31 de julho de 2022
Crepúsculo
24 de julho de 2022
A Paixão de Swann
Em 2022, mais precisamente no dia 18 de Novembro, comemora-se o centenário da morte de Marcel Proust. O Cinéfilo Preguiçoso é um grande fã de Proust e tem pensado em ver filmes relacionados directa ou clandestinamente com este escritor. Esta semana viu A Paixão de Swann (1984) em DVD. Até Volker Schlöndorff realizar este filme, a história da relação de Proust com o cinema incluiu algumas tentativas falhadas de adaptação da Recherche, por cineastas como René Clément, François Truffaut, Luchino Visconti, Joseph Losey ou Peter Brook. Antes de A Paixão de Swann, Schlöndorff já tinha realizado várias adaptações de obras literárias (entre as quais, em 1966, O Jovem Törless, a partir de Musil, e, em 1979, O Tambor, a partir de Günter Grass), portanto não é um novato nesta área. A decisão que lhe permitiu concretizar aquilo com que outros tinham apenas sonhado foi de carácter prático: perante uma obra de vários volumes e com mais de duzentas personagens, trabalhando com os argumentistas Jean-Claude Carrière e Marie-Hélène Estienne a partir de uma ideia inicial de Peter Brook, concentrou-se em Charles Swann, um dos protagonistas dos dois primeiros volumes – em particular na estranha relação deste esteta e coleccionador judeu com a cortesã Odette de Crécy. Mais do que isso, dentro da história de Swann e Odette, Schlöndorff optou por filmar um dia em que há um ponto de viragem na relação, a partir do qual faz vários flashbacks e um flashforward final, com que o filme termina, poucos meses antes da morte de Swann. A relação entre Swann (Jeremy Irons) e Odette (Ornella Muti) é uma escolha inteligente, por ser um dos elementos mais importantes da Recherche, funcionando ao longo do romance, por aproximações e afastamentos, como uma espécie de “auxiliar de leitura” não só das outras relações amorosas, mas também da atitude do próprio narrador relativamente à arte e à vida. Esta relação parece começar por iniciativa de Odette, que seduz Swann, até ao momento em que percebe que o conquistará totalmente negando-se a ele. No dia que acompanhamos neste filme, Swann, vencido pelo desejo e pelo ciúme, resigna-se a percorrer os restaurantes e as festas da cidade em busca de Odette, que, apesar de se cruzar com ele em vários momentos, continua a fugir-lhe. Esta é a noite em que Swann percebe que só terá descanso se, escandalizando a alta sociedade em que se move e deitando a perder o seu prestígio social, se casar com esta mulher que tantos tiveram por dinheiro e que “nem sequer faz o género dele”. O facto de no filme termos acesso principalmente às humilhações e aos actos irracionais, desesperados e às vezes violentos do protagonista priva-nos das reflexões e sugestões de Proust sobre os trâmites do desejo. Por esse motivo, é possível que quem veja só este filme, sem conhecer a Recherche, encontre nele apenas uma história de amor algo intrigante. Ainda assim, A Paixão de Swann é um filme visualmente interessante, graças ao trabalho de Sven Nykvist como director de fotografia e também por efectuar uma cuidada reconstituição histórica de Paris no século XIX. Além de Irons e Muti, o elenco inclui actores como Alain Delon, Fanny Ardant ou Marie-Christine Barrault, mas a quem não é dada grande oportunidade de desenvolverem personagens com profundidade. Em 1994, Raúl Ruiz realizou aquela que é conhecida como a segunda adaptação da Recherche, em O Tempo Reencontrado. O filme de Ruiz é considerado por muitos mais fiel ao espírito proustiano do que o de Schlöndorff, mas talvez seja menos conseguido do que A Paixão de Swann, que é mais coerente e equilibrado por não ter a ambição de reflectir a complexidade estrutural e temática da Recherche. E note-se que, por muito falhados que os filmes de Clément, Truffaut, Visconti, Losey ou Peter Brook tivessem sido, o Cinéfilo Preguiçoso teria, mesmo assim, gostado de os ver.
17 de julho de 2022
A Mamã e a Puta
10 de julho de 2022
Os Contos de Hoffmann
Como vimos na semana passada, em Tetro (2009), Francis Ford Coppola inclui excertos de Os Contos de Hoffmann (1951) de Michael Powell e Emeric Pressburger. Deste filme, Coppola recupera uns momentos intrigantes em que o corpo de um autómato feminino se desintegra em partes que parecem reter ainda alguma vida – e que foram motivação suficiente para o Cinéfilo Preguiçoso procurar o DVD. Depois de ver a peça Os Contos Fantásticos de Hoffmann (1851), de Jules Barbier, inspirada em três contos de E. T. A. Hoffmann (1776-1822), Jacques Offenbach (1819-1880) compôs uma ópera fantástica com o mesmo título. Mais tarde, Thomas Beecham, que já tinha trabalhado com Powell e Pressburger em Os Sapatos Vermelhos (1948), sugeriu-lhes que fizessem um filme a partir da ópera, com libreto adaptado por Dennis Arundell. O filme segue de perto a estrutura original, dividindo-se em três partes, com um prólogo e uma conclusão. O protagonista é o próprio Hoffmann, que descreve a sua carreira de poeta através das mulheres por quem se apaixonou: em Paris, uma boneca mecânica; em Veneza, uma cortesã; numa ilha grega, uma cantora de ópera intensa e apaixonada, mas com pouco tempo de vida (sofre de tuberculose); em Nuremberga, cenário do prólogo e da conclusão, uma bailarina. Através desta descrição, é fácil perceber que são explorados em espaços emblemáticos alguns temas ou obsessões oitocentistas, como os autómatos, as marionetas, as personificações do mal, a tuberculose e a suposta volubilidade das mulheres. Desdobrado em quatro personagens, o feminino é encarado através de figuras que dão corpo a várias fantasias masculinas, ao mesmo tempo que de boa vontade se deixam manipular pelo Mal, encarnado sempre pelo mesmo actor (Robert Helpmann), em diferentes manifestações/personagens. Os realizadores poderiam ter optado por uma abordagem mais realista aos cenários, mas preferiram criar um mundo de fantasia completamente artificial e cheio de bizarria, que nos faz pensar que este filme pode ter sido uma grande influência para Eyes Wide Shut (1999), de Stanley Kubrick. Os Contos de Hoffmann já foi descrito como uma fantasmagoria que representa a vida interior do artista. Podemos dizer que forma um díptico com Os Sapatos Vermelhos, e não só por partilhar alguns elementos do elenco deste filme: enquanto, em Os Sapatos Vermelhos, a bailarina Vicky (Moira Shearer) tem de escolher entre a dedicação absoluta à dança e uma vida normal, em Os Contos de Hoffmann o protagonista vê-se obrigado a defender a sua sanidade e a integridade da sua alma num mundo de malevolência e sedução, acabando por perceber que a poesia tem de ser um acto de resistência e exige entrega total. Quase todos os actores e bailarinos são dobrados por cantores, o que permite total sinergia entre música, dança e cinema. O filme mantém um impacto visual avassalador, mas em que talvez a interpretação musical (em que assentam todos os diálogos) seja a faceta que mais envelheceu. Além de Francis Ford Coppola, realizadores como Martin Scorsese e George A. Romero manifestaram entusiasmo por Os Contos de Hoffmann, mas não se pode dizer que Powell e Pressburger tenham deixado muitos herdeiros, o que torna ainda mais singular a obra destes realizadores.
Ler também: Peeping Tom (Michael Powell, 1960).