29 de março de 2020

A Ghost Story


Visto em DVD, A Ghost Story (2017), é a quarta longa-metragem de David Lowery, um realizador que tem dado pouco nas vistas, mas que já tem uma filmografia respeitável e diversificada, incluindo numerosas curtas-metragens, um filme dos estúdios Disney e um filme de temática arturiana, a estrear em breve. O título não engana: trata-se mesmo de uma história de fantasmas e não de uma qualquer alusão metafórica. O fantasma em questão é de um homem que sofre um acidente de viação fatal, mas permanece no mundo dos vivos na forma de uma figura coberta por um lençol branco, capaz de interagir com os objectos, mas invisível para a maioria das personagens. O filme, escasso em diálogos, é constituído essencialmente por longas cenas que mostram o fantasma como testemunha passiva dos acontecimentos na casa onde vivia com a mulher: a partida desta, a chegada de novos inquilinos, a demolição e a construção de um edifício de escritórios. A Ghost Story explora de forma cativante um espaço físico com um estatuto quase equivalente ao de uma personagem, ao servir de receptáculo para uma sucessão de vidas, aspirações e desgostos, sofrendo mudanças e desgastando-se como um ser humano (aqui podemos encontrar algum paralelismo com Onde Estás, Bernadette?, onde a casa da protagonista funciona como materialização da sua vida mental). É também de louvar a ousadia da aposta de representar um fantasma de forma tão ingénua e tão próxima do imaginário infantil (não é de estranhar que as crianças e os outros fantasmas sejam as únicas personagens que o conseguem ver). Há que notar que esta representação abrange igualmente os espectadores: também nós vemos a figura branca vagamente ridícula, especada enquanto o mundo muda à sua volta; o fantasma é uma espécie de espectador dentro do filme. As personagens adultas vêem e ouvem manifestações visuais e acústicas subtis que poderiam ter saído de um filme de Carpenter ou Shyamalan, e que estão muito mais de acordo com as convenções contemporâneas de representação do sobrenatural no cinema. A Ghost Story seria um filme mais conseguido se Lowery tivesse resistido à tentação de explorar teorias sobre a circularidade do tempo (enunciadas num longo discurso de uma personagem algo irritante, interpretada pelo cantor Will Oldham): o regresso ao passado e a repetição dos eventos, em vez de enriquecerem o filme, tornam-no mais confuso e diluem a força da ideia inicial. É um filme ingrato para o elenco, porque Casey Affleck, o protagonista, passa noventa por cento das cenas quase imóvel e coberto por um pano e Rooney Mara está pouco tempo em cena; dentro destes constrangimentos, os actores, aliás colaboradores habituais de Lowery, saem-se bem. Apesar de deixar algo a desejar, A Ghost Story, rodado quase em segredo e com um orçamento irrisório, entre projectos de maior envergadura, revela-nos um realizador original, com a vontade e o talento necessários para nos surpreender.

22 de março de 2020

Onde Estás, Bernadette?


Esta semana, foi mais difícil escolher um filme. Como os cinemas estão fechados, o universo de escolha do Cinéfilo Preguiçoso circunscreveu-se a DVDs, videoclube da operadora de telecomunicações e filmes gravados na televisão. Preferindo, neste momento, um filme que não sobrecarregasse de conteúdo a sua cabecinha já de si preocupada, o Cinéfilo Preguiçoso optou por Onde Estás, Bernadette? (Richard Linklater, 2019), disponível nos videoclubes. Baseado num romance de Maria Semple (que também foi argumentista de séries como Beverly Hills 90210 ou Mad About You) sobre uma arquitecta em bloqueio criativo, é um filme muito mais convencional do que outros de Richard Linklater, que aqui se limita a contar uma história e a filmar um argumento, sem a reflexão visual e/ou verbal a que nos habituou em filmes como Waking Life (2001), Boyhood (2014) ou na série Before Sunrise (1995)/Before  Sunset (2004)/Before Midnight (2013). Vivendo numa casa decrépita em Seattle cheia de recantos inesperados e opções de arrumação originais, a protagonista (interpretada por Cate Blanchett), misantropa com justificação, sofrendo de uma ponta de agorafobia, porém fascinada por espaços e problemas arquitectónicos de resolução praticamente impossível, é interessante, mas o filme explora as suas obsessões de modo decorativo e superficial. Esta personagem merecia um filme mais forte e menos sentimental. O final, que nos mostra um reencontro familiar na Antárctida, é uma tentativa pouco convincente de conciliar a exaltação dos valores familiares e o respeito pelo potencial criativo de Bernadette. A resolução de vinte anos de bloqueio criativo e problemas pessoais surge como um passe de mágica: é indolor, instantânea e parece falsa. Visualmente, Onde Estás, Bernadette? lembra um pouco A Vida Secreta de Walter Mitty (Ben Stiller, 2013) ou certos aspectos dos filmes de Mike Mills, como o recurso a sequências de documentário, embora usados sempre de modo mais preguiçoso e menos orgânico do que nos filmes deste realizador. Do ponto de vista estético, Onde Estás, Bernadette? deixa a desejar. Distrai um pouco, no entanto, e podemos sempre tentar imaginar como este material de partida poderia ter sido usado para fazer um bom filme.

15 de março de 2020

Amour Fou


Visto em DVD, Amour Fou (2014), da realizadora austríaca Jessica Hausner, aborda o último período da vida do escritor Heinrich von Kleist, em particular as suas tentativas de encontrar uma parceira para um pacto suicida. Neste filme, Kleist é sempre mostrado como uma personagem singular, que sobressai nos salões burgueses onde é recebido. A sua postura hirta, as suas roupas e os seus diálogos intensos, dos quais transparecem a decepção em face da vida e o desejo de morrer, subvertem a ortodoxia doméstica feita de paz conjugal, serões musicais e o vaivém dos criados, constante e preciso como uma coreografia, mas Amour Fou é percorrido por uma ironia subtil assente em mal-entendidos a que mesmo a figura de Kleist não escapa. Um dos méritos do filme é caracterizar Kleist como aquilo que ele foi – um corpo estranho na sociedade e na paisagem literária contemporânea – sem necessidade de nos mostrar os seus antecedentes ou de fazer referências extensas à sua obra. A propósito de Barbara, o Cinéfilo Preguiçoso discutiu recentemente a necessidade de escolha que se impõe em qualquer filme de cariz remotamente biográfico: admitir que o público conhece a personagem, ou adoptar uma atitude pedagógica, mostrando diversos acontecimentos da vida do biografado, com o risco de transformar o filme no equivalente visual a uma entrada de enciclopédia. Apesar de serem filmes profundamente diferentes, Barbara e Amour Fou têm em comum o facto de escolherem claramente a primeira opção. Só ocasionalmente é feita referência à obra de Kleist, e quase sempre para sugerir alguma afinidade entre ele e Henriette Vogel, a mulher que, convicta de padecer de uma doença fatal, aceita acompanhá-lo na morte. Henriette afirma compreender que a personagem principal da novela A Marquesa de O possa amar o homem que a violou, ao contrário da família próxima, que repudia essa ideia com horror; da mesma forma, a sua relação com Kleist parece cheia de contradições. Apesar de acabar por aceitar a sua proposta fatal, o filme sugere que o patamar de comunhão espiritual pura que o escritor almejava nunca é atingido. Isto é reforçado pelo facto de Henriette parecer hesitar imediatamente antes de ser alvejada junto ao lago Wannsee, e também, com ironia amarga, pela revelação de que afinal não sofria de qualquer doença. Do ponto de vista estético, Amour Fou faz lembrar muito mais os interiores holandeses do século XVII do que o período romântico. É impossível também não pensar na maravilhosa adaptação de A Marquesa de O, de Rohmer (1976), pelo sentido pictórico e pela rigorosa gestão do espaço da cena. Para concluir, Amour Fou, sem ser um filme particularmente inovador, é uma variação inteligente do filme biográfico que nos deixa com expectativas sobre o trabalho futuro de Hausner.

8 de março de 2020

Suspiria


Depois de, há alguns meses, ter visto Suspiria de Dario Argento (1977), o Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver, em DVD, Suspiria, o remake realizado por Luca Guadagnino (2018). São filmes muito diferentes. Enquanto o primeiro era breve, intenso e cheio de cores primárias e ritmo, envolvendo o espectador numa atmosfera de conto de fadas ou pesadelo, sem lhe dar tempo para duvidar do bom gosto e das inverosimilhanças de certos momentos, o segundo é pesado, de cores apagadas, ambiciona integrar no seu enredo subtextos culturais e políticos sofisticados, e sobrecarrega o espectador com sequências de suposto terror que provocam distanciamento em vez de convencer. Como conseguiu Guadagnino estragar tudo? Em primeiro lugar, não contente em usar apenas o filme de Argento como inspiração, saturou Suspiria com imagens e referências da época sem as digerir coerentemente. Ao longo do filme, o espectador dá por si a recordar, entre outras influências, Fassbinder, Kubrick, os filmes O Exorcista (William Friedkin, 1973) e As Vidas dos Outros (Florian Henckel von Donnersmark, 2006), ou as figuras de Pina Bausch (clara inspiração para a Madame Blanc de Tilda Swinton) e de Francesca Woodman. Em segundo lugar, Guadagnino complicou desnecessariamente a narrativa principal com enredos secundários relacionados com: referências ao Holocausto e ao nazismo; as actividades terroristas dos Baader-Meinhof, um grupo de guerrilha urbana comunista e anti-imperialista; um psicanalista (igualmente interpretado por Tilda Swinton) que procura a mulher judia desaparecida durante a guerra; sequências com a família menonita da protagonista no Ohio, onde a sua mãe moribunda continua a recriminá-la; e um feminismo dúbio que parece sugerir que só transformando-se em bruxas as mulheres conseguem exercer algum poder. As pessoas que gostaram deste remake descreveram-no como um filme sobre a criatividade, pelo facto de a protagonista (Dakota Johnson) ser capaz de se afirmar, apesar de no início as bruxas quererem silenciá-la, oferecendo o seu corpo à Mãe Markos, para que esta deusa demoníaca que lidera a companhia da dança continuasse a viver através do seu corpo jovem. Dir-se-ia, no entanto, que, ao contrário da sua protagonista, Guadagnino se deixou engolir por todas as referências, inspirações e complicações de que se socorreu, sem conseguir falar com a própria voz e produzir um filme convincente. O Cinéfilo Preguiçoso fica com a impressão de que Dario Argento se limitou a tentar fazer um filme de que gostasse e que o divertisse, e, por isso, acabou por fazer um filme memorável, de que ainda hoje falamos. Pelo contrário, Guadagnino ambicionava fazer uma obra-prima inesquecível e o resultado foi um filme falhado, que soçobra com o peso de tudo aquilo com que o realizador o carregou. Não vamos esquecer a excelente banda sonora de Thom Yorke e é possível que continuemos a pensar em alguns momentos do filme, mas quase sempre por maus motivos.

1 de março de 2020

Barbara


Os filmes de cariz biográfico impõem sempre um dilema quanto à abordagem a adoptar: apresentar o biografado a um público que não o conhece, ou assumir que o espectador está minimamente a par da sua vida e da sua obra? Em Barbara (2017), sexta longa-metragem realizada por Mathieu Amalric (se não contarmos com um telefilme de 2010 baseado numa peça de Corneille), gravada pelo Cinéfilo Preguiçoso na RTP2, a opção é claramente a segunda. O filme mostra-nos Jeanne Balibar (premiada com o César de melhor actriz por este desempenho) no papel de uma actriz que vai encarnar Barbara num filme realizado por um fã bastante obsessivo (o próprio Amalric) desta cantora francesa, que gozou de um sucesso colossal no seu país mas que, por razões difíceis de explicar, é relativamente pouco conhecida além-fronteiras. Sucedem-se, num ritmo vertiginoso, imagens de arquivo, cenas em que a actriz, longe das câmaras, treina para o seu papel, e cenas da rodagem do filme dentro do filme. Nem sempre é fácil perceber se estamos a ver Barbara ou Balibar, nem se a personagem de Balibar está a vestir a pele de Barbara ou a ser ela mesma. Por trás disto tudo, a personagem do realizador faz parte da linhagem de tantas outras que Amalric interpretou: um pouco alucinado, intenso e sempre à beira de perder o controlo. Isto suscita alguma ambiguidade adicional: estamos a ver a personagem do realizador, a persona de Amalric, ou o realizador do filme? Estes abismos conceptuais confundem-se com a essência do filme, que parece querer ser uma reflexão um tanto desconexa e fragmentária sobre a impossibilidade de abordar uma artista tão complexa como Barbara, e nunca uma exploração das angústias criativas de um realizador ou uma meditação metaficcional, como 8 ½ (1963), de Fellini, ou Sinédoque, Nova Iorque (2008), de Charlie Kaufman. Ironicamente, a demonstração com sucesso da tese principal (nenhum filme pode fazer justiça a uma figura como Barbara) redunda também no fracasso de Barbara. Fica-se com a impressão de que a cantora Barbara, embora omnipresente durante a totalidade do filme, se furta sistematicamente às tentativas de a expor ao olhar das câmaras, sejam estas as câmaras reais ou as do filme dentro do filme. Restam as canções, quase todas muito belas, e que são tantas outras exortações para que as pessoas desistam dessa mania pueril de tentar transmitir algo de profundo e original a propósito de um artista.