29 de maio de 2016

Uma Nova Amiga



Segundo o realizador François Ozon, o filme Uma Nova Amiga (2014), estreado em Lisboa ao fim de uma longa espera e de inúmeros falsos alarmes, foi adaptado livremente do conto «The New Girlfriend», de Ruth Rendell, num tom e num espírito deliberadamente próximos dos da série Alfred Hichcock Presents. Dentro da obra de Hitchcock, talvez o filme Vertigo/A Mulher que Viveu Duas Vezes (1958) seja uma referência ainda mais importante do que a série televisiva. Tal como Madeleine Elster/Judy Barton (Kim Novak) encarna a figura da amante morta de Scottie (James Stewart) em Vertigo, também David/Virginia (Romain Duris) encarna Laura, a amiga morta de Claire (Anaïs Demoustier), em Uma Nova Amiga. A atmosfera onírica das recordações do passado das amigas na casa de infância de Laura e o quadro que representa Laura recordam igualmente Vertigo. David/Virginia é um homem que se sente melhor com a aparência feminina ou uma mulher num corpo de homem? Claire aproxima-se de David/Virginia simplesmente porque ele substitui a sua amiga morta e lhe permite consumar uma relação que nunca teve com ela, ou porque se sente atraída tanto por David como por Virginia? Em todos os seus filmes, Ozon esteve atento à ambiguidade sexual das personagens e ao modo como os papéis associados ao género podem ser simplistas e enganadores. Uma Nova Amiga não tenta resolver estas dificuldades: o seu objectivo parece consistir em retratar a circulação de afectos, desejos e memórias, sem deixar entrever soluções. No livro The Argonauts (2015), que aborda um tema próximo deste filme, Maggie Nelson sugere que tentar definir a identidade sexual das pessoas é menos importante do que deixá-las serem quem são, sem terem de se explicar permanentemente. A questão mais importante deste filme de Ozon é precisamente esta liberdade, defendida por Nelson, de se ser como se é. A concessão dessa liberdade a David/Virginia é o factor que o faz (muito melodramaticamente) despertar de um coma e que abre caminho para um final idílico. Só na aparência este final faz concessões ao sentimentalismo: mostrar a felicidade no final dos percursos tão acidentados destas personagens é um acto quase revolucionário.

22 de maio de 2016

O Lobo de Wall Street



O Lobo de Wall Street (2013), de Martin Scorsese, estreou num conhecido canal temático e o facto mereceu ampla campanha publicitária. O Cinéfilo Preguiçoso não podia ficar indiferente e aproveitou para ver um filme que lhe tinha escapado aquando da estreia em salas. O Lobo de Wall Street é um filme onde o estilo e os temas predilectos de Scorsese são reconhecíveis nos primeiros fotogramas. O argumento, baseado no livro de memórias do protagonista Jordan Belfort, narra a ascensão e queda de uma empresa de corretagem cujos métodos agressivos e de legalidade mais do que duvidosa a aproximam bizarramente dos bandos mafiosos que Scorsese retrata em muitas das suas obras anteriores. As semelhanças não se ficam por aqui: tal como em Goodfellas (1990) ou Casino (1995), o esquema narrativo adopta uma perspectiva de primeira pessoa (e é fácil aqui arriscar alusões ao sacramento da confissão e à formação católica do realizador), sendo a ascensão e queda descritas com uma lucidez retrospectiva que abre caminho para algo que se assemelha ambiguamente à redenção. A vulgaridade, a amoralidade e a venalidade de Belfort e dos seus acólitos são exploradas com uma intensidade que roça os limites de uma autoparódia plenamente consciente da parte do autor. O Lobo de Wall Street pouco acrescenta de novo à obra de Scorsese: o tom é eufórico e pletórico, Jonah Hill (no papel de Donnie, braço direito de Belfort) faz de Joe Pesci, e Thelma Schoonmaker encarrega-se da montagem com a mesma competência e virtuosismo das últimas décadas. Fica a impressão de um realizador sem nada a demonstrar, que se entretém a explorar territórios novos mas sem quaisquer veleidades de ruptura com o seu passado e os seus hábitos.

15 de maio de 2016

Birdman



Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) de Alejandro G. Iñárritu (2014), visto recentemente na televisão, aborda o tema sempre fértil do artista em crise. O que há nas crises existenciais que torna a sua representação apelativa? São momentos em que o passado, o presente e o futuro embatem uns nos outros e a ininteligibilidade do mundo, dos outros e dos nossos próprios actos se expõe em toda a sua implacável crueza, enquanto nos questionamos sobre o que há de real e de ficcional na nossa vida. (Como a dada altura o filme nos recorda, Shakespeare, no início do século dezassete, explicou isto melhor do que ninguém: «[life] is a tale/Told by an idiot, full of sound and fury/Signifying nothing».) As personagens principais de Birdman são actores, figuras já de si permanentemente divididas entre a ficção e a realidade. Ainda que o protagonista seja Riggan (Michael Keaton), um actor de Hollywood em declínio que protagonizou blockbusters mas quer provar que é um artista a sério com uma adaptação teatral de Raymond Carver, a figura de Mike (Edward Norton) exprime mais enfaticamente a cisão entre real e ficção. Mike, um actor com uma presença teatral impressionante, não sente qualquer dificuldade no palco; contudo, não sabe existir fora dele: a sua vida reduz-se ao teatro. Através do confronto destas duas personagens, impõe-se a ideia quase paradoxal de que ser autêntico no teatro é inseparável de ser autêntico na própria vida. Incapaz de concretizar esta ou qualquer outra síntese, o filme Birdman, no entanto, divide-se em dois. A realização parece entretida com um história diferente, mais pretensiosa, menos dolorosa, menos verdadeira: a de Iñárritu a tentar fazer arte pensando que a arte é uma coisa decorativa, grandiloquente, espectacular, cheia de truques e efeitos gratuitos, quando, na realidade, a arte que as personagens e os actores representam se relaciona com as dificuldades mais comezinhas, quotidianas, miseráveis e essenciais das suas vidas. Este filme foi premiado com quatro Óscares da Academia, incluindo o de Melhor Filme, o de Melhor Realização e o de Melhor Argumento Original. Michael Keaton viu escapar-se-lhe das mãos (para Eddie Redmayne) o Óscar que este filme mais mereceria.

8 de maio de 2016

Cemitério do Esplendor



Ser cinéfilo em Lisboa exige atenção e paciência. Na segunda semana de exibição, o último filme do tailandês Apichatpong Weerasethakul, que é apenas um dos maiores realizadores da actualidade, já só está visível em duas salas, ao princípio da tarde e à noite. Ao longo de década e meia de carreira, oito longas-metragens (uma delas em co-realização) e numerosas curtas e instalações, Apichatpong tem vindo a construir um percurso singularíssimo, com acolhimento entusiástico nos circuitos dos festivais ocidentais e na crítica especializada (por oposição à criticazinha que se contenta com recensões bem-dispostas e rondas de entrevistas patrocinadas). Em muitos dos filmes deste realizador, uma matriz de crenças budistas relacionadas com a reencarnação serve de base para cenários, ambientes e ramificações narrativas em que diferentes planos se sobrepõem ou intersectam com fluidez desconcertante: o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, o humano e o animal, o passado e o presente, o corpóreo e o espiritual, o quotidiano e a lenda. Cemitério do Esplendor (2015) não foge a este registo e vem claramente na continuidade de obras anteriores, não faltando uma ou outra piscadela de olho: a sequência final, por exemplo, evoca Syndromes and a Century (2006). O Cinéfilo Preguiçoso não tem qualquer problema com autocitações ou repetições: os cineastas verdadeiramente grandes (Kiarostami, Rohmer, Hong Sang-Soo…) têm mais que fazer do que tirar coelhos da cartola, filme após filme, para entreter a galeria. A partir de uma história que envolve soldados atacados por uma sonolência inexplicável e internados numa antiga escola, Apichatpong oferece mais um filme em que as fronteiras entre o mistério e o quotidiano mais comezinho deixam de existir, de tão porosas que são. Mais uma vez, o realizador alcança a proeza de respeitar tanto o mistério como a inteligência do espectador, não receando deixá-lo sem bússola neste território repleto de alusões, desvios e fantasmas. Weerasethakul pertence à categoria restrita de criadores que produzem uma obra intensamente original sem procurarem a originalidade por meio de artifícios e golpes de rins, limitando-se a serem coerentes consigo próprios.

1 de maio de 2016

Le fils de Joseph



No IndieLisboa, o Cinéfilo Preguiçoso não viu os filmes de Whit Stillman e de Mia Hansen-Løve porque acredita ingenuamente que estes estrearão em breve nas salas de cinema. Em relação ao filme de Eugène Green que passou no festival, seria difícil manter a mesma crença. Temos de agradecer ao IndieLisboa a possibilidade de ver em sala os trabalhos mais recentes deste realizador tão singular. No festival do ano passado vimos La Sapienza (2014) e este ano não perdemos Le fils de Joseph (2016), pelo que pudemos comprovar que Eugène Green continua a fazer os filmes que bem lhe apetece, totalmente distintos do que se pode ver por aí. Tematicamente, Le fils de Joseph gira em torno da relação entre pai e filho, não se esquecendo de explorar algumas referências bíblicas como a fuga para o Egipto da sagrada família ou a história de Abraão e Isaac. Como acontece em La Sapienza, o pretensiosismo e o humor involuntário de certas conversas são um dos alvos preferidos de Green. Em Le fils de Joseph, o contexto destas conversas é o meio literário: Oscar Pormenor (Mathieu Amalric) é um editor irascível; há lançamentos de livros dominados por conversas de chacha; Maria de Medeiros encarna Violette Tréfouille, uma crítica de livros inculta mas muito social. Outro dos traços distintivos do cinema de Eugène Green é a capacidade de captar o mistério dos actores: reincidentes em filmes deste realizador, Fabrizio Rongione e Natacha Régnier continuam extraordinários. Embora Green não seja dado à defesa militante de ideais ou pontos de vista estéticos, a sua atitude é de resistência: como Straub/Huillet ou Rohmer, faz os filmes que quer fazer, alheio a tendências e a flutuações do gosto – essa é a ideia que transmite ao cinéfilo agradecido.