24 de abril de 2016

Innocence of Memories | L'Aquarium et la Nation


O Cinéfilo Preguiçoso está a acompanhar a edição deste ano do IndieLisboa. Innocence of Memories (2015), de Grant Gee, exibido na secção “Silvestre” é um objecto híbrido, misto de (pseudo)documentário, ensaio e narrativa metaficcional na voz de uma personagem secundaríssima do romance The Museum of Innocence, de Orhan Pamuk. O filme alterna longas deambulações nocturnas pelas ruas de Istambul (entregues aos cães vadios e aos poucos seres humanos que trabalham durante essas horas mortas) com imagens de lugares e objectos referidos no livro, além de excertos de uma entrevista a Pamuk. Vários níveis de ficção e metaficção entrelaçam-se: o livro, o museu descrito no livro (concebido para celebrar o amor entre o narrador e Füsun, uma prima distante) e o museu real, aberto ao público em Istambul desde 2012. A reflexão sobre as relações entre as memórias, os lugares e os objectos atravessa todos estes níveis e confere-lhes uma coesão conceptual que complementa a sensualidade quase fetichista com que a profusão de recordações do museu é filmada. Grant Gee é um cineasta e fotógrafo inglês que ganhou notoriedade com documentários sobre a banda Radiohead e sobre o escritor W.G. Sebald. Também na secção “Silvestre”, a sessão de curtas-metragens n.º 4 foi alvo de atenção devido à presença de L’Aquarium et la Nation (2015), de Jean-Marie Straub, que tem mantido uma actividade intensa (cerca de dois filmes realizados por ano) após a morte da sua colaboradora de sempre, Danièle Huillet, em 2006. Partindo de textos de Malraux, Straub construiu uma obra ao mesmo tempo densa e formalmente esparsa. O facto de este filme ser a proposta mais radical e ousada desta sessão não terá decerto surpreendido nenhum dos presentes na sala 3 do São Jorge.

17 de abril de 2016

Mergulho Profundo



Pode parecer estranho confessar que se espera alguma surpresa de um filme que se integra num subgénero muito específico, de um remake, ou até do mundo em geral, mas convém que o universo não se afunde sempre na repetição e na satisfação de expectativas. Não foi por ser um remake do filme A Piscina de Jacques Deray (1969) que o Cinéfilo Preguiçoso se interessou por Mergulho Profundo, de Luca Guadagnino (2015). Foi por causa do realizador, responsável pelo belíssimo Eu Sou o Amor (2009). Outro elemento de interesse foi o subgénero, caracterizado pela tensão entre, por um lado, a atmosfera paradisíaca de um lugar idílico e isolado, incluindo habitualmente um(a) adolescente tentador(a), e, por outro, a sensação de ameaça ou perigo iminente, como nos filmes Swimming Pool, de François Ozon (2003) ou Beleza Roubada, de Bernardo Bertolucci (1996). A variação mais importante que Mergulho Profundo acrescenta a este modelo reside no campo de forças definido pelo par de protagonistas. Desde o princípio se percebe que Harry Hawkes (Ralph Fiennes), produtor de música, é um homem com um plano: recuperar a ex-companheira Marianne Lane (Tilda Swinton). Ralph Fiennes, um actor shakespeariano conhecido pela intensidade contida e quase fria, desempenha aqui um papel muito diferente do habitual: Harry é absolutamente histriónico e descontrolado; se os outros não desconfiassem dele, seria maior do que a vida; como desconfiam, vê-se reduzido ao papel de Iago, sempre a tentar contaminá-los com sugestões e suspeitas reais ou injustificadas. Em contraste com esta verbosidade exibicionista, Tilda Swinton assume a personagem de uma cantora rock que perdeu a voz e se vê obrigada a manter-se em silêncio – uma situação bastante perturbadora para o espectador, diga-se de passagem. Perante estas duas figuras tão fortes, Dakota Johnson e Mathias Schoenaerts desempenham meramente o duplo papel de adjuvantes/oponentes. Morre sempre alguém nestes filmes ou livros em torno de uma piscina. Quando isso acontece em Mergulho Profundo, o espectador não fica surpreendido. Swimming Pool, de François Ozon, em contraste, reserva para o final uma variação decisiva, uma surpresa que transfigura tudo. A ausência desta surpresa, mais do que os ademanes estilísticos do realizador, torna o filme de Guadagnino muito menos interessante do que o de Ozon.

10 de abril de 2016

Menina Else | La Ronde



Graças às sessões Double Bill, organizadas pela Cinemateca nas tardes de sábado, é possível assistir a dois filmes pelo preço de um só. A mais recente foi dedicada a duas adaptações para o cinema de peças de Arthur Schnitzler. Menina Else (1929), realizado por Paul Czinner, é um objecto curioso. Filme mudo (acompanhado ao piano, nesta sessão, por João Paulo Esteves da Silva), revela ainda alguma dependência dos códigos de representação da época, mas também um dinamismo e uma modernidade notáveis no tratamento de certas sequências. O ritmo lento e a dilatação inusitada do tempo da narrativa tornam-se ocasionalmente frustrantes, mas permitem uma percepção mais aprofundada sobre o percurso que a protagonista é forçada a fazer, da frivolidade para a decisão mais grave e repugnante da sua curta vida. Elisabeth Bergner, no papel de Else, mostra-se igualmente credível nas cenas mais dramáticas e nos pequenos gestos (descalçar as meias, despejar açúcar na concavidade de uma fatia de pão). Czinner é um dos muitos cineastas cuja carreira foi estropiada pela ascensão do nacional-socialismo; perante este filme, justifica-se que se lamente o esquecimento relativo em que caiu. La Ronde (1950), de Max Ophüls, oferece-nos uma dezena de vinhetas sobre o amor, com personagens que transitam de um episódio para o seguinte, num movimento que um narrador/mestre-de-cerimónias (Anton Walbrook) compara ao de um carrocel e que intersecta todos os estratos sociais, da prostituta ao conde. Embora a brevidade dos enredos nos afaste da riqueza humana de filmes posteriores de Ophüls, como Le Plaisir (1952), e ainda que o tom de sátira resvale por vezes para a condescendência, La Ronde é um filme engenhoso e sedutor na sua ligeireza e fugacidade plenamente assumidas. Ophüls mostra mais uma vez o seu talento para controlar elencos repletos de vedetas evitando desequilíbrios e explosões de egos. É impossível não salientar a fabulosa Danielle Darrieux, que voltaria a colaborar com o realizador em Le Plaisir e Madame De… (1953) e que se prepara para festejar o seu 99.º aniversário daqui a poucas semanas.

3 de abril de 2016

John From




No Verão, Telheiras torna-se um bairro vazio e tropical onde pouco acontece além de um ou outro voo do estridente periquito-de-colar, espécie exótica invasora que aí tem proliferado nos últimos tempos. Não há tempo melhor para a imaginação. À semelhança destes periquitos, a protagonista (Júlia Palha) de John From (João Nicolau, 2015) parece deliberadamente confusa em relação ao sítio onde mora. Telheiras cruza-se com a Melanésia, um vizinho fotógrafo mais velho parece subitamente dotado dos maiores encantos, enquanto o namorado se torna desinteressante, a lista de músicas num leitor de MP3 vai sendo consultada como oráculo e a dada altura o bairro é invadido por um estranho nevoeiro que causa outros acontecimentos inusitados, como o roubo e o reaparecimento do carro do fotógrafo. John From capta com pleno sucesso o tédio opressivo do Verão e a arbitrariedade das paixões, e oferece um objecto cinematográfico inesperado mas que convoca fantasmas cinéfilos muito familiares, como o filme coming of age e o filme de aventuras. De realçar ainda o magnífico trabalho realizado na banda sonora: o mosaico de fragmentos de playlists, música étnica, ruídos misteriosos e cantos de aves exóticas fornecem a paisagem acústica ideal para a suspensão de incredulidade inerente à transformação progressiva de um bairro periférico de Lisboa em ilha do Pacífico, à qual não falta sequer um majestoso casuar passeando-se, imperturbável, por um parque de estacionamento.