O filme que o Cinéfilo Preguiçoso viu esta semana – Eva (Joseph Losey, 1962) – passou recentemente na RTP, em versão Director’s Cut, com 135 minutos (com cortes à revelia do realizador, a versão que estreou originalmente durava 103 minutos). Eva baseia-se num romance com o mesmo título de James Hadley Chase, em que se conta a história de um escritor galês de classe operária que, graças ao sucesso alcançado com a adaptação para o cinema do seu primeiro romance, passa a mover-se nos meios mais sofisticados de Veneza e Roma. O mais interessante do filme de Joseph Losey é a atmosfera jazzística e fluida, assente em impressões e imagens fugidias dos espaços onde a acção decorre. Losey opta sempre por ângulos e enquadramentos inesperados, revelando a beleza às vezes ambígua dos espaços interiores e exteriores que explora. O menos interessante e mais datado é e a linha narrativa um tanto banal, sobre um homem aparentemente bem-sucedido com uma atracção fatal por uma prostituta de luxo que precipita a sua queda. O facto de depender tanto do estatuto de Jeanne Moreau como símbolo da «essência do feminino» naquela época exige alguma contextualização histórica aos espectadores de agora. Embora a interpretação de Jeanne Moreau seja interessante, é bastante parecida com a de muitos outros papéis que desempenhou no cinema de então, como em Os Amantes (Louis Malle, 1958) ou Jules et Jim (François Truffaut, 1962). Trata-se sempre de uma personagem sedutora e sexualmente franca, com uma presença magnética e inexpressiva que, não se percebe bem como, atrai todos os homens com quem se cruza simplesmente por existir. O título do filme salienta a associação cansativa entre o feminino e o perigo, reflectindo um subtexto bíblico muito forçado e que nada acrescenta de relevante. Inicialmente, a protagonista parece uma mulher sofisticada que cultiva os prazeres da vida com quem é capaz de os pagar. Ao longo do filme, apesar de a sordidez e o declínio desta personagem se tornarem evidentes, ela continua a manipular o escritor como bem lhe apetece. É possível que os espectadores que consigam desligar-se desta linha narrativa desconchavada apreciem a singularidade visual de Eva. Sem dúvida, os amantes de Veneza e Roma encontrarão aqui algumas imagens compensadoras, que por si só justificam o visionamento deste filme que envelheceu relativamente mal, apesar da desenvoltura formal e de uma banda sonora que se pretenderia vanguardista.
27 de junho de 2021
20 de junho de 2021
Curtas de Jacques Rozier
13 de junho de 2021
Ex Libris: New York Public Library
Como se interessa por bibliotecas, há algum tempo que o Cinéfilo Preguiçoso sentia curiosidade em relação ao documentário Ex Libris: New York Public Library (Frederick Wiseman, 2017) – e esta semana viu este filme em DVD. Do ponto de vista metodológico, as estratégias privilegiadas por Wiseman em Ex Libris não são muito diferentes das que usa em documentários bem conhecidos do público português, como A Dança (2009), sobre Le Ballet de L’Opéra de Paris, ou National Gallery (2014): limita-se a estar presente e a filmar os locais e as pessoas que trabalham na instituição abordada ou que com ela interagem, encarando a filmagem como um processo de investigação e prescindindo por completo de comentários ou entrevistas. A Biblioteca Pública de Nova Iorque distingue-se por ter vários edifícios e filiais espalhados pela cidade e Wiseman dá atenção a todos estes desdobramentos, filmando também de vez em quando o espaço urbano em que estes edifícios se inserem. Em geral, no entanto, Ex Libris é um filme de interiores. Como em National Gallery, acompanhamos diferentes grupos de pessoas numa grande diversidade de actividades: reuniões da administração, sessões de esclarecimento ou de formação (em áreas tão variadas como tecnologia, leitura de Braille, ou apoio pós-escolar), atendimento ao público, encontros com escritores, clubes de leitura, concertos, investigação, etc. Não são descurados certos aspectos e pormenores técnicos de algumas destas actividades: quando assistimos, por exemplo, a uma primeira aula de Braille, ficamos a saber com que dedos se lê; surpreendemo-nos com a profundidade de conhecimentos do funcionário que responde ao telefonema de alguém que quer saber mais sobre unicórnios; adquirimos informação sobre critérios de organização e de empréstimo de alguns arquivos de imagens; aprendemos coisas sobre modelos de financiamento. Este documentário foi filmado em plena era Trump, e o próprio Wiseman assume, por contraste, uma abordagem política que atribui grande importância à dimensão democrática e inclusiva desta biblioteca, descrita como instituição de combate à desigualdade, na medida em que dá acesso à informação. A dada altura, no contexto de um concurso de projectos de arquitectura, uma arquitecta explica que não vê as bibliotecas como lugares de livros, mas sim como lugares de pessoas – e Wiseman está próximo desta perspectiva. Apesar de, à primeira vista, a igualdade parecer um conceito abstracto, Wiseman torna-o bastante concreto quando filma atentamente as pessoas que participam nas actividades dos diferentes espaços, mostrando toda a diversidade cultural dos públicos, dos profissionais e dos convidados ali reunidos. Um momento alto associado a este tema é aquele em que, numa reunião de administração, a propósito de uma discussão sobre a presença de pessoas sem-abrigo na biblioteca, um dos responsáveis salienta um traço distintivo desta, quando explica que, apesar de na vida normal parecer haver fronteiras entre diferentes grupos de pessoas, na biblioteca essas fronteiras não existem e todas as pessoas são iguais. Convém salientar, no entanto, que alguém que decida ver este filme porque se interessa simplesmente por livros, hábitos de leitura e métodos de organização de informação poderá sentir-se ligeiramente desiludido. Ao contrário do que acontece em National Gallery, em que se dá uma grande atenção às propriedades físicas das obras de arte, em Ex Libris Wiseman parece mais preocupado com as dimensões imateriais e desmaterializadas de uma biblioteca e com a sua função social. É uma abordagem que desaponta um pouco os amantes de livros em papel, mas talvez por isso mesmo propicie a reflexão sobre o futuro destas instituições.