23 de abril de 2023

Munch

Os filmes sobre pintores mundialmente famosos tendem quase sempre, com mais ou menos variações, a basear-se em episódios biográficos, desejando ilustrar a evolução artística do pintor e sugerir ligações entre vida e obra. Munch (2023), visto esta semana no Filmin, faz precisamente isso, mas com um teor de pretensa sofisticação e uma sobreabundância de recursos estilísticos e formais. Rejeitando a linearidade narrativa, entre recuos e avanços no tempo ao longo de todo o filme, o realizador e co-argumentista Henrik Martin Dahlsbakken mostra-nos Edvard Munch em várias épocas: na juventude, apaixonado por uma mulher casada; na meia-idade, a debater-se com um esgotamento nervoso; e, na velhice, preocupado em preservar os seus quadros da pilhagem nazi. Há ainda um Munch na Berlim dos nossos dias, tão incompreendido pelo meio artístico e tão psicologicamente instável como o original. Cada época é filmada com um estilo e uma paleta cromática próprios, provavelmente para realçar as facetas distintas de um artista cuja complexidade Dahlsbakken quis, a todo o custo, exibir. A mão pesada de um realizador decidido a mostrar que é um “autor” faz-se sentir do primeiro até ao último minuto de Munch. Os diálogos pomposos e as opções formais gratuitas (por exemplo, o preto-e-branco nas cenas da clínica psiquiátrica, ou o recurso a uma actriz para representar o artista na última fase da sua vida) abafam qualquer ideia ou aspecto interessante da vida e personalidade do pintor norueguês. Sem conhecer a restante filmografia deste realizador, há razões para especular se toda esta elaboração formal resulta da incapacidade de contar uma história de forma simples. Ironicamente, o momento mais forte deste filme ocorre no final, quando são mostrados os quadros do artista nas paredes de um museu. O impacto visual e a riqueza destas obras, qualificadas como “demasiado simples” pelos críticos do Munch contemporâneo, são muito superiores a qualquer coisa que o espectador tenha visto nos noventa e tal minutos anteriores. Isto levanta inevitavelmente a questão: para quê fazer filmes sobre pintores famosos? À falta de se chamar Maurice Pialat (Van Gogh, 1991), talvez Dahlsbakken devesse ter procurado, pelo menos, estar à altura da simplicidade ilusória dos quadros de Munch, abdicando das invenções formais que tornam este filme pesado e estéril.
 
O Cinéfilo Preguiçoso vai fazer uma pausa no próximo fim-de-semana, mas regressará daqui a duas semanas.

16 de abril de 2023

Babylon

Babylon, de Damien Chazelle (2022), é sobre a transição do cinema mudo para o cinema sonoro em Los Angeles, entre fins da década de 1920 e o início da década de 1930. Pode ser articulado com uma série de filmes recentes sobre a memória do cinema, como Os Fabelmans (Steven Spielberg, 2022) ou Império da Luz (Sam Mendes, 2022), que foram produzidos durante a pandemia, talvez por esta ter possibilitado, para alguns de nós, um período de paragem e reflexão propício a olhares retrospectivos, mais ou menos críticos ou sentimentais. O Cinéfilo Preguiçoso viu no videoclube de uma operadora de telecomunicações esta longa-metragem de 189 minutos, que, no entanto, tendo em conta a sua grandiosidade visual, de certeza ganhará em ser vista num ecrã de cinema. Esta grandiosidade nem sempre funciona bem, mas o realizador e argumentista Damien Chazelle assumiu que o filme, se tivesse de falhar ou pecar por alguma coisa, seria pelo excesso, não pela contenção. Babylon é uma fantasmagoria com laivos dantescos, cores saturadas, luzes fortes e sombras nítidas, pontuada pela banda sonora de Justin Hurwitz. Explora o lado negro de um período retratado de forma mais ligeira e elegante em Serenata à Chuva (Stanley Donen e Gene Kelly, 1952), filme citado várias vezes, sobre o qual no fim se sugere que é uma versão diferente dos acontecimentos narrados. Babylon surge assim como ponto de partida para Serenata à Chuva, apresentando o lado negro da história deste musical emblemático: a tragédia, a sordidez, o jogo, o álcool, as drogas, os suicídios, o desespero, os anjos, os demónios e os fantasmas que marcaram este período de transição no cinema. Estabelece-se um contraste irónico entre o caos e o ruído das filmagens do cinema mudo, por um lado, e o silêncio e a meticulosidade exigidos pelo cinema sonoro, por outro, mas o segundo causa uma enorme turbulência na vida das estrelas e dos profissionais do primeiro. Chazelle confessa ter um interesse particular não só por personagens sonhadoras que se entregam totalmente à arte que praticam, correndo o risco de, com ela, perderem tudo, mas também pelos custos, o esforço e as lágrimas associados à carreira artística – a vertente sombria da arte, que, na sua opinião, devia ser mais explorada pelo cinema. À semelhança das personagens de La La Land (Damien Chazelle, 2016), os protagonistas de Babylon – Jack Conrad (Brad Pitt), Nellie LaRoy (Margot Robbie) e Manny Torres (Diego Calva) –, entre outras figuras secundárias que ajudam a caracterizar o contexto, dedicam as suas vidas à arte e, portanto, perdem tudo quando o cinema deixa de ter um lugar para eles. Já foi muito discutido o fim do filme, em que reencontramos numa sala de cinema um dos protagonistas que, vinte anos depois da intriga principal, regressa à cidade de que teve de fugir. Evocando desnecessariamente o fim sentimentalista de Cinema Paraíso (Giuseppe Tornatore, 1988), esta cena mostra Manny a confrontar-se com o modo como a sua própria história é indestrinçável da história e do futuro tanto do cinema como da cidade de Los Angeles. De certo modo, este fim ajuda a explicar como Babylon é um filme caótico e ambicioso que, com um pouco mais de contenção e um pouco menos de ambição, poderia ter sido bem melhor. Sublinhe-se, no entanto, que apesar de ser um filme falhado, falha com algum esplendor. Além disso, traz uma coerência ao currículo de Chazelle que nos ajuda a perceber melhor quem ele é enquanto realizador.

Ler também: O Primeiro Homem na Lua (Damien Chazelle, 2018).

2 de abril de 2023

Verão 1993

Depois de ver Alcarràs (2022), o Cinéfilo Preguiçoso ficou com vontade de descobrir Verão 1993 (2017), a primeira longa-metragem de Carla Simón, que está disponível na plataforma Filmin. Marcadamente autobiográfico, Verão 1993 acompanha os primeiros meses da nova vida de Frida, uma órfã de seis anos que foi acolhida pelos tios numa casa rural do interior da Catalunha. Filmes como este, centrados na aprendizagem e nos traumas de uma personagem infantil, implicam quase invariavelmente resolver um dilema complicado: mostrar o ponto de vista da criança sem que este se torne predominante a ponto de gerar uma sucessão de impressões na primeira pessoa, sem espaço para o olhar do espectador adulto. Verão 1993 resolve este dilema com sensibilidade e equilíbrio, também graças ao trabalho da actriz principal, Laia Artigas, que transmite de forma notável tanto angústia como uma manha nascida do desespero, usada como arma num mundo que sente como alheio e vagamente hostil. Os melhores momentos do filme são aqueles em que Frida aparece como um corpo estranho e selvagem, um enxerto num microcosmos que funcionava bem e onde o lugar desta criança não é evidente. Coisas tão simples como trazer da horta uma couve, em vez da alface que lhe tinha sido pedida, mostram este problema de adaptação que nem o carinho nem a atenção dos pais adoptivos conseguem mitigar. É curiosa a maneira como Carla Simón explora algumas características do cinema fantástico: em duas ocasiões, Frida põe em risco a integridade de Anna, sua irmã adoptiva e prima de três anos, devido a uma mistura de inconsciência ou incapacidade de distinguir entre o bem e o mal, por um lado, e de algo que, por outro, faz lembrar a perversidade sobrenatural de certas personagens dos filmes de terror. Contribuem para esta impressão de fantasmagoria tanto a casa, isolada no meio da vegetação, como as poucas cenas passadas na vila, onde vemos desfiles folclóricos de bonecos grotescos. A atmosfera misteriosa do filme relaciona-se também com o facto de a morte dos progenitores de Frida só ser explicada no fim, e mesmo assim sem toda a clareza. Igualmente notável é a forma discreta como o filme termina: a conversa em que Frida fica a saber como morreu a mãe e uma brincadeira com o tio que redunda em lágrimas são cenas banais, mas dão a entender de forma eficaz que uma fronteira foi transposta e que, por fim, a criança começa a cavar o seu nicho naquele universo. Verão 1993 é um filme aparentemente menos ambicioso do que Alcarràs, porque isento de preocupações sociológicas explícitas e muito centrado numa única personagem, mas, como este, mostra uma segurança e uma inteligência assinaláveis. Será interessante ver se, no futuro, Carla Simón continuará a explorar a sua memória pessoal e as dinâmicas familiares e territoriais, ou se irá procurar desafios diferentes.
 
Como de costume nesta altura do ano, o Cinéfilo Preguiçoso vai fazer uma pausa durante a próxima semana. Boa Páscoa para todos.