e volátil, é menos interessante do que o retrato instantâneo de Anders, que se limita a enfrentar as repercussões práticas ou morais de decisões que tomou no passado, preferindo abster-se de qualquer decisão no presente. Não se pode inferir muito sobre a trajectória artística deste realizador apenas com base em dois filmes. Por isso, o Cinéfilo Preguiçoso vai tentar ver a primeira obra desta trilogia, Reprise (2006).