26 de julho de 2020

Shoplifters


O Cinéfilo Preguiçoso continua a ver os filmes de Hirokazu Kore-eda disponíveis no videoclube das operadoras de telecomunicações. Shoplifters (2018) foi o filme que consolidou a fama deste realizador japonês, em parte graças à Palma de Ouro que lhe foi atribuída no Festival de Cannes. No argumento, detectam-se vários elementos presentes noutras obras de Kore-eda, em particular as relações intergeracionais, a transmissão de saberes entre ascendentes e descendentes e o modo como as afinidades e o livre-arbítrio condicionam as decisões de personagens em busca de integração num colectivo. Ao retratar um grupo de pessoas que partilham um tecto e uma existência no limiar da pobreza, mas que não estão ligadas por laços de sangue, Kore-eda dá primazia à discussão não só sobre o que constitui uma família mas também sobre o estatuto e a complementaridade do parentesco e dos afectos. Compreende-se, até certo ponto, o enorme sucesso de público e de crítica de Shoplifters: é um filme formalmente equilibrado e rico em conteúdo humano, com uma componente social e realista bastante forte. Contudo, faltam-lhe a subtileza e a contenção de uma obra como A Nossa Irmã Mais Nova (2015): a intenção de demonstrar que o parentesco, só por si, vale menos do que o afecto e as afinidades conduziu a algum sentimentalismo e à cedência a convenções do melodrama, sobretudo na parte final. Apesar de o recurso a estas soluções algo fáceis prejudicar o filme, há muito de interessante para descobrir e admirar em Shoplifters: a relação entre “pai” e “filho”, que faz lembrar Ladrões de Bicicletas (Vittorio De Sica, 1948); a coreografia silenciosa de gestos e deslocações nas cenas em que as personagens cometem os furtos que servem como fonte de receita para compensar os salários incertos; as cenas de interior numa casa minúscula em que a falta de privacidade devido à proximidade e dimensão minúscula das divisões é explorada habilmente.

O Cinéfilo Preguiçoso regressa em Setembro. Boas férias para todos.

19 de julho de 2020

A Nossa Irmã Mais Nova


Curiosamente, há vários filmes do realizador japonês Hirokazu Kore-eda disponíveis nos videoclubes das operadoras de telecomunicações. O Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver A Nossa Irmã Mais Nova (2015), baseado num popular manga de Akimi Yoshida. É um filme extraordinariamente tranquilo, com algumas irrupções emocionais aqui e ali, que apontam para a profundidade dos sentimentos das personagens. O enredo gira em torno de três irmãs que vivem juntas na casa grande que pertenceu aos pais. Por altura do funeral do pai, há muito afastado da família, conhecem a meia-irmã, cujo nascimento precipitou o fim do casamento dos pais e a partida da mãe delas. Percebendo que também esta meia-irmã ficou sozinha no mundo, convidam-na para viver com elas. Encontramos aqui algumas tonalidades características de autores como Tchékhov e Ozu. Como em Tchékhov, as irmãs de Kore-eda parecem suspensas no tempo e sem capacidade ou vontade de tomarem uma decisão que as projecte para uma vida diferente. Como em Ozu, no entanto, explora-se a nobreza deste estatuto, sobretudo no que toca à personagem de Sachi, a irmã mais velha, com a sugestão de que talvez ela seja mais feliz por dedicar aos outros a protecção que nunca recebeu no passado. Recordando certas personagens de Mikio Naruse, Sachi parece sempre à beira de tomar uma decisão sobre a sua vida; se acaba por não o fazer, é por reconhecer a necessidade de que a família encontre a paz e se reconcilie com o passado antes de entrar numa nova etapa, e não por fraqueza. A continuidade da família expressa-se de vários modos, como, no dia do fogo-de-artifício, através da transferência de quimonos entre as personagens femininas, mas sobretudo através da insistência em vários rituais de preparação de alimentos e bebidas a que estão associadas as memórias das personagens ausentes: as tostas com peixe miúdo, o vinho de ameixa, o caril de peixe, a enguia frita ou marinada. Como muitas destas personagens ausentes evocam mágoas, é frequente as irmãs recorrerem a esta linguagem culinária para expressarem os sentimentos que não podem ou não querem verbalizar perante as outras. É interessante apreciar o contraste com A Verdade (2019), que partilha alguns dos temas de A Nossa Irmã Mais Nova, mas num registo marcado por explosões emocionais e conflitos mais apropriados ao contexto cultural ocidental do filme. Além da capacidade de Kore-eda para expressar sentimentos intensos através de superfícies calmas, sobressai neste filme a ideia de que a beleza da vida reside nas pequenas coisas capazes de persistirem, repetindo-se através do tempo. Durante o filme, uma personagem comenta que se sente feliz por ter conseguido manter até à morte a capacidade de admirar a beleza e nós ficamos a pensar que talvez esse seja o dom que mais interessa preservar.
 
Sobre Depois da Tempestade (Hirokazu Kore-eda, 2016).

12 de julho de 2020

Martin Eden


Visto no cinema (numa sala deserta à excepção de outro espectador, o que deixou o Cinéfilo Preguiçoso inquieto quanto ao futuro da exibição cinematográfica em Portugal), Martin Eden (2019), realizado por Pietro Marcello, é uma adaptação do romance com o mesmo título de Jack London, publicado em 1909. A história, protagonizada por um jovem de origens humildes que tenta tornar-se escritor, foi transposta para Itália, numa época incerta, embora certos elementos (roupa, automóveis) pareçam remeter para os anos 70. O estilo que o realizador imprime ao filme é um híbrido entre, por um lado, a linearidade no desenvolvimento do enredo e, por outro, as inserções de imagens de arquivo e de sequências aparentemente desligadas da narrativa principal, naquilo que se pode ver como um reflexo da carreira de documentarista de Marcello (Martin Eden é apenas a sua segunda longa-metragem de ficção). Esta mistura de registos ajuda a reforçar algumas das ideias subjacentes ao percurso de Martin e reforça uma impressão de intemporalidade que evita uma leitura demasiado presa a determinada época. Infelizmente, se nos abstrairmos desta abordagem relativamente original, o que fica é um filme convencional, repleto de motivos já explorados até à exaustão por outros cineastas e escritores: o proletário apaixonado por uma filha de família burguesa, a tomada de consciência política, as agruras da vida de artista, etc. A mensagem política que Martin veicula, influenciada por Herbert Spencer e Nietzsche, defendendo a exaltação do indivíduo e opondo-se tanto ao socialismo como ao liberalismo, vai-se progressivamente transformando numa caricatura de si própria. Talvez a intenção fosse essa: o próprio London declarou que pretendia criticar a postura hiperindividualista do herói. A impressão com que se fica, em vez da ambiguidade fecunda que talvez Marcello almejasse, é de estranheza, alguma irritação e, acima de tudo, falta de vontade de revisitar mentalmente o filme para nele descobrir alguma interpretação mais interessante que tenha escapado. É também de lamentar algum abuso dos estereótipos do neo-realismo, que se reflecte no abuso da berraria e do esbracejar nas interpretações. Quanto ao prémio de melhor interpretação do Festival de Veneza, atribuído a Luca Marinelli pela sua aula magistral de overacting, mais vale nem comentar.

5 de julho de 2020

A Verdade


Visto no cinema, A Verdade (2019), de Hirokazu Kore-eda (conhecido entre nós principalmente graças a Shoplifters, de 2018), é um filme sobre uma actriz, Fabienne (Catherine Deneuve), e a relação desta com a sua carreira e com a sua filha, Lumir (Juliette Binoche). O facto de todas as personagens masculinas serem secundárias, mesmo a de Ethan Hawke (marido de Lubir), reforça a centralidade da protagonista, que é uma daquelas pessoas que, onde quer que estejam, conseguem que tudo gire sempre em torno delas. Quando pensamos em filmes em que a relação entre mãe e filha desempenha um papel importante, lembramo-nos imediatamente de Sonata de Outono (1978), de Ingmar Bergman. Em comparação com este, e apesar de a mãe do filme de Kore-eda também ser uma artista egocêntrica, antipática, absorvida pela carreira e para quem a arte sempre foi mais importante do que a vida, A Verdade é um filme onde a exploração do espectáculo das emoções negativas é residual, na medida em que as personagens principais, apesar de não se entenderem bem e de por várias vezes se envolverem em confrontos verbais, não têm discussões de vida ou de morte, ainda que fique bem claro que há questões complexas entre elas. Pensando no cinema de Almodóvar, outro cineasta para quem a figura da mãe é importantíssima, podemos até descrever A Verdade por contraste, como filme antimelodramático. (Não haverá, aliás, uma relação de eco entre o título Tudo sobre a Minha Mãe (1999), do realizador espanhol, e o título Recordações da Minha Mãe, do filme dentro do filme de Kore-eda?) O estatuto da verdade é outro dos temas principais deste filme. Lumir, argumentista nos Estados Unidos, regressa a França para celebrar a publicação do livro de memórias da mãe. Quando o lê, no entanto, conclui que a mãe, além de ter contado várias mentiras, suprimiu do relato pessoas importantes, como se estas nunca tivessem existido. Ao longo do filme, vamos percebendo, no entanto, que nem sempre as recordações da filha correspondem à verdade. Assim como a mãe é uma actriz que representa mesmo na vida e que usa tudo o que vive para alimentar a representação, a filha é uma argumentista de cinema, alguém habituado a manipular acontecimentos e diálogos, e que chega a escrever textos para a mãe e para a sua própria filha representarem na vida real, quando é preciso sensibilizar alguém para alguma coisa. Também o filme em que Fabienne participa, apesar de descrito como ficção científica, contém elementos que espelham a verdade da relação desta com Lumir, nomeadamente uma mãe que nunca envelhece e uma filha imperfeita. Como se depreende destas descrições, a estrutura de A Verdade é complexa, a ponto de deixar a impressão de que está sobrecarregada de elementos que, por não serem explorados a fundo, correm o risco de parecer decorativos e excedentários. Ainda assim, este filme, o primeiro da extensa filmografia de Kore-eda realizado fora do Japão, desencadeia uma reflexão interessante não só sobre a relação entre mãe e filha, ou sobre o estatuto da verdade, mas também sobre um dos temas que este cineasta mais gosta de trabalhar: as diferentes estratégias de sobrevivência a que as pessoas recorrem perante as dificuldades da vida.