28 de abril de 2019

Quando Uma Mulher Sobe as Escadas


Traído pela volatilidade dos horários das salas de cinema, o Cinéfilo Preguiçoso viu-se mais uma vez compelido a recorrer à colecção de DVDs. Quando Uma Mulher Sobe as Escadas, realizado por Mikio Naruse em 1960, é descrito na contracapa do DVD como um filme sobre uma mulher forte e independente. Esta descrição corresponde aproximadamente ao conteúdo, mas talvez fosse mais rigoroso dizer que se trata de um filme sobre a maneira como a teia de relações de poder e de afecto a que cada pessoa está sujeita condiciona os esforços para encontrar estabilidade sentimental e económica. O movimento da protagonista de subir as escadas para ir trabalhar repete-se ao longo do filme apesar de alguns esforços pouco convictos para não cumprir este percurso diário. A personagem principal, Keiko (interpretada por Hideko Takamine, colaboradora regular de Naruse), é uma empregada de bar que aspira a comprar o seu próprio clube nocturno em Tóquio. Em paralelo, é tentada pela possibilidade de se casar pela segunda vez, apesar da promessa que fez ao primeiro marido, que morreu num acidente de viação. Na tentativa de alcançar estes objectivos, acumula humilhações e dissabores e cruza-se com pessoas cujo egoísmo ou fraqueza as transforma em adversárias. Ao contrário de Kikuko em O Som da Montanha (1954), Keiko é incapaz de um gesto radical de ruptura; ou talvez seja a sociedade que engendra demasiados constrangimentos. Quando Uma Mulher Sobe as Escadas ensina uma lição amarga: os obstáculos a uma mudança de vida podem ser tão robustos que o desejo de independência se torna irrelevante. A sociedade dilui as fronteiras entre a fraqueza de carácter e o voluntarismo. Naruse dedica igual carinho à personagem que rasga a página e enfrenta as consequências como à personagem que, ainda que de cabeça erguida, cede às vicissitudes. Um aspecto que distingue este filme é a predominância de ambientes ocidentalizados: os quimonos e outros apetrechos tradicionais são adereços de trabalho de cariz folclórico, dissociados da vida quotidiana. A estética, a montagem e a música (do compositor vanguardista Toshiro Mayuzumi) podiam ser de um filme da Nouvelle Vague. A voz-off faz-nos pensar em Wong Kar-Wai. Naruse apresenta, sem dúvida, um Japão em mudança, mas deixando bem claro que a busca da felicidade é uma ambição intemporal, como intemporal é a constatação de que a mediocridade e a mesquinhez podem ser tão devastadoras como a maldade.

14 de abril de 2019

A Pereira Brava


O Cinéfilo Preguiçoso costuma ver no cinema os filmes de Nuri Bilge Ceylan, mas, desta vez, por causa dos 188 minutos de duração de A Pereira Brava (2018) e também por não ter ficado muito convencido com Sono de Inverno (2014), procrastinou um bocadinho. Felizmente, ainda foi a tempo. A Pereira Brava é um filme sobre um recém-licenciado com pretensões a escritor que, terminada a licenciatura, se vê obrigado a regressar à casa dos pais na sua aldeia de origem, no Oeste da Turquia, enquanto tenta arranjar maneira de publicar o livro que escreveu e de prosseguir com a vida. Parece haver um contraste acentuado entre as ambições elevadas de Sinan e a realidade sórdida da aldeia, onde se destacam os problemas familiares causados pelo vício do jogo do pai. O contraste e a discussão são, aliás, as formas que Sinan escolhe para se relacionar com o mundo. Pressentimos que não deve ser um grande escritor observando-o em interacção com diversos interlocutores: a mãe, antigos colegas de escola, dois imãs, e (numa das cenas mais cómicas e mais conseguidas) um autor consagrado que, atormentado por um princípio de enxaqueca, não mostra grande paciência para o aturar. A intuição de ele ser um mau escritor não assenta, ao contrário do que Sinan pensa, no facto de ele “não gostar de pessoas” – há grandes escritores que nunca “gostaram de pessoas” – nem no facto de o seu primeiro livro não vender, mas sim na sua preferência por tópicos grandiosos abordados de modo abstracto, na sua vontade de moralizar, na superioridade irónica com que agride os outros e nas falhas de compreensão que revela. A maior ironia do filme, talvez suspensa nos momentos finais do reencontro com o pai, relaciona-se precisamente com a cegueira do seu protagonista. Sinan demora muito a perceber não só a complexidade da figura do pai (que vê como totalmente negativa, apesar de o filme não o retratar apenas desse modo), mas também as semelhanças do pai com ele próprio, ao ponto de, tal como o pai trai todos para poder continuar a jogar, também ele cometer actos moralmente condenáveis para poder publicar o primeiro livro. Do mesmo modo, parece escapar-lhe a complexidade do seu espaço de origem, que também nós, através do seu ponto de vista, vemos como feio, mesquinho e pejado de pistas falsas – até à cena final, altura em que a sua beleza se torna evidente. Nesta secção do filme, percebemos também que se Sinan não integrar todas as dimensões contraditórias do universo que herdou e tem de recriar (na vida e na obra), corre o risco de se tornar, tal como o pai, um falhado que teve de desistir dos seus próprios sonhos. Ostentando alguns dos traços distintivos do cinema de Ceylan, como conversas muito longas entre personagens antipáticas e insatisfeitas que testam a paciência do espectador, filmadas quer em paisagens esmagadoras quer em interiores claustrofóbicos, ou os contrastes – enganadores – entre o elevado e o mesquinho, o belo e o miserável, a grandeza e a derrota, A Pereira Brava, embora não propriamente agradável de ver, é um filme que, pelo modo  comovente como expressa a complexidade que Ceylan sempre tentou captar, não desmerece a comparação com outros bons filmes deste realizador, como Climas (2006) e Era Uma Vez na Anatólia (2011). Os sons da picareta dentro do poço que continuamos a ouvir mesmo durante o genérico final sugerem, no entanto, que Ceylan percebe que fazer cinema, escrever um livro e viver podem ser tarefas árduas e muitas vezes inglórias. Será que este poço vem de Moonfleet (Fritz Lang, 1955), outro filme em que a relação pai/filho está em questão? E o cão “perdido”, que depois parece reaparecer em vários lugares estranhos, não virá de Stalker (Andrei Tarkovsky, 1979)?

Na próxima semana não haverá Cinéfilo Preguiçoso, mas voltaremos a seguir à Páscoa. Boa pausa para todos.

7 de abril de 2019

Manchester by the Sea | Harold and Maude


Esta semana, o Cinéfilo Preguiçoso viu dois filmes que têm em comum mostrar duas personagens muito diferentes entre si que, reunidas por contingências da vida, aprendem a conviver uma com a outra. Trata-se de um subgénero muito representado no cinema norte-americano, e não só: basta lembrar, entre muitos outros, Rain Man (Barry Levinson, 1988) e Driving Miss Daisy (Bruce Beresford, 1989). Infelizmente, este tipo de história, embora proporcione filmes que arrancam com frequência elogios profusos, também se presta à lamechice e a mensagens estereotipadas sobre as virtudes da tolerância e da diversidade. Manchester by the Sea (Kenneth Lonergan, 2016), visto na televisão, centra-se em Lee (Casey Affleck), um porteiro de Boston que se vê obrigado a tomar conta do sobrinho, Patrick, após a morte súbita do irmão. Este filme tem vários problemas. Em primeiro lugar, parece demasiado óbvio que o aparecimento de Patrick na vida de Lee é um estratagema dramático para evocar o acidente que destruiu a família deste, gradualmente revelado ao longo do filme (por vezes de forma canhestra e com uma banda sonora xaroposa que é um autêntico tiro no pé). O impacto dramático do filme deriva muito mais das circunstâncias da personagem do que das qualidades do argumento ou da realização: só alguém com uma pedra no lugar do coração deixará de se compadecer de uma personagem a quem sucedem tantas desgraças e que ganha o salário mínimo e vive sozinho num quarto minúsculo. Abundam os lugares-comuns sobre a vida das comunidades blue collar a que Hollywood nos habituou: pescarias, lutas em bares, cerveja bebida no sofá em frente à televisão. Para finalizar: nem as interpretações nem o argumento (que recebeu um Óscar, incompreensivelmente) se distinguem da mediania. Manchester by the Sea não é um desastre completo e contém alguns pontos fortes, como o reencontro entre Lee e a ex-mulher (Michelle Williams), mas deixa muito a desejar, parecendo dever o seu sucesso à contenção sentimental do protagonista. Em Harold and Maude (1971), de Hal Ashby, visto na Cinemateca, as duas personagens díspares são um jovem de um meio abastado, que dedica os tempos livres a elaboradas simulações de suicídio, e uma septuagenária excêntrica. O encontro dá-se num dos funerais a que ambos costumam assistir: Harold por morbidez, Maude porque vê neles celebrações do ciclo da vida. Este confronto de temperamentos, evoluindo inicialmente para a amizade e depois para um envolvimento romântico, poderia facilmente redundar num filme pretensioso e carregado de mensagens hipócritas de exaltação da vida. Ashby evita essa armadilha apostando num humor macabro, iconoclasta, cheio de auto-ironia, e encadeando peripécias a um ritmo vertiginoso. Outro aspecto saudável é a quase completa ausência de explicações psicológicas: Harold e Maude (Bud Cort e Ruth Gordon, excelentes) são como são e cada um tem de lidar com isso; o passado é o que menos interessa. Harold and Maude foi um fracasso de crítica e público quando estreou, mas acabou por se tornar um filme de culto. Talvez isso se deva ao contraste entre a formatação estética e ideológica que caracteriza grande parte do cinema mainstream dos nossos dias e a espontaneidade e ousadia dos anos 70 (seria possível hoje mostrar no cinema uma relação amorosa, por sinal nada platónica, entre um quase adolescente e uma idosa?). O Cinéfilo Preguiçoso duvida muito seriamente que Manchester by the Sea se torne um filme de culto e que ainda seja exibido em sala em 2064, sobretudo com uma plateia tão bem composta como estava a da Sala Félix Ribeiro na sessão de sábado.