A dada altura, no filme Minha Mãe, de Nanni Moretti (2015),
Margherita (a personagem da realizadora, representada por Margherita Buy)
explica a uma actriz atónita: “Não quero ver só a personagem; também preciso de
ver a actriz.” Talvez seja mais fácil compreender esta afirmação se pensarmos
nas figuras principais de Minha Mãe:
dois filhos que vão perder a mãe. Até aqui, na obra de Moretti, o realizador
representou sempre, se não o papel do protagonista, pelo menos alguém cujos
comentários ou intervenções eram essenciais para o desenrolar da acção. Neste
filme, em contraste, a sua personagem apaga-se e mantém-se em silêncio durante
a maior parte do tempo. A vertente verbal das crises cabe a Margherita,
personagem que parece ter sido fabricada precisamente para que Nanni
conseguisse ouvir-se e ver-se a si próprio não só como realizador, mas também
como filho em luto, replicando e clarificando o desdobramento sugerido na
direcção de cena por Margherita. Num filme luminoso como Querido Diário (1993), Nanni Moretti
enfrentava a possibilidade da própria morte com um sentido de humor e uma
intensidade que acentuavam a beleza da vida. Em Minha Mãe, no entanto, a perda lança as personagens numa crise que
as leva a pôr em questão a sua própria existência: a realizadora questiona o modo como se
relaciona com as pessoas, enquanto o irmão, representado pelo próprio Moretti,
decide abandonar o emprego. Mesmo a componente cómica do filme (relacionada
principalmente com a actuação de John Turturro – por sinal um dos mais
subaproveitados actores de Hollywwod – como actor no filme dentro do filme)
contribui para acentuar a melancolia e a sensação de incapacidade de lidar
tanto com as pequenas como com as grandes catástrofes da vida. Estamos muito
longe do histrionismo egocêntrico de filmes como Sonhos de Ouro (1981) ou Palombella
Rossa (1989), centrados na personagem recorrente de Michele Apicella, mas
mantém-se como denominador comum a tentativa de mostrar as neuroses e
ansiedades de personagens colocadas perante o desafio de lidar com as
expectativas daqueles que as rodeiam.
30 de novembro de 2015
She’s Funny That Way | Steve Jobs
She’s Funny That Way (Peter Bogdanovich, 2014) recupera a sempiterna
personagem da prostituta com bom coração, neste caso representada por Imogen
Poots. Curiosamente, a actriz Lucy Punch, que aqui representa outra call girl,
já aparecia num papel semelhante em You
Will Meet a Tall Dark Stranger (Woody Allen, 2010). (Aliás, Allen é
contumaz neste tipo de personagem: recorde-se ainda, por exemplo, Deconstructing Harry ou Mighty Aphrodite.) A comicidade do filme
de Bogdanovich assenta nas falhas de informação de umas personagens
relativamente às outras: há sempre alguém que sabe alguma coisa sobre outra pessoa que esta
preferiria que fosse segredo. Um dos momentos mais hilariantes é o primeiro dia
de ensaio da peça, altura em que todas as personagens já sabem tudo o que há
para saber umas das outras e têm de viver com isso. O filme nunca cumpre as
expectativas que chega a criar, mas assinale-se a homenagem à comédia screwball.
Steve Jobs (Danny Boyle, 2015), é um biopic que tenta fugir aos mais nefastos hábitos e convenções do género, com sucesso relativo. Algumas escolhas estéticas (como o uso sucessivo de três formatos diferentes – 16 milímetros, 35 milímetros e digital) e a gestão hábil da tensão dramática graças ao argumento do excelente Aaron Sorkin, fazem do filme um objecto interessante, mas nunca mais interessante do que o próprio biografado. Por mais cândida que seja a exposição das falhas de carácter do fundador da Apple, o final (dia do lançamento do iMac) resvala com demasiada facilidade para a apoteose.
Steve Jobs (Danny Boyle, 2015), é um biopic que tenta fugir aos mais nefastos hábitos e convenções do género, com sucesso relativo. Algumas escolhas estéticas (como o uso sucessivo de três formatos diferentes – 16 milímetros, 35 milímetros e digital) e a gestão hábil da tensão dramática graças ao argumento do excelente Aaron Sorkin, fazem do filme um objecto interessante, mas nunca mais interessante do que o próprio biografado. Por mais cândida que seja a exposição das falhas de carácter do fundador da Apple, o final (dia do lançamento do iMac) resvala com demasiada facilidade para a apoteose.
23 de novembro de 2015
Right Now, Wrong Then
O enredo de Right Now, Wrong Then (Hong Sang-Soo, 2015) cabe em poucas linhas. Um realizador (Chun-Su), recém-chegado à cidade de Suwon para dar uma palestra, visita um templo e mete conversa com uma jovem pintora (Min-Hee). Ao longo do resto do dia, visitam vários locais (um café, o ateliê da pintora, um restaurante, a casa de uma amiga da pintora). No dia seguinte, após a exibição do seu filme e a palestra, o realizador despede-se dos anfitriões e regressa a casa. Esta história é-nos mostrada duas vezes, com pequenas mudanças nos planos e nos diálogos, assim como algumas diferenças, discretas mas cruciais, no teor do que é dito entre as duas personagens. Por exemplo: na segunda vez, Chun-Su exprime a sua opinião sincera sobre os quadros de Min-Hee (“São quadros de alguém que precisa de consolo”) e revela espontaneamente que tem mulher e filhos, em contraste com a hipocrisia de que deu mostras na primeira vez. Ambos os finais têm um incontornável ponto em comum (Chun-Su e Min-Hee separam-se, provavelmente para sempre), mas em circunstâncias diferentes. Filmes que exploram o efeito de escolhas ou do acaso e que exibem as respectivas consequências sob forma de bifurcações da narrativa tornaram-se tão comuns que quase se pode falar de um subgénero; Smoking/No Smoking (Alain Resnais, 1993) e Sliding Doors (Peter Howitt, 1998) são apenas dois exemplos. Contrariamente à generalidade destes filmes, Right Now, Wrong Then não descreve destinos dramaticamente alterados por um golpe de sorte ou uma decisão inócua. De uma maneira aparentemente ligeira e modesta, sugere-nos que as escolhas que nos permitem viver um pouco melhor ou um pouco pior com os outros são feitas dia após dia, nos cenários mais banais. Não surpreende que Hong tenha sido criticado por repetir, filme após filme, os seus esquemas formais predilectos, mas quer-nos parecer que ele fará tanto caso desses remoques como Éric Rohmer ou Abbas Kiarostami. Right Now, Wrong Then recebeu o Leopardo de Ouro no Festival de Cinema de Locarno deste ano. Uma rápida vista de olhos à lista dos anteriores premiados (José Álvaro Morais, Terence Davies, Claire Denis, Jafar Panahi, Jean-Claude Brisseau, Albert Serra) permite apreciar até que ponto a tradição de recompensar a criatividade e a ousadia se mantém viva neste festival, ao contrário de outros com maior renome. Este filme tem estreia prevista nas salas de cinema portuguesas em Dezembro deste ano.
16 de novembro de 2015
Trois souvenirs de ma jeunesse | A Academia das Musas
No
LEFFEST deste ano, o Cinéfilo Preguiçoso viu os filmes mais recentes de quatro
grandes realizadores no activo: Arnaud Desplechin, José Luis Guerín, Aleksandr
Sokurov e Hong Sang-Soo. Destes, os mais imediatamente inspiradores são o de
Desplechin e o de Guerín. Enquanto Comment je me suis disputé... (ma vie
sexuelle) (1996) girava em torno das desventuras amorosas e intelectuais de
Paul Dédalus durante o doutoramento em antropologia, Trois souvenirs de ma
jeunesse (2015) mostra-nos episódios da
infância e adolescência desta personagem, com destaque para a relação
conturbada e pouco convencional que estabelece com a namorada, Esther, cujo
não menos conturbado epílogo ficáramos a conhecer em Comment je me suis
disputé… Os estreantes Quentin Dolmaire e Lou Roy-Lecollinet saem-se bem na
delicadíssima tarefa de assumirem as personagens dos extraordinários Mathieu
Amalric e Emmanuelle Devos. (Há muito que Desplechin é um realizador admirado
pelo Cinéfilo e Trois Souvenirs de ma jeunesse não desilude: aguardemos
calmamente que estreie em sala para escrevermos mais sobre ele.)
Se o filme de Desplechin se integra sem atrito na obra do seu realizador, A Academia das Musas (2015, José Luis Guerín) revela-se um filme absolutamente inesperado. Simulando algumas técnicas do documentário, A Academia das Musas começa com uma aula de literatura sobre Dante durante a qual o professor aborda o tópico das musas literárias perante um público maioritariamente feminino e invulgarmente disponível para a discussão. O resto do filme assenta em confrontos verbais entre o professor e as cinco mulheres que considera suas musas. Duas delas (a ‘legítima esposa’ e uma aluna de cabelo curto que insiste em escrever poesia sem rima) mostram-se resistentes ao estatuto, enquanto as outras três procuram explorar esta condição nas suas vertentes literárias, críticas e existenciais, havendo inclusivamente a sugestão de que uma das musas se autonomizou ao ponto de ser ela própria, em vez do professor, a dirigir e a manipular a academia do título. Em contraste com A Cidade de Sílvia (2007), filmado maioritamente no exterior, as cenas de A Academia das Musas, com excepção de uma sequência bela e irónica entre pastores e ovelhas, decorrem preferencialmente em espaços interiores (a sala de aula, o carro, um quarto de hotel, a nova casa do professor e da mulher, onde uma nova organização da biblioteca sugere uma mudança de pensamento e de atitude). Curiosamente, em comum entre os filmes de Desplechin e de Guerín encontramos, por um lado, o tópico dos mal-entendidos do amor (associado à ideia de que nunca há comunicação verdadeira nem entre homens e mulheres nem entre mulheres), por outro as contradições entre o estatuto de musa (e de amante, mesmo que só platonicamente) e a realidade da figura feminina enquanto dotada de existência e de voz autónomas. A súmula de tudo isto é um filme desconcertante, estimulante para o intelecto e para os sentidos e de uma originalidade extrema.
Se o filme de Desplechin se integra sem atrito na obra do seu realizador, A Academia das Musas (2015, José Luis Guerín) revela-se um filme absolutamente inesperado. Simulando algumas técnicas do documentário, A Academia das Musas começa com uma aula de literatura sobre Dante durante a qual o professor aborda o tópico das musas literárias perante um público maioritariamente feminino e invulgarmente disponível para a discussão. O resto do filme assenta em confrontos verbais entre o professor e as cinco mulheres que considera suas musas. Duas delas (a ‘legítima esposa’ e uma aluna de cabelo curto que insiste em escrever poesia sem rima) mostram-se resistentes ao estatuto, enquanto as outras três procuram explorar esta condição nas suas vertentes literárias, críticas e existenciais, havendo inclusivamente a sugestão de que uma das musas se autonomizou ao ponto de ser ela própria, em vez do professor, a dirigir e a manipular a academia do título. Em contraste com A Cidade de Sílvia (2007), filmado maioritamente no exterior, as cenas de A Academia das Musas, com excepção de uma sequência bela e irónica entre pastores e ovelhas, decorrem preferencialmente em espaços interiores (a sala de aula, o carro, um quarto de hotel, a nova casa do professor e da mulher, onde uma nova organização da biblioteca sugere uma mudança de pensamento e de atitude). Curiosamente, em comum entre os filmes de Desplechin e de Guerín encontramos, por um lado, o tópico dos mal-entendidos do amor (associado à ideia de que nunca há comunicação verdadeira nem entre homens e mulheres nem entre mulheres), por outro as contradições entre o estatuto de musa (e de amante, mesmo que só platonicamente) e a realidade da figura feminina enquanto dotada de existência e de voz autónomas. A súmula de tudo isto é um filme desconcertante, estimulante para o intelecto e para os sentidos e de uma originalidade extrema.
9 de novembro de 2015
As Irmãs Brontë
A
colecção de DVDs 120 Anos de Cinema Gaumont oferece aos cinéfilos deste país,
por um preço simpático, a possibilidade de rever obras de realizadores como
Godard (Paixão, Atenção à Direita), Renoir (Toni) ou Vigo (A Atalante),
entre outros. André Téchiné, cujos filmes têm estreado com alguma regularidade
em Portugal, está representado pela sua quarta longa-metragem: As Irmãs Brontë,
de 1979. Esta obra pode ser considerada uma raridade na filmografia do
realizador, pelo seu carácter biográfico e pelo trabalho de reconstituição
histórica. O período abarcado desenrola-se entre 1834 e 1852. É-nos mostrada a
vida quotidiana nas charnecas solitárias do Yorkshire, a estadia de Charlotte
(Marie-France Pisier) e Emily (Isabelle Adjani) em Bruxelas, o desgosto amoroso
do irmão das escritoras, Branwell (Pascal Greggory), antes do seu descalabro
físico e morte, a celebridade literária das irmãs (sob pseudónimos masculinos),
as mortes de Emily e Anne (Isabelle Huppert) e a crescente intimidade entre
Charlotte e o homem com quem viria a casar. Do princípio ao fim, o filme é
esteticamente coerente e fiel a um objectivo: representar momentos escolhidos
das vidas destas criaturas extraordinárias, abdicando do pathos ou de qualquer veleidade de virtuosismo. Não existe aqui um projecto
teórico com o fim de recorrer à vida para explicar a obra. Contudo, os interiores
soturnos e opressivos, a não menos opressiva imensidão das charnecas que Emily
percorre a pé, os episódios domésticos, todos eles evocam com um pudor notável
os ambientes e as personagens que viriam a povoar os romances que trouxeram
fama global às irmãs. O esboço de vida mundana que Charlotte protagoniza, no
final do filme, ajuda a realçar a extrema solidão que ela e os irmãos viveram e
que serviu de cadinho para os romances que produziram. Uma palavra final para o
trabalho magnífico do grande Bruno Nuytten na fotografia, assim como para as aparições
especiais do crítico e realizador Pascal Bonitzer (co-argumentista deste filme)
e (mais surpreendentemente) de Roland Barthes, no papel do romancista William
Thackeray.
2 de novembro de 2015
Le Saphir de Saint-Louis | The Outrage
Este ano, o Cinéfilo
Preguiçoso só assistiu a uma sessão do Doclisboa, aquela que reuniu Le Saphir de
Saint-Louis, de José Luis Guerín (2015), e The Outrage,
de Marc Karlin (1995). A pintura e as suas projecções na vida e na História são
o denominador comum destes dois filmes. Da obra do espanhol José Luis Guerín,
além dos filmes que foram passando no Doclisboa, o público português conhece
pelo menos o poético Comboio de Sombras (1997), que estreou em sala, podia
conhecer Na Cidade de Sílvia (2007), porque vale a pena e é fácil de
obter em DVD, e poderá ver A Academia das Musas (2015) no LEFFEST.
Le
Saphir de Saint-Louis localiza-se na Catedral de Saint-Louis em La
Rochelle, prestando atenção aos pormenores de uma pintura que recorda uma
tragédia ocorrida em 1741 numa escuna que transportava escravos. É notável como
a exploração meticulosa de alguns centímetros quadrados de tela evoca tão
poderosamente a História, a geopolítica e a tragédia humana em toda a sua
crueza. Realizado por Marc Karlin (1943-1999), ‘o realizador desconhecido mais
importante a trabalhar no Reino Unido durante as últimas três décadas do século
XX’ segundo um obituário, The Outrage parte da pintura de Cy
Twombly para produzir uma reflexão mais geral sobre a importância da beleza e
da arte na vida das pessoas, um tema controverso que, mesmo neste filme, dá
origem aos depoimentos mais contraditórios. Apesar de se apoiar numa estrutura
supostamente narrativa, alegadamente contando a história de M, uma personagem
que vê a sua vida insignificante abalada pelas reflexões suscitadas por um
quadro de Cy Twombly, The Outrage transcende de vários modos
estas coordenadas mais convencionais e é um filme verdadeiramente livre,
propondo uma abordagem original de um tema já discutido até à exaustão. Ainda
bem que todos os anos é possível ver filmes sobre arte e museus no Doclisboa.
26 de outubro de 2015
As Mil e Uma Noites: Volume 3, O Encantado
O
terceiro volume de As Mil e Uma Noites (Miguel Gomes, 2015) começa com um
prólogo protagonizado por Xerazade, a narradora das histórias que dão corpo a
esta trilogia. Apesar de fluir demasiado ao sabor de ideias narrativas fugazes
e superficiais, esta secção possui uma componente auto-reflexiva interessante:
o cansaço de Xerazade e as dúvidas sobre se conseguirá continuar a aplacar
durante muito mais tempo a fúria sanguinária do rei Xariar põem em causa o
próprio dispositivo ficcional em que a trilogia assenta. Desgraçadamente, essa
fadiga e descrença parecem contaminar o resto do filme. Ao contrário dos dois
volumes anteriores, este é completamente dominado por uma única história (se
exceptuarmos o episódio breve e dispensável A Floresta Quente): a da
comunidade de passarinheiros que, entre Chelas e a Alta de Lisboa, se dedicam à
captura e ao treino de tentilhões que se defrontam em concursos de canto
renhidos. O registo, entre o documentário e a ficção, é aquele a que Gomes nos
habituou; os hábitos, rituais e disputas dos criadores são mostrados com detalhe
e empatia; não faltam momentos deliciosos, como a explicação sobre como a
antiga arte de ‘virar’ um tentilhão (isto é, ensiná-lo a cantar) beneficiou com
as novas tecnologias (CDs, MP3…). Porém,
o episódio arrasta-se muito para lá do interesse que consegue suscitar. Pior do
que isso: pela primeira vez nesta trilogia, a liberdade narrativa e a
criatividade, que chegam a ser intoxicantes nos volumes anteriores, dão lugar a
uma certa complacência. A ausência de ecos da situação política e social do
Portugal de hoje (os que existem são forçados, como a manifestação das forças
de segurança) contrasta também com volumes um e dois. Mas nada disto chega para
anular a impressão de que estas Mil e Uma Noites foram uma das aventuras mais
ambiciosas e loucas do cinema português dos últimos anos.
19 de outubro de 2015
Caprice
A Festa
do Cinema Francês já conheceu melhores dias em Lisboa. O Cinéfilo Preguiçoso
lembra-se não só de sessões esgotadas, com a presença do realizador ou de algum
actor emblemático, mas também de olhar para o programa e concluir tristemente
que não ia ter tempo para ver todos os filmes que lhe interessavam. Este ano só
um filme pareceu suficientemente convidativo: Caprice (2015), realizado por Emmanuel Mouret. Não se percebe muito
bem por que razão este realizador (nascido em 1970) não é mais reconhecido pelo
público português. Os seus filmes evocam imediatamente duas influências
fortíssimas: Woody Allen e Éric Rohmer. Certas sequências e alguns temas deste Caprice parecem extraídos de filmes do
realizador nova-iorquino: a relação entre um homem desastrado e uma mulher
belíssima, mas aparentemente inatingível; os mal-entendidos e os actos
irracionais da vida sentimental de pessoas com idade para terem juízo; conversas
em restaurantes ou cafés; mesmo a presença do realizador como protagonista dos
seus filmes é alleniana. A influência de Éric Rohmer aparece aqui filtrada por
um tópico mais propriamente proustiano: a ideia de que as relações amorosas
mais duradouras são decididas por um acaso. Rohmeriano é também o contraste
entre as duas personagens femininas que dividem o protagonista: uma delas é «a
escolhida», uma actriz famosa e mulher perfeita que o protagonista há muito
desejava à distância, mas com quem as coisas parecem não funcionar com a
intensidade previamente imaginada; a outra é «a encontrada», uma jovem aspirante
a actriz, imprevisível e perigosa, que, contudo, não só percebe que a relação
entre os dois seria a combinação perfeita, como também acaba, através de uma
edição cuidadosa, por transformar num sucesso a peça aborrecida escrita pelo
protagonista. Ainda que herdeiro destas influências fortes, Emmanuel Mouret
produz um cinema único que, na sua aparente leveza e bom humor, nos deixa
sempre a pensar em temas sérios, como os meandros e as armadilhas do amor. Este
filme tem estreia prevista em sala.
12 de outubro de 2015
5 x 2
Uma vez
que a estreia em Portugal do último filme de François Ozon, Une Nouvelle Amie, tem vindo a ser
repetidamente adiada – enésimo exemplo da falta de respeito que certos
distribuidores demonstram pelos espectadores –, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu
rever 5 x 2 (2004) e não esqueceu a
devida vénia à boa alma que inventou o DVD. Ozon é um cineasta hiperactivo e
ecléctico cujo apetite por temas controversos lhe trouxe alguma fama de
irreverente e até revolucionário. Contudo, a sua filiação remete-nos para o
melodrama e para a Nouvelle Vague, e a sua abordagem e registo são
essencialmente clássicos e muito devedores do cinema de género (thriller, musical). 5 x 2 pode ser descrito como o retrato de um casamento frágil. O
facto de o filme ser narrado ao arrepio da sequência cronológica dos eventos
nada acrescenta ou retira aos méritos ou impacto do filme, mas tem a vantagem
de anular, logo à partida, qualquer interrogação sobre o desfecho, permitindo
ao espectador concentrar-se nas personagens e no enredo – que, diga-se em abono
da verdade, não requer grande dose de perspicácia. Se exceptuarmos Valeria
Bruni-Tedeschi, excelente como sempre, o que fica de 5 x 2 é a história banal de uma mulher e de um homem que se unem,
têm um filho e se separam sem que qualquer razão evidente o justifique. Talvez
Ozon pretendesse precisamente erigir essa arbitrariedade em tema principal, mas
o resultado final fica claramente aquém de Swimming
Pool, Sous le Sable, Jeune & Jolie ou Dans la Maison.
5 de outubro de 2015
Haewon e os Homens
‘O tempo resolve tudo’, diz, numa das suas últimas cenas, a protagonista do filme Nobody’s Daughter Haewon (2013) (em francês, Haewon et les Hommes), realizado por Hong Sang-Soo. Se nem sempre resolve tudo, nos filmes de Hong o tempo traz pequenas mudanças e evoluções psicológicas. Isto sucede mau grado o tratamento pouco canónico que é dado à cronologia dos seus filmes. Também neste caso abundam as elipses, as bifurcações, as redundâncias e os limbos (por exemplo, os sonhos de Haewon), à semelhança do que se verifica em The Day He Arrives (2011), abordado pelo Cinéfilo Preguiçoso há três semanas. Outras semelhanças são a personagem do realizador de cinema tornado professor pela força das circunstâncias e o ambiente urbano de uma Seul discreta e isenta de traços distintivos, mas singularmente propícia a encontros e coincidências. Contrariamente a esse e a outros filmes de Hong, surge neste uma protagonista feminina forte e intensa cujo processo de assumir as rédeas da sua vida é o motor da narrativa. A maneira como Haewon enfrenta as suas relações sentimentais e as opiniões alheias, ou como deixa que o acaso e a vontade a conduzam a algo parecido com uma reconciliação com o mundo, faz lembrar Marie Rivière em O Raio Verde (1986), nesta que é uma das obras mais rohmerianas de um dos mais rohmerianos cineastas activos, tanto pelo modo como a protagonista se vai definindo através de confrontos verbais com outras personagens, como pela clarificação gradual da sua indecisão relativamente aos próprios desejos. Nobody’s Daughter Haewon e The Day He Arrives estão reunidos numa edição em DVD da France Inter integrada na colecção 2 Films de, que inclui obras de realizadores como Chantal Akerman, Philippe Garrel, Nanni Moretti ou Werner Herzog. Fica a sugestão.
28 de setembro de 2015
As Mil e Uma Noites: Volume 2, O Desolado
Eis que
chega às salas o segundo volume de As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes
(2015). O subtítulo O Desolado anuncia inequivocamente o tom deste filme.
Enquanto o primeiro volume surpreendia pela força vital, pelo humor e pela ironia com que
as personagens lidavam com as suas histórias infelizes e a sua própria revolta
(com soluções que iam desde impingir chocolates da Suíça a quem aparecesse lá
por casa, até ‘votar em todos’, conceber invenções engenhosas para controlar a
expansão das vespas asiáticas, ou tomar o dobro ou o triplo das gotas de
Angelicalm), o segundo volume dá uma espécie de murro no estômago do
espectador. As personagens das três secções deste episódio vão perdendo
lentamente a capacidade de reacção e as que não recorrem a todos os expedientes
para sobreviver acabam por se render e desistir da vida. Na primeira
secção do filme, em que se narra a captura de Simão Sem Tripas, deparamos com a combinação de uma vertente popular/tradicional com outra, tecnológica e contemporânea, numa
história com laivos de lenda, mas vigiada por drones e acompanhada por
escuteiros que aclamam um assassino. Na segunda secção, intitulada As Lágrimas
da Juíza, em que assistimos ao inventário e julgamento de um conjunto de
crimes mesquinhos cometidos ‘ou por maldade ou por desespero’, todos parecem
(parecemos) culpados de pequenos expedientes em relação aos quais não dispõem de grandes
alternativas para escapar. Na terceira secção, a derrota instala-se
definitivamente. Uma referência especial a certos momentos do filme em que a
presença de Sayombhu Mukdeeprom (director de
fotografia habitual do realizador tailandês Apichatpong Weerasethakul) se faz
sentir de modo inegável, como o relato da vaca na segunda secção, o encontro do
cão Dixie com o seu próprio fantasma na terceira secção, ou certos planos
desprovidos de presença humana mas em que fumos, líquidos ou correntes de ar
parecem dar corpo a uma ameaça.
21 de setembro de 2015
Irrational Man
O
Cinéfilo Preguiçoso não leva o zelo ao ponto de escolher os destinos turísticos
de acordo com os filmes que quer ver, mas por vezes é bafejado pela sorte. Foi
assim que, neste Verão, não hesitou ao saber que o novo filme de Woody Allen,
Irrational Man (2015), ia ser exibido numa sala de aspecto simpático mas
vagamente antiquado, nas Galerias Reais, bem no centro de Bruxelas, onde foi
recebido por um funcionário de bilheteira entusiasta. Anualmente, a estreia de um novo Woody é
acolhida pelo inevitável cortejo de sentenças e interrogações: estará o filme à
altura das suas obras anteriores? Se é certo que obras-primas como Annie Hall
(1977), Manhattan (1979) ou Hannah and Her Sisters (1986) parecem difíceis
de repetir, a discussão pontual sobre a qualidade de cada filme desvia as
atenções da perspectiva global sobre a obra de Woody Allen. Quarenta e seis
anos depois de Take the Money and Run, a sua filmografia surge como uma
admirável contínuo de temas, obsessões e personagens, movido por um impulso de
cinema onde cabem o profissionalismo e a paixão. (É refrescante o contraste com
realizadores que ficam dez ou quinze anos à espera do sopro da inspiração ou
das condições de produção ideais.) Sobre Irrational Man, que fique dito:
Joaquin Phoenix domina o filme, como sempre; o tema (envolvendo moral, mal-entendidos
filosóficos, uma escolha e um homicídio) remete claramente para Match Point
(2005); é delicioso o pormenor de a personagem de Emma Stone ser salva pelo seu
espírito prático e pela pequena lanterna que escolheu numa tômbola, em vez de
um objecto mais vistoso; não, não é um filme genial, mas a falta de génio de
Woody Allen é muito mais estimulante do que grande parte do cinema hoje em dia.
14 de setembro de 2015
The Day He Arrives
Num dos
numerosos diálogos que se ouvem em The
Day He Arrives, realizado por Hong Sang-Soo (2011), uma personagem
argumenta que as coincidências não possuem qualquer significado além daquele
que lhes é atribuído por quem as vive. O próprio filme parece uma ilustração
desta ideia: sucedem-se os encontros acidentais entre a personagem principal
(um realizador de cinema de visita a Seul, de onde saiu para ir dar aulas para
a província) e amigos, conhecidos ou admiradores. As mesmas situações
repetem-se sem que fique claro se se trata de um artifício formal ou se estas
personagens repetem gestos e frases dia após dia e noite após noite, incapazes
de formar as memórias de curto prazo que lhes permitiriam perceber que se estão
a repetir. A impressão é a de uma cronologia difusa e de um tempo cíclico em
vez de linear; o protagonista parece estar entre duas relações, mas o “antes” e
o “depois” da relação, assim como as próprias personagens femininas envolvidas,
assemelham-se estranhamente. Hong Sang-Soo é um realizador sul-coreano que
começa a ter o destaque que a sua obra, discreta e singular, há muito merecia.
Os seus filmes, formalmente subtis, recorrem quase invariavelmente a uma
matéria-prima ficcional bastante simples: personagens banais, totalmente
incapazes de tomar uma resolução que as ajude a resolver os seus problemas
(geralmente sentimentais). Espera-se que a atenção mediática suplementar devida
à colaboração com uma estrela internacional (Isabelle Huppert, em In Another Country, de 2012) e o recente
Leopardo de Ouro no Festival de Locarno (por Right Now, Wrong Then, de 2015) contribuam para que os seus filmes
sejam vistos mais regularmente em Portugal.
7 de setembro de 2015
Metamorfoses | As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto
O
Cinéfilo Preguiçoso não descurou a sua missão durante o período estival.
Metamorfoses (2014) sugere um saudável desejo de ruptura na obra de
Christophe Honoré, depois do marasmo criativo que Os Bem-Amados (2011)
deixava entrever. O filme esgota-se na sua ideia de base: uma transcrição para
o cinema dos mitos de Ovídio, encenados numa França rural mas repleta de sinais
da civilização. Algumas cenas plasticamente conseguidas não dissipam a
impressão de um exercício inofensivo e inconsequente. A ruptura também existe
em As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto (2015), de Miguel Gomes, mas
trata-se neste caso de algo interno ao fluxo do filme: fiel a si mesmo, Gomes
subverte o esquema formal proposto ao espectador no início da obra e
apresenta-nos um produto final que reflecte esse mesmo processo de reinvenção. O
golpe de rins narrativo (a fuga do realizador e colaboradores próximos,
obrigados em seguida a inventar histórias, à maneira de Xerazade, para aplacar
a ira dos restantes membros da equipa), de uma comicidade pueril, é aplicado
logo no início do filme e abre caminho para um mosaico de narrativas e vinhetas
que traçam um retrato de Portugal contemporâneo com eficácia e lirismo: não
faltam as referências ao desemprego, à troika e às eleições locais, mas também
a temas aparentemente mais corriqueiros embora com óbvio interesse local (a
vespa asiática). A impressão que fica, enquanto se espera pelos restantes
volumes da trilogia, é a de liberdade e ousadia ao serviço de uma vontade
urgente de ser fiel àquilo que foi e é o Portugal dos anos de chumbo da crise e
do memorando de entendimento. E há que dizer que o episódio do galo é das
coisas mais hilariantes e ao mesmo tempo mais realistas que o cinema português
nos ofereceu nos últimos anos.
27 de julho de 2015
A Essência do Amor
Os filmes
de Terrence Malick sempre suscitaram alguma ambivalência ao Cinéfilo
Preguiçoso. No caso de Badlands (1973), esta ambivalência resolve-se pela
positiva; noutros casos, como o grandiloquente The Tree of Life (2011), este
cinema desencadeia a rejeição e a impaciência. A dificuldade fundamental da
estética do realizador parece residir num certo fascínio pela superfície das
coisas e dos acontecimentos, paradoxalmente associado à insistência em procurar presenças e significados mais profundos. Este é simultaneamente o
elemento mais forte e mais fraco do cinema de Malick. No seu pior, esta
característica produz sequências totalmente decorativas, quase a resvalar, ou
resvalando mesmo, para o anúncio publicitário de perfumes ou de moda (pessoas
bonitas a correr em paisagens bucólicas, efeitos de luz, pássaros a voar,
crianças a brincar ou a andar de bicicleta, voz-off enunciando verdades
supostamente profundas geralmente relacionadas com sentimentos, etc.). No seu
melhor, no entanto, os filmes de Malick deixam o espectador a pensar sobre a
presença humana no mundo. A Essência do Amor (tradução de To the Wonder,
real. Terrence Malick, 2012) está entre o melhor e o pior de Malick. Percebe-se
que sob a história de uma relação que corre mal entre Neil (o inexpressivo Ben
Affleck) e Marina (a ornamental Olga Kurylenko), sobre a qual se enxerta o
comentário de um padre em plena crise espiritual (Javier Bardem), há de facto
preocupação em pensar sobre diversos tipos de amor e sobre o que significa
estar vivo, mas os elementos mais decorativos do cinema deste realizador diluem
as percepções fugazes que o filme propicia. Obviamente, alguém que se sinta
próximo deste tipo de estética dirá que Malick pretende precisamente construir
e explorar estes desequilíbrios. Neste sentido, A Essência do Amor é um filme
conseguido e plenamente coerente com o resto da obra de Malick, mas de que nem todos
conseguirão gostar.
20 de julho de 2015
Dois Dias, Uma Noite
O enredo de Dois Dias, Uma Noite (real. Luc e Jean-Pierre Dardenne, 2014 - passou nas salas portuguesas há alguns meses e pode agora ser visto em DVD) cabe em poucas linhas: durante um fim-de-semana, Sandra, operária numa fábrica de painéis solares na região de Liège, tenta convencer os colegas de trabalho a votarem contra o seu despedimento, ainda que isso implique perderem um bónus individual de mil euros. Os irmãos Dardenne não abdicam do seu registo habitual (câmara ao ombro, naturalismo, estilo próximo do documentário), que parece repousar na convicção de que a proximidade constante da personagem principal suscitará no espectador a empatia que uma encenação mais sofisticada diluiria. Curiosamente, a própria Sandra (Marion Cotillard) serve-se, de forma consciente ou não, do mesmo princípio: face a face com os colegas que irão decidir a sua sorte, a exposição do seu drama adquire outra pungência e leva alguns deles a apoiá-la. Devido a este dispositivo dramático, gerido com profissionalismo mas rudimentar, o filme acaba por se resumir a pouco mais do que o retrato episódico de uma mulher a atravessar uma crise. A escolha de uma estrela como Cotillard foi uma aposta arriscada que não conheceu sucesso total: o seu desempenho intenso e competente nunca consegue dissipar a sensação de estarmos perante um corpo estranho na obra dos Dardenne, que costumam optar por protagonistas desconhecidos ou colaboradores de longa data. Quanto ao final, soa a falso a tentativa de escolher uma terceira via (nem despedimento nem final feliz) propícia a uma conclusão salvífica e optimista.
13 de julho de 2015
Táxi
Visto
que Jafar Panahi foi proibido de filmar
e de sair do Irão pelas autoridades deste país, ver um um novo filme deste
realizador é sempre um pouco milagroso. Premiado com o Urso de Ouro no Festival
de Berlim de 2015, Táxi, actualmente em exibição em dois cinemas de Lisboa,
é, acima de tudo, um filme sobre um dos gestos mais comuns das nossas vidas em
2015: o acto de filmar. O eixo central do filme é uma câmara instalada num
carro conduzido pelo próprio realizador, o que nos remete para o estilo do mais
famoso de todos os cineastas iranianos, Abbas Kiarostami (especialmente em Dez
e O Sabor da Cereja), sem que isso ponha em causa a originalidade de Panahi.
Neste carro vão entrando e saindo várias personagens, umas mais ou menos
pitorescas, outras absolutamente universais: uma professora; um ladrão
especialista em câmaras de vigilância; um vendedor de DVDs pirateados e um
cliente deste que estuda cinema; um casal vítima de um acidente de moto cujo
marido dita o testamento para a câmara do telemóvel do realizador; duas
senhoras com um aquário; a sobrinha do realizador em busca de assunto para um
“filme distribuível” que deve ser apresentado na escola; um velho amigo, vítima
de um assalto captado em vídeo; uma defensora dos direitos humanos com um ramo
de rosas vermelhas. Todas as conversas giram em torno tanto da questão do que
deve ou não ser filmado ou mostrado, como também da noção de roubo e dos
diversos graus de roubo. O roubo maior, o acto mais censurável, é afinal a
própria proibição de filmar, um roubo de liberdade, como sugerem os momentos
finais do filme, em que dois assaltantes se apoderam da câmara do carro do realizador
e o écran fica escuro, sem mais nada para mostrar.
6 de julho de 2015
As Nuvens de Sils Maria
Depois de
um longo cortejo de adiamentos e falsos alarmes, As Nuvens de Sils Maria (2014) estreou
finalmente e o Cinéfilo Preguiçoso confirma que valeu a pena esperar. A décima
quinta longa-metragem realizada por Olivier Assayas é um filme de uma
complexidade, ambição e inteligência que contrastam salutarmente com a maioria
das propostas do panorama cinematográfico actual. O enredo gira em torno de
Maria (Juliette Binoche), uma actriz que deve a sua fama ao facto de ter sido
escolhida, em início de carreira, para a peça de um dramaturgo consagrado. Anos
mais tarde, aceita retomar a peça, desta vez no papel de uma mulher de meia-idade
que mantém uma relação tensa e ambígua com a personagem da jovem que
representou outrora. Para se preparar, isola-se com a assistente (Kristen
Stewart) no chalé do dramaturgo recém-falecido. O filme explora as dificuldades
de lidar com a passagem do tempo. Assayas respeita suficientemente a
inteligência do espectador para evitar um desenlace límpido e fechado: permanecem
as dúvidas sobre o que aconteceu realmente à assistente (personagem - real ou
imaginária? - que personificava as dúvidas e os conflitos de Maria), e a
reacção da actriz à proposta de um jovem realizador (que lhe sugere um papel
que parece anular o peso do factor tempo) é ambígua. Sendo Assayas um antigo
crítico dos Cahiers du Cinéma e um cinéfilo ecléctico, não surpreendem os
numerosos ecos cinematográficos, voluntários ou não: O Raio Verde (Éric
Rohmer, 1986 - importância de um fenómeno atmosférico), Swimming Pool (François
Ozon, 2003 - relação tensa entre uma escritora e uma mulher mais jovem, talvez
imaginada), Persona (Ingmar Bergman, 1966 - actriz em crise, isolada com a
mulher que a tenta ajudar).
29 de junho de 2015
Um Pombo Pousou Num Ramo a Reflectir na Existência
22 de junho de 2015
The Royal Tenenbaums
The Royal Tenenbaums (2001,
visto pelo Cinéfilo Preguiçoso em DVD em dia de grande canícula) foi a terceira
longa-metragem realizada por Wes Anderson. O estilo deste autor estava já
perfeitamente consolidado: planos cuidados até ao mínimo pormenor visual, humor
melancolicamente absurdo, espaços geográficos alheios a qualquer lugar real, mas
dotados de uma intensa coerência interna, personagens caracterizadas
essencialmente por aquilo que têm de excêntrico. O filme conta a história da
família Tenenbaum, cujos filhos, criados para serem prodígios, entram em crise
e perdem o rumo quando chegam à idade adulta. Tal como nas restantes obras de
Anderson, os momentos mais conseguidos deste filme desconcertante mas sedutor
(ao seu modo muito próprio) são aqueles em que as personagens desafiam a sua
caracterização tipificada e ousam assumir-se como pessoas, carentes de sentido
ou simplesmente de carinho: falamos, por exemplo, da tentativa do patriarca
(Gene Hackman, excelente como sempre) de se reconciliar com a família ou da
aproximação entre Margot (Gwyneth Paltrow) e o irmão adoptivo (Luke Wilson). Em retrospectiva, é curioso reconhecer
pequenos detalhes que antecipam temas e ideias explorados mais tarde pelo
realizador, como a peça cujas personagens são todas animais (Moonrise
Kingdom, 2012) ou o ambiente de hotel grandioso e decadente (The Grand
Budapest Hotel, 2014).
15 de junho de 2015
Enquanto Somos Jovens
Se por
acaso nos acontecesse ver o filme Enquanto Somos Jovens (2014) sem sabermos quem era
o realizador, não seria muito difícil adivinhar o nome: Noah Baumbach (n. 1969).
Esta facilidade de identificação deve-se a certos traços distintivos dos filmes
deste realizador, como a atenção ao espaço urbano e a exploração exaustiva de
alguns temas: o fracasso, o problema da autenticidade e as dificuldades da
autopromoção. Outra característica importante do cinema de Baumbach é o talento
para explorar as dimensões mais negativas e mesquinhas das personagens sem
deixar que isso afecte a compaixão com que as filma. Em Enquanto Somos Jovens
encontramos explicitamente todas estas questões, girando em torno do contraste entre a
meia-idade e a juventude. Este contraste é encenado através da relação entre os
dois casais principais, interpretados magistralmente por Ben Stiller e Naomi
Watts, do lado da meia-idade, e por Adam Driver e Amanda Seyfried do lado da
juventude – os mais velhos com uma existência quase virtual, os mais novos
ostentando um interesse por actividades práticas e artesanais que às vezes não
passa de pose. Do ponto de vista da distribuição, este filme tem sido tratado
como um produto mais mainstream do que a restante obra do realizador, mas só se
pode dizer que este é o seu filme mais comercial porque a obra de Baumbach,
permanecendo sempre fiel a si mesma, já atingiu um estatuto em que ela própria
dita as regras do que pode interessar ao grande público. Um espectador da
geração de Baumbach revê-se imediatamente nos gestos, nos hábitos, nos
conflitos e nas preocupações das suas personagens; os restantes dificilmente
deixarão de empatizar com o que há de universal e eterno no medo de envelhecer
e na procura da felicidade e do equilíbrio.
8 de junho de 2015
Gaslight
Gaslight
(visto em DVD, já que nada em sala parecia ter interesse) é um filme de 1944,
realizado por George Cukor. A personagem principal, Paula, interpretada por
Ingrid Bergman (num papel que lhe valeu o primeiro de três óscares), vive
assombrada pelo assassinato da tia que ocorreu numa casa situada numa praça
pacata de Londres. Quando Paula parece a caminho de refazer a vida, o casamento
e o regresso subsequente à casa da tia trazem de volta terrores antigos
associados ao homicídio, que ficou por esclarecer. O marido (Charles Boyer)
tenta persuadi-la de que está a perder o juízo e ameaça interná-la; em
paralelo, entrega-se a actividades misteriosas que o filme dá generosamente a
entender estarem relacionadas com o crime. A comparação com filmes aproximadamente
contemporâneos que também exploram o tema da duplicidade do marido (por exemplo
Suspicion, de Hitchcock, ou Secret Beyond the Door, de Lang) não é muito
favorável a Gaslight, em termos de complexidade e subtileza. Contudo, não
faltam pontos de interesse, em particular a maneira como o regresso de Paula e
a sua alienação são encenados como um processo de descoberta do próprio
passado, cujo culminar lhe permite por fim iniciar a sua própria vida. O filme
vale ainda pela tortura psicológica que Paula inflige ao marido no confronto
final e pela maneira como deixa brilhar em papéis secundários duas grandes
actrizes, respectivamente em fim e início de carreira: May Whitty e Angela
Lansbury.
1 de junho de 2015
National Gallery
Nos
planos finais do filme O Grande Museu (real. Johannes Holzhausen, 2014) eram focados diferentes
pormenores de uma das telas em que Bruegel representou a Torre de Babel,
exposta no Museu de História da Arte de Viena. Em National Gallery (2014), Frederick
Wiseman também trabalha esta visão de museu como um edifício em permanente
construção e desconstrução, onde toda a gente fala linguagens diferentes sem
chegar a um consenso estável. Contudo, enquanto The Great Museum abordava exclusivamente
o museu vienense, o filme de Wiseman, fascinado pela diversidade dos discursos
e comportamentos dos funcionários do museu londrino, desencadeia uma reflexão
sobre arte que ultrapassa a questão dos limites físicos e circunstanciais do
espaço museológico. Contrastando momentos de visitas guiadas, de aulas, de
reuniões da direcção, de um espectáculo de dança inspirado por uma exposição
dedicada a Ticiano e de discussões sobre assuntos tão diferentes como restauro,
propriedades físicas das obras de arte e acções de marketing, Wiseman mostra
que não há realmente oposição entre interpretações subjectivas e interpretações
supostamente objectivas tanto das obras de arte como da própria instituição do
museu. Em relação a este tema, destacam-se dois momentos. Num deles, um
especialista explica que, ainda que o restauro se apoie em estudos exaustivos
dos objectos, restaurar uma obra nunca pode ser simplesmente reconstituir o seu
estado original; este processo exige uma reinterpretação da obra de arte
tomando em consideração o contexto em que esta passará a integrar-se e não só o
seu passado. Noutro momento, durante uma conversa sobre uma tela de Vermeer,
uma historiadora afirma que o importante nas obras de arte é a capacidade destas
de reterem a nossa atenção sempre que nos aconteça observá-las, muitas vezes
por motivos que os ensaístas que escreveram sobre ela não previram (a hora do dia, a pessoa com quem se
está, um pormenor, uma tonalidade, um gesto, uma acção). Deste modo, Wiseman demonstra que, mesmo num museu, a arte faz parte da vida.
25 de maio de 2015
O Grande Museu
O Grande Museu (real. Johannes Holzhausen, 2014) é um
documentário sobre o Museu de História da Arte de Viena que estreou em Portugal
conjuntamente com National Gallery,
do veterano Frederick Wiseman (que o Cinéfilo Preguiçoso ainda não viu, mas espera
ver em breve). Além da ligação temática óbvia, existem semelhanças de registo e
método que justificam o emparelhamento destes filmes. Como costuma acontecer
nos documentários de Wiseman, Holzhausen abdica dos comentários e abrange uma
grande diversidade de facetas, escalas e aspectos, sem parecer obedecer a
qualquer sistema ou hierarquia. O resultado é um convite tácito a que o
espectador crie as suas próprias narrativas, o que não quer dizer que o
realizador pretenda oferecer objectividade absoluta, situando a subjectividade
interpretativa totalmente na recepção do filme. Filmar e escolher aquilo que se
mostra implica tomar partido e influi nas dinâmicas do que é filmado, como se
pode constatar vendo como os participantes, dos directores aos conservadores,
passando pelos vigilantes, resistem mal à tentação (ou ao incitamento do
realizador?) de dramatizar as suas intervenções e representar pequenas cenas,
de acordo com aquilo que se espera que suceda num filme. Subsiste uma noção de
museu como máquina dotada de lógica e orgânica, sustentada por uma
multiplicidade de gestos e negociações quotidianos, onde se esbate a distinção
entre as minúcias do protocolo para receber o Presidente da República e a
avaliação dos estragos provocados num quadro pelo escaravelho-da-farinha.
18 de maio de 2015
Éden | Phoenix
Se o
Cinéfilo Preguiçoso se distraísse mais um bocadinho, teria perdido Éden (2014), da
muito apreciada Mia Hansen-Løve, um filme que explora a dificuldade de desistir
dos próprios sonhos, começando nos tempos em que os Daft Punk se formaram e seguindo
alguns músicos – amigos dos elementos deste grupo – que não alcançam o mesmo
sucesso. Assim recordado da rapidez vertiginosa com que alguns bons filmes
passam pelas salas de Lisboa, o Cinéfilo Preguiçoso apressou-se a ver
Phoenix (2014), de Christian Petzold. À semelhança do que se verifica com Carta de
Uma Desconhecida (Max Ophüls), o enredo de Phoenix gira em torno de uma
falha estranha de reconhecimento: o marido não reconhece a mulher judia (Nelly
Lenz, interpretada por Nina Hoss) que regressou de um campo de concentração. Com o
objectivo de receber indevidamente a herança da mulher que ele próprio enviara
para a morte e acreditando que se tratava apenas de alguém parecido com ela,
tenta convencê-la a fazer-se passar por quem na realidade é. Esta falha de
reconhecimento combina-se com um problema de conhecimento: só quando é finalmente
reconhecida pelo marido consegue Nelly Lenz não só aceitar que ele a traiu, mas
também conhecê-lo como ele é. Falta a este filme um golpe de criatividade e
heterodoxia que o liberte de uma realização sóbria e meticulosa, mas não se
pode dizer que os seus objectivos fiquem por cumprir.
11 de maio de 2015
O Passado e o Presente
O Passado e o Presente, filme de 1971 cuja reposição recente
pela RTP2 merece todos os louvores, pode ser encarado como o primeiro da
carreira regular de Manoel de Oliveira e como o ponto final nos longos hiatos
que marcaram as quatro décadas iniciais da sua carreira. Não parece, pois,
descabido olhar para este filme como a primeira obra de um realizador de 62
anos, na qual coexistem a ousadia, uma desenvoltura juvenil e a experiência que
só a acumulação de anos, vida, frustrações, filmes vistos e livros lidos pode
trazer. Nesta adaptação de uma peça de Vicente Sanches centrada na obsessão
pelos maridos defuntos da personagem principal (Maria de Saisset), as leituras
sociológicas ou psicológicas que o espectador possa ser tentado a esboçar pesarão
sempre pouco quando comparadas com a sublime evidência de um puro objecto de
cinema formalmente rico e desconcertante, em que os temas do casamento e do
duplo são explorados através das relações dos diversos casais. Entre os
actores, destaque-se a estreia cinematográfica da grande Manuela de Freitas e a
presença de João Bénard da Costa (aliás Duarte de Almeida), que por sinal está
longe de ser dos mais inábeis. Seria injusto esquecer o trabalho de Acácio de
Almeida na direcção de fotografia.
4 de maio de 2015
Whit Stillman no IndieLisboa
O
Cinéfilo Preguiçoso tinha visto no Verão passado os filmes Last Days of Disco
(1998) e Damsels in Distress (2011) de
Whit Stillman. No IndieLisboa deste ano, a retrospectiva dedicada a este
realizador norte-americano criou a oportunidade de ver os seus outros dois
filmes: Metropolitan (1990) e Barcelona (1994). Presente no início de cada
sessão, Stillman mostrou ser quase idêntico às personagens dos seus próprios
argumentos: falando e pensando depressa, com um sentido de humor algo retorcido
e nem sempre imediatamente agradável. Enquanto Barcelona, mais ambicioso, se
dispersa um pouco em enredos secundários, Metropolitan revela uma densidade e
coesão impressionantes. Este filme gira em torno de um grupo de amigos em
transição para a idade adulta. Os elementos deste grupo gostam de se
caracterizar pela pertença à UHB (urban haute bourgeoisie) e também de pensar
que por isso estão condenados ao fracasso. Neste filme, o mais interessante,
além do actor Chris Eigeman (igualmente presente e também brilhante em
Barcelona), são os diálogos abundantes em que as personagens se autodescrevem
mal sem saber que se estão a enganar a si próprias e umas às outras. Ao
contrário, porém, do que se verifica em Last Days of Disco, também sobre um
grupo de amigos em transição, mas em que a protagonista representada por Chloë
Sevigny percebe quem é através das distinções que identifica entre si e os
outros, em Metropolitan as personagens chegam a uma espécie de reconciliação
com o passado quando percebem que são mais parecidas umas com as outras do que
inicialmente imaginavam.
27 de abril de 2015
La Sapienza | Une Histoire Américaine
O Cinéfilo Preguiçoso está no IndieLisboa! Os dois filmes vistos até agora, La Sapienza (Eugène Green, 2014) e Une Histoire Américaine (Armel Hostiou, 2015) têm em comum a origem (França) e o facto de serem maioritariamente falados numa língua que não o francês (italiano e inglês, respectivamente). As semelhanças ficam-se por aqui. Eugène Green permanece fiel ao seu estilo: grandes planos frontais, dicção extremamente cuidada e artificial, rigor quase maníaco na composição dos planos. Os encontros e desencontros de dois pares (marido e mulher, irmã e irmão) entre a Suíça italiana, Turim e Roma e as revelações suscitadas pela obra do arquitecto barroco Borromini são mostrados com a limpidez programática que fazem do visionamento de qualquer filme de Green uma experiência estética poderosíssima. Em Une Histoire Américaine, pelo contrário, dominam a deriva e a improvisação (aparente ou não), igualmente devedoras da Nouvelle Vague e do Cassavetes de Shadows. Os méritos desta segunda longa-metragem de Hostiou fundam-se em grande parte na presença de Vincent Macaigne (visto nos ecrãs portugueses em A Rapariga do 14 de Julho) e no lirismo amargo com que é filmada a cidade de Nova Iorque, cenário da obsessão do protagonista pela mulher com quem viveu um passado que não nos é dado ver.
20 de abril de 2015
Carta de Uma Desconhecida
Baseado
numa novela de Stefan Zweig, o filme Carta de Uma Desconhecida (Max Ophüls,
1948) conta os encontros e desencontros de um casal, representado por Joan
Fontaine, no papel de Lisa Berndle, e Louis Jourdan, no papel do pianista
Stefan Brand. O filme é narrado a partir da carta de despedida da personagem
feminina. Ao longo do tempo, acompanhamos a ascensão e a queda da carreira de
Stefan. Lisa descreve-o como «alguém que anda à procura de alguma coisa mas
ainda não conseguiu encontrá-la». Esta lacuna traduz-se a nível profissional e
sentimental; apesar de fazer sucesso nas salas de concerto e com as mulheres,
Stefan não se sente feliz. Ainda que Lisa identifique Stefan como o grande amor
da sua vida desde o início, este revela-se incapaz de a reconhecer (literalmente)
nos diversos momentos em que com ela se vai encontrando ao longo do tempo. O
reconhecimento e a compreensão, demasiado tardios, ocorrem com a leitura da
carta. Falhar este reconhecimento implicou falhar a própria vida. Os famosos movimentos
de câmara de Ophüls, vigorosos mas extraordinariamente delicados, e a soberba
interpretação de Joan Fontaine contribuem para o lugar de destaque do filme na
carreira deste realizador.
13 de abril de 2015
Roma, Cidade Aberta | Paisà
Os
caprichos das distribuidoras que operam no diminuto mercado português deixam o
Cinéfilo Preguiçoso fora de si. Um exemplo entre tantos: “Clouds of Sils
Maria”, de Olivier Assayas, várias vezes anunciado e cujo rasto na lista de
próximas estreias é agora impossível de encontrar. Constata-se com alívio que a
carência de novidades é em parte compensada por algumas reposições. Na
retrospectiva de Rossellini que o Nimas está a mostrar, podemos comparar entre
si dois dos três filmes da chamada “trilogia da guerra”: “Roma, Cidade Aberta”
(1945) e “Paisà” (1946), além da proximidade cronológica, partilham o cenário
de uma Itália abalada pelos últimos estertores da Segunda Guerra Mundial e o estilo
despojado que os guindou, com ou sem razão, ao estatuto de representantes do
neo-realismo. Setenta anos depois, torna-se claro que “Paisà”, graças à
agilidade da realização, ao equilíbrio notável entre os diferentes episódios, à
quase total ausência de retórica e à capacidade de fazer coexistir acção e clarividência
psicológica, envelheceu melhor. Porém, a força de “Roma, Cidade Aberta”, que
tanto deve à interpretação extraordinária de Aldo Fabrizi, permanece intacta.
Estes filmes voltarão a passar nos próximos dias 27 e 29 de Abril. Por essa
altura, o IndieLisboa já estará aí, para alegria de todos.
6 de abril de 2015
Na morte de Manoel de Oliveira
Nos anos
80 e 90, Manoel de Oliveira era amiúde remetido para a categoria de realizador
para as elites intelectuais e acusado de fazer filmes impenetráveis pela
perspicácia do cidadão comum. Passadas duas ou três décadas, superadas todas as
expectativas de longevidade e de reconhecimento internacional, as reacções à
morte deste realizador insistem de forma surpreendente na sua faceta mais
ligeira: repetem-se em círculo as anedotas ligadas à boémia dos anos 20 e ao
salto com vara ou as momices chaplinescas. Talvez a vontade de privilegiar esta
imagem mais superficial e clownesca surja como reacção às pulsões hagiográficas
que se manifestaram e continuarão a manifestar (ah, o Panteão!), mas não há
desculpa para remeter para segundo plano a extraordinária dimensão e
complexidade artística da obra de Oliveira. A melhor homenagem é ver e rever os
filmes. Para isso seria importante que estes estivessem mais acessíveis, ou em
sala ou em DVDs a preços aceitáveis.
30 de março de 2015
The Outsiders
Não
surpreende, depois de se ver The Outsiders/Os Marginais (1983), que Francis
Coppola se tenha referido a Rumble Fish (1983), o filme que rodou
imediatamente a seguir (e também baseado num romance de S. E. Hinton), como «my
carrot for what I promised myself when I finished The Outsiders». O tema e o cenário são essencialmente os
mesmos: a vida numa pequena cidade americana, a rivalidade entre gangues, o
mosaico de ilusões e dramas que daí fatalmente resultam. Contudo, o registo
visual arrojado e a estilização deliberadamente levada ao extremo de Rumble
Fish contrastam com o naturalismo adimensional de The Outsiders, com uma
dose apreciável de esquematismo sentimental e com um simbolismo algo fraco. As
excepções são as cenas esplendorosamente filmadas por Stephen H. Burum em que
Ponyboy (C. Thomas Howell) e Johnny (Ralph Macchio) se escondem numa igreja
abandonada e se entregam aos gestos simples da sobrevivência e da passagem do
tempo, fazendo lembrar Sissy Spacek e Martin Sheen no seu éden provisório em Badlands (1973), de Terrence Malick.
16 de março de 2015
L’Amour Est Un Crime Parfait
A preguiça e a falta de propostas tentadoras em cartaz coligaram-se para, mais uma vez, fazer do cinema em casa uma alternativa irrecusável. “L’Amour Est Un Crime Parfait” (2013), dos irmãos Arnaud e Jean-Marie Larrieu, confirma a apetência desta parelha de realizadores e argumentistas pela subversão discreta dos códigos cinematográficos clássicos. O ambiente de “thriller” permeia este enredo tortuoso onde intervêm um professor de literatura (Mathieu Amalric), a irmã com quem vive uma relação mais do que ambígua, uma aluna apostada em seduzi-lo e a madrasta de uma outra aluna em cujo desaparecimento ele terá tido um papel activo (embora nunca se perceba ao certo qual). Ao deixar deliberadamente o espectador na dúvida sobre a natureza real dos actos da personagem principal (dúvida partilhada pelo próprio, aliás), os Larrieu oferecem um objecto cinematográfico ocasionalmente fascinante, mas demasiado amiúde reduzido à missão de exibir um mecanismo ficcional em roda livre, sem substância e sem personagens capazes de existirem para além do estrito (ainda que intenso) cumprimento da sua função no enredo.
9 de março de 2015
Big Eyes
A
história da pintora Margaret Keane e do seu marido Walter, que assumiu
fraudulentamente a autoria dos famosos quadros representando crianças de olhos
desmesurados, é contada com linearidade e sem os excessos visuais de obras como
Sweeney Todd (2007) ou Sleepy Hollow (1999), ao ritmo de um argumento
frouxo onde abundam os efeitos dramáticos fáceis. Os poucos temas que suscitam
interesse, como a discussão sobre se a apreciação da arte depende das histórias
e das práticas em torno do acto artístico (Walter perde credibilidade a partir
do momento em que deixa de conseguir inventar uma biografia adequada ao criador
da sua suposta obra) são tratados com superficialidade. O desempenho
caricatural e cabotino de Christoph Waltz contribui para destruir o potencial
da personagem de Walter, sem dúvida a mais intrigante e rica em ambiguidades. Sai-se
da sala a desejar que Tim Burton se reencontre com o estilo de obras como
Eduardo Mãos de Tesoura (1990) e Ed Wood (1994), filmes de saudosa memória
em que a fantasia visual era indissociável da caracterização das personagens e
não um mero efeito decorativo.
2 de março de 2015
Waking Life
Waking
Life é um filme de 2001, realizado e escrito por Richard Linklater, cuja
característica mais distintiva é o uso da técnica de animação por rotoscópio,
com base em imagens de actores de carne e osso. Esta técnica, que aliás viria
ser novamente usada por Linklater em A Scanner Darkly (2006), confere ao
filme uma natureza visualmente ambígua que se adequa aos temas explorados. O
protagonista anónimo sofre um atropelamento que o projecta para uma sucessão de
sonhos encastrados uns nos outros. Nesses sonhos, é o destinatário mais ou
menos passivo das conversas e dos depoimentos de numerosas personagens (mas
também personalidades da vida real, como o realizador Steven Soderbergh e o
filósofo Louis H. Mackey) com quem se cruza ou que vê na televisão. É quando se
leva menos a sério que o filme funciona melhor: como um desfile deliberadamente
desconexo de achados visuais e conceptuais e de especulações sobre temas como o
sonho, o livre-arbítrio e o papel do indivíduo na sociedade, temas, aliás, que
Linklater aborda noutros filmes. Falta dizer que este filme foi visto em DVD,
enquanto se espera por boas novas no panorama de estreias.
Ida
Existem
muitos motivos óbvios que podem ajudar a perceber, a um nível superficial, o
acolhimento favorável recebido por Ida (2013), de Pawel Pawlikowski,
incluindo a presença em várias listas dos melhores de 2014 e o recente Óscar
para melhor filme de língua estrangeira: a referência aos horrores da guerra e
aos anos sombrios da hegemonia comunista na Polónia, a sobriedade das imagens,
o rigor dos planos, um ritmo pontuado por pequenas elipses que se adequa perfeitamente
à viagem da jovem Anna/Ida em busca do seu passado. Felizmente, o filme
consegue ser mais do que um agregado de mais-valias universalmente bem
acolhidas e oferece momentos ricos em intensidade, como a descoberta do vitral
no estábulo e a excursão à floresta para assistir à exumação dos ossos dos pais
pelo próprio homem que os assassinara. Sai-se da sala a desejar que o filme
tivesse sabido explorar de forma menos óbvia algumas das questões e dicotomias
que traz a terreiro, mas na posse de imagens e sons demasiado fortes para não
perdurarem.
23 de fevereiro de 2015
Inherent Vice
As razões que levaram Paul Thomas Anderson a adaptar um romance menor de Thomas Pynchon são difíceis de penetrar. Pode-se conjecturar que, depois de tratar personagens maiores que a vida em There Will Be Blood (2007) e no magnífico The Master (2012), o realizador e argumentista se sentiu atraído pela abundância de personagens insignificantes em Inherent Vice (2014), à cabeça dos quais surge o protagonista, “Doc” Sportello. O filme reconstitui fielmente o ambiente de ressaca psicadélica da América de 1970, a incoerência do enredo e o ambiente de paranóia tipicamente pynchoniano, sem nunca acrescentar ao livro algo de verdadeiramente ousado ou distintivo. O facto de a incoerência e inverosimilhança serem completamente deliberadas não redime este esforço de Anderson, que dificilmente ficará para a História como um ponto alto da sua carreira. Procurem-se antes os pontos positivos na interpretação de Joaquin Phoenix, numa ou noutra cena hilariante como a devolução dos pacotes de droga aos membros do cartel («How long have you been working for the Golden Fang?») ou na escolha de Joanna Newsom como narradora.
16 de fevereiro de 2015
The Future
Miranda
July, de quem se tem falado muito ultimamente a propósito da publicação do seu
primeiro romance (The First Bad Man), é daqueles raros casos de talento que
se estende à literatura, à performance, à realização, à interpretação e à
música com doses comparáveis de dedicação e apreciação crítica. Aproveitando
mais uma semana de vacas magras no que respeita a estreias, o Cinéfilo
Preguiçoso viu em DVD The Future (2011), a segunda longa-metragem desta
artista. Neste filme, protagonizado pela própria realizadora e por Hamish
Linklater, o medo do futuro é explorado em níveis muito diversos que coexistem
sem se contaminar: o metafórico, o literal, o lúdico e o trivial combinam-se
para exprimir as inquietações e interrogações de um casal suscitadas pela
decisão, aparentemente banal, de adoptar um gato (cuja voz antropomorfizada
pontua de forma tocante e cómica todo o filme). Alguns elementos que vão talvez
longe de mais na escala da gratuitidade não comprometem uma obra poderosa e
inteligente. Na sua falsa ingenuidade, The Future suscita a reflexão na mesma
medida em que tantos filmes supostamente com mensagem nos deixam indiferentes.
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