O
documentário Rivers and Tides (Thomas
Riedelsheimer, 2001) segue o trabalho do escultor e fotógrafo escocês Andy
Goldsworthy. Goldsworthy trabalha ao ar livre, com elementos como flores,
folhas, pingentes de gelo, pedras, lama, ramos de árvores ou espinhos; geralmente
usa as próprias mãos ou recorre a poucas ferramentas. Os objectos que constrói
dão a ver formas e energias da natureza em que não reparamos habitualmente
(remoinhos, percursos do vento, a configuração dos rios, o formato das pedras,
os efeitos da presença de certos animais ou plantas), integrando-se na paisagem
ao ponto de por vezes serem por ela devorados ou destruídos – um destino que o
próprio artista simultaneamente receia e acolhe como natural e até
interessante. As imagens do artista em acção são acompanhadas pelo seu próprio
comentário, que demonstra uma grande clareza e profundidade de pensamento sobre
o espaço e a vida que ele acolhe, dispensando qualquer voz off ou intervenção alheia, elementos de que Riedelsheimer
sabiamente prescindiu. Com uma excelente banda sonora de Fred Frith, Rivers and Tides é uma sereníssima meditação
sobre fazer arte como forma de lançar raízes no mundo, mas também sobre a
efemeridade do que parece mais duradouro e sobre a persistência do que costuma
passar despercebido. Em 2018, foi lançado um segundo documentário (ainda a ver pelo Cinéfilo Preguiçoso), Leaning Into the Wind, que voltou a
reunir Goldsworthy, Riedelsheimer e Frith. No DocLisboa, o Cinéfilo Preguiçoso
não quis perder a sessão em que passou Brisseau
– 251 rue Marcadet (Laurent Achard, 2018), filmado no âmbito da série Cinéma, de notre temps (antes Cinéastes de notre temps). Este episódio
distingue-se pelo facto de incluir momentos e comentários em que o realizador
pensava não estar a ser filmado. Como ele próprio confessa, Brisseau tinha
preparado a fundo o que ia dizer, mas é graças ao momentos mais espontâneos da
conversa que ficamos a conhecer melhor os cineastas e os filmes que prefere ou
detesta, os três gatos da família, ou certos episódios da sua vida de realizador
e cinéfilo.
28 de outubro de 2018
21 de outubro de 2018
Drôles d'Oiseaux
O Cinéfilo Preguiçoso tinha optado por não ver o filme Drôles d’Oiseaux (2017) quando este foi exibido na secção de Antestreias da Festa do Cinema Francês de 2017, na esperança, ingénua, de que à antestreia se seguisse a estreia. À falta desta, cansado de esperar, comprou o DVD. Drôles d’Oiseaux, segunda longa-metragem de ficção da realizadora francesa Élise Girard, integra numerosos elementos narrativos que já foram explorados até à exaustão em dezenas de filmes: a jovem (Lolita Chammah) que chega da província para tentar singrar em Paris, o livreiro idoso e misantropo (Jean Sorel), um passado misterioso, um subenredo político/ecológico, uma história de amor improvável. Não faltam elementos cómicos (os maços de notas que o livreiro insiste em oferecer à jovem nas ocasiões mais inusitadas, um gato muito traquinas que rouba todas as cenas em que entra) e até uma pitada de realismo mágico (as gaivotas que caem fulminadas por um mal desconhecido). É notável a maneira como Girard (e a co-argumentista Anne-Louise Trividic, colaboradora habitual de Patrice Chéreau), a partir de um enredo banal, constroem um filme delicadíssimo, repleto de momentos contemplativos, elipses e diálogos desconcertantes. Em mãos menos hábeis, a tentativa de situar o filme num híbrido de policial, comédia romântica e realismo poético urbano resultaria inevitavelmente num objecto amorfo e sem interesse. O principal feito de Girard é o de nos oferecer, a partir de materiais tão simples, um filme cativante e singular que pode ser descrito como um relato na primeira pessoa de uma luta para esconjurar a solidão e encontrar um lugar no mundo (ou em Paris, o que vai dar ao mesmo). Única nota negativa: o subaproveitamento de uma actriz excelente como Virginie Ledoyen num papel secundário pouco desenvolvido. Os cinéfilos não deixarão de reconhecer, no actor Jean Sorel, o marido de Catherine Deneuve em Belle de Jour (Buñuel, 1967). Por fim, confirma-se que é sempre boa ideia contar com um director de fotografia como Renato Berta quando se quer filmar em Paris: recorde-se As Noites da Lua Cheia (Éric Rohmer, 1984), Rendez-Vous (André Téchiné, 1984) e O Amante de Um Dia (Philippe Garrel, 2017).
Outros filmes com
livrarias no Cinéfilo Preguiçoso: 84 Charing Cross Road (David Jones, 1987); Café Lumière (Hou
Hsiao-hsien, 2003); Ramiro (Manuel Mozos, 2017); A Livraria (Isabel Coixet, 2017).
14 de outubro de 2018
No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos
Visto
na RTP2, o documentário No Escuro do
Cinema Descalço os Sapatos (Cláudia Varejão, 2016), pedindo emprestado um
verso de Adília Lopes para o título, filma os bastidores da
Companhia Nacional de Bailado. O preto e branco parece acentuar a
condição preparatória das imagens, que, a partir do escuro, à margem das luzes
do palco, captam ensaios, correcções, comentários sobre a dificuldade de certos
movimentos, expressões de cansaço, dor e frustração, bem como alguns fragmentos
de espectáculos, geralmente filmados a partir de ângulos inacessíveis a um
espectador comum. Como no filme Ama-San (2016),
encontramos uma atenção peculiar aos momentos de repouso e distracção do corpo
de quem – bailarino ou mergulhadora – noutros instantes tem de desempenhar uma
coreografia precisa. No Escuro do Cinema
Descalço os Sapatos é um
documentário que, além de convocar a lembrança de outros filmes como A Dança, de Frederick Wiseman (2009),
sobre Le Ballet de L’Opéra de Paris, ou certos momentos de Um Verão de Amor, de Ingmar Bergman (1951), recorda algumas imagens
das artes visuais, como as bailarinas de Degas (frequentemente retratadas em
ensaios, momentos de abandono ou na expectativa da entrada em cena iminente) e a
série «As Avestruzes Dançarinas» de Paula Rego (1995). Deliberada ou não, a
ligação a estas figuras de Paula Rego efectua-se através da relação dos corpos
com o chão, complicada por todos os entraves que o peso e a gravidade podem
impor. Em Cláudia Varejão, talvez a relação com o chão assuma menos antagonismo.
Ao longo de todo o filme há muitos planos de pés e pernas – e também outros em
que estes estão estranhamente ausentes, apesar de continuarmos a ver corpos. Uma
das histórias mais impressionantes é a da bailarina que, ainda pequena, partiu
os dois pés e, a partir daí, compreendendo o valor e a função desta parte do
corpo, nunca mais na vida correu, «nem para apanhar o autocarro». Logo no
início do documentário, ouvimos um bailarino/coreógrafo explicar que os pés
estão assentes no chão, o torso está assente nas pernas, a cabeça está assente
nos ombros e este percurso demonstra que a terra sustenta as ideias. Na mesma
perspectiva, ter os pés bem assentes no chão ajuda a tornar claras as razões
para nos movimentarmos, sendo esta compreensão essencial para tornar os
movimentos nítidos e precisos. Tal como Ama-San,
No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos é
um documentário não só sobre os limites do corpo, mas também sobre a beleza e
as surpresas da sua superação.
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