18 de dezembro de 2016

Os Belos Dias de Aranjuez


Baseado na peça com o mesmo título de Peter Handke, Os Belos Dias de Aranjuez, de Wim Wenders (2016), apresenta-nos o dispositivo simples de um escritor (Jens Harzer) tentando escrever, rodeado de livros numa casa nos arredores de Paris. No jardim, em torno de uma mesa com uma maçã vermelha e dois copos de limonada, estão sentadas as suas personagens: uma mulher e um homem, com um cão aos pés. O filme resume-se essencialmente aos diálogos da peça, representados quase em simultâneo com o momento em que ocorrem ao autor e interrompidos ocasionalmente por canções provenientes de uma jukebox. A dada altura, Nick Cave interpreta ao piano a balada «Into My Arms», numa aparição que nos remete para As Asas do Desejo (1987) – outro capítulo da colaboração entre Wenders e Handke, que já dura há décadas, embora com muitas intermitências. A personagem feminina (Sophie Semin) descreve as suas aventuras amorosas ao longo do tempo, de certo modo satisfazendo o voyeurismo da personagem masculina (Reda Kateb), que nada refere da sua experiência nos mesmos assuntos, tendo apenas algumas intervenções que consistem em perguntas à mulher ou divagações poéticas mais gerais. Visto que Os Belos Dias de Aranjuez depende do discurso da protagonista, um espectador que não se sinta próximo nem da linguagem etérea e abstracta de Peter Handke nesta peça nem do tom teatral e solene com que o texto é enunciado sentirá algumas dificuldades de adesão, apesar da beleza visual do filme. O fim ocorre em tom apocalíptico, sugerindo que talvez o tempo em que é possível ter conversas deste teor esteja ameaçado, prestes a acabar, ou já tenha mesmo acabado. Em suma, Os Belos Dias de Aranjuez distingue-se no panorama cinematográfico actual por ser uma combinação curiosa de minimalismo e exploração formal (incluindo o recurso ao 3D), nem sempre bem conseguida. Para quem quiser evitar os blockbusters e o caos desta época do ano, pode, no entanto, ser uma boa opção.

Nas próximas duas semanas, o Cinéfilo Perigoso estará em modo de pausa. Bom Natal e feliz ano novo para todos.

11 de dezembro de 2016

House of Games


O filme Hitchcock/Truffaut, pelo qual o Cinéfilo Preguiçoso esperou e desesperou, estreou finalmente em Portugal, ao fim de múltiplos adiamentos. Ainda assim, há muitas razões para valorizar o DVD, uma das maiores invenções da humanidade. Nesta semana, a escolha recaiu sobre House of Games (1987), de David Mamet. A personagem principal deste filme, Margaret (Lindsay Crouse), é uma psicanalista que escreveu um livro de sucesso sobre comportamentos obsessivos e compulsivos. Ao tentar ajudar um dos seus doentes, envolve-se com um grupo de vigaristas liderados por Mike (Joe Mantegna) que estabelecem com ela uma cumplicidade ilusória com o objectivo de lhe extorquirem somas de dinheiro consideráveis. A maneira como Margaret reage quando percebe ter sido ludibriada é radical mas perfeitamente coerente com a ideia central do filme: a incompatibilidade entre o feitio compulsivo da protagonista e o talento para a dissimulação que caracteriza os con artists. House of Games pode também ser visto como a trajectória de auto-afirmação de uma mulher que enfrenta problemas e traumas que nunca são revelados. Essa auto-afirmação adquire contornos rigorosamente amorais – aliás, a moral está completamente ausente deste filme: o interesse e a autopreservação são as forças dominantes, sendo irónico constatar que o único acto altruísta (a tentativa de prestar auxílio a um doente) é precisamente aquele que precipita os acontecimentos, constituindo a força motriz do filme. Visto hoje, em comparação com obras do mesmo realizador como A Prisioneira Espanhola (1997) ou Heist (2001), House of Games pode deixar o espectador com a impressão de já ter visto estes mesmos truques, mas praticados com maior sofisticação. Esta primeira longa-metragem de Mamet pode parecer esparsa e contida, mas é precisamente essa contenção que permite realçar o conteúdo humano das personagens e confere maior poder à história. Crouse e Mantegna assimilam na perfeição o estilo de representação directo e no-nonsense defendido e praticado por Mamet, por detrás do qual se dissimula um trabalho subtil e rigoroso com a linguagem. Mantegna, um actor brilhante mas algo subaproveitado, tem aqui uma das suas muitas colaborações com Mamet, no cinema e no teatro. Quanto a Crouse, a sua interpretação leva a pensar que mereceria mais oportunidades e maior visibilidade numa carreira que, apesar de tudo, conta já com uma nomeação para os Óscares (em 1985 – perdeu para Peggy Ashcroft).

4 de dezembro de 2016

The Shining


Esta semana, em vez de uma estreia recente, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu ver The Shining (Stanley Kubrick, 1980) em DVD. Neste filme, baseado no romance homónimo de Stephen King (1977), Jack Torrance (Jack Nicholson), com o objectivo de encontrar a concentração necessária para escrever, aceita o cargo de encarregado de manutenção de Inverno de um hotel no Colorado que encerra durante essa estação. Apesar dos avisos, Jack Torrance não está preparado para o isolamento que se instala quando o hotel fecha e os únicos habitantes passam a ser ele, a mulher e o filho pequeno, uma criança com competências paranormais que incluem telepatia e a capacidade de ver o passado e o futuro. O labirinto no jardim do hotel espelha a estrutura labiríntica do edifício, que, por sua vez, parece replicar a própria desorientação do protagonista, perdido dentro de si mesmo. A dada altura, as fronteiras entre o real e o imaginário diluem-se em sangue e as personagens supostamente reais começam a cruzar-se com fantasmas mais ou menos maléficos que teriam povoado o hotel no passado, alguns deles parecendo vir de um filme que Kubrick só realizaria no futuro (De Olhos Bem Fechados, 1999).  Impondo um ritmo lento que lembra 2001: Odisseia no Espaço (1968), Kubrick delicia-se a filmar os corredores intermináveis do hotel desocupado, pelos quais de vez em quando passam figuras humanas diminutas, tanto dos próprios protagonistas como de outras criaturas, imaginadas ou não. A banda sonora de The Shining (Penderecki, Ligeti, Bartók…) é adequadamente sinistra, por vezes de forma exagerada, contribuindo para que o filme seja não só assustador mas também faça rir de vez em quando – nem sempre um riso agradável. Podemos imaginar que todos os horrores do hotel representam as dificuldades com que um escritor se debate quando tem de trabalhar num livro. Já houve também quem dissesse que The Shining é um filme sobre o cinema, cujas personagens sonham as peripécias em que participam. Uma das ilustrações desta teoria é a sequência em que Jack se dirige ao bar vazio do hotel e imagina ou convoca todo um conjunto de clientes e funcionários. Também é nesta cena que o protagonista supostamente contacta com um seu antecessor, que lhe proporciona a estranha revelação de que o próprio Jack terá estado sempre ali – faz parte do elenco do Hotel Overlook. A força de The Shining reside em não se levar demasiado a sério e em não procurar impor explicações ou leituras, deixando essa tarefa, espinhosa e estimulante, para o espectador. Também nisto The Shining se aproxima de De Olhos Bem Fechados.

27 de novembro de 2016

Animais Nocturnos


De Tom Ford, estilista e ex-director artístico da Gucci e Yves Saint Laurent reconvertido ao cinema, conhecíamos A Single Man, um filme visualmente sofisticado, interessante mas sobrevalorizado. A sua segunda longa-metragem, Animais Nocturnos, confirma a propensão estetizante deste realizador, traduzida em planos e movimentos de câmara que aspiram à elegância formal e à afirmação de um cunho pessoal, mas que se tornam rapidamente irritantes. Nenhum dos dois enredos do filme desperta interesse. O primeiro consiste no retrato da crise conjugal da protagonista, Susan (Amy Adams), dona de uma galeria de arte. O segundo confunde-se com a história narrada pelo romance que o autor, ex-marido de Susan (Jake Gyllenhaal), lhe enviou, naquilo que parece ser uma tentativa de reaproximação. O primeiro é banal e insignificante; o segundo, sórdido e nos limites do tolerável, envolve o encontro entre uma família e um bando de rufias numa estrada do Texas e parece um mau remake de No Country for Old Men (2007), dos irmãos Coen. A intersecção entre a história da vida de Susan e o enredo do livro não traz qualquer valor acrescentado; os raccords pueris a que Ford se entrega, sugerindo uma afinidade espiritual entre Susan e o protagonista do romance (que o espectador é convidado a identificar com o ex-marido) não ajudam a que algo de significativo surja desse cruzamento. O único elemento redentor é a presença de Amy Adams, uma actriz magnífica que merecia bem mais do que os filmes medíocres ou indiferentes em que a temos visto recentemente (por exemplo, American Hustle, de 2014, e Big Eyes, de 2016). Animais Nocturnos, baseado no romance Tony and Susan, de Austin Wright, recebeu o Grande Prémio do Júri no último Festival de Veneza: claramente, Sam Mendes e os seus colegas jurados descobriram no filme virtudes a que o Cinéfilo Preguiçoso é insensível.

20 de novembro de 2016

Ela


Baseado no romance Oh..., de Philippe Djian, Ela, de Paul Verhoeven (2016), gira em torno da história de Michèle Leblanc (Isabelle Huppert), fundadora e directora de uma empresa de videojogos. Como vamos descobrindo ao longo do filme, a vida de Michèle ficou marcada por um acontecimento sinistro na sua infância, em que, num episódio psicótico agudo, o pai, católico fervoroso e cidadão exemplar, matou todos os filhos e animais dos vizinhos. Talvez este seja o tema mais interessante do filme: a possibilidade de a violência e a loucura se manifestarem de modo inesperado no contexto da normalidade supostamente mais inofensiva. Este tópico é declinado de acordo com as regras amorais dos jogos de vídeo caracterizados pela violência contra as mulheres. A recusa da protagonista de recorrer à polícia para se proteger das ameaças e dos ataques de que é alvo permite que o seu quotidiano seja contaminado, sem violação das regras do realismo, por este tipo de universo. Apesar de depender de uma protagonista feminina e ser difícil de imaginar sem a figura forte de Isabelle Huppert, Ela é um filme com conteúdo misógino. Quase todas as personagens masculinas são retratadas como figuras fracas e vulneráveis a determinadas debilidades ou doenças (o próprio atacante de Michèle se destaca pela simpatia e bonomia, o filho é um irresponsável gentil), enquanto a protagonista, a única que consegue manter-se à tona, é filmada como uma criatura manipuladora e perigosa – também por fazer o que faz sendo mulher, como o próprio título do filme sublinha. Nem sequer lhe falta um gato, como se espera das bruxas. (O tema arcaico do carácter maléfico das mulheres que se atrevem a tentar «actividades próprias dos homens» ainda não se esgotou, como também pudemos constatar nas recentes eleições norte-americanas.) Em suma, Ela é um filme interessante em alguns aspectos, por ajudar a pensar sobre o que é a normalidade e sobre a representação das mulheres com poder, mas deve ser visto com algum distanciamento irónico. Felizmente, nem a vida nem todos os filmes se assemelham a jogos de vídeo, ainda que por vezes pareçam arriscadamente próximos desse contexto.

13 de novembro de 2016

L'Ombre des Femmes


Apesar de ter um cunho individual inconfundível, a já longa carreira do realizador Philippe Garrel (n. 1948), que começou na ressaca da Nouvelle Vague, tem estado em relativa sintonia com as principais fases do cinema francês: do experimentalismo e hermetismo dos anos 70, evoluiu para um naturalismo desencantado, pontuado por referências ocasionais à política e à história (por exemplo em Liberté, La Nuit, de 1983, e Les Amants Réguliers, de 2005). L’Ombre des Femmes (2015), visto pelo Cinéfilo Preguiçoso em DVD, insere-se nesta linhagem realista, embora a Paris filmada a preto-e-branco pelo lendário Renato Berta (que trabalhou com Oliveira, Resnais, Straub/Huillet, Rohmer, Godard e Rivette, entre outros) tenha algo de feérico: as ruas desertas, banhadas numa luz crua, parecem existir apenas para servir de cenário a encontros, perseguições e vigilâncias. O enredo poderia ser o de qualquer outro filme de Garrel: um casal, dois amantes, ruptura, reconciliação. O aspecto mais interessante e vagamente original do filme talvez seja a maneira como encena um esboço de introspecção e análise, concretizado pela voz-off (de Louis Garrel), que parece assumir a perspectiva da personagem masculina mas usando uma terceira pessoa onde cabem a cumplicidade mas também uma lucidez amarga. O final, ambiguamente feliz, pode ser visto como um prodígio de minimalismo emocional ou enquanto constatação de que o reencontro é tão arbitrário e despido de significado como qualquer outra peripécia amorosa. O que fica ainda deste filme saudavelmente avesso a mensagens profundas são os actores, quase todos soberbos: Stanislas Merhar, cuja personagem de ciumento patológico faz recordar o seu papel em A Prisioneira (2000), de Chantal Akerman; Clotilde Courau, cada vez mais interessante à medida que envelhece; e ainda a fabulosa Vimala Pons (vista em A Rapariga do 14 de Julho), num papel secundaríssimo. Por razões misteriosas (homenagem despropositada a Proust?), L’Ombre des Femmes foi traduzido em Português por À Sombra das Mulheres.

6 de novembro de 2016

Hitchcock/Truffaut


Cansado de esperar pela estreia em sala do filme Hitchcock/Truffaut de Kent Jones (2015), o Cinéfilo Preguiçoso comprou o DVD. Este documentário explora as conversas que deram origem a um livro famoso e interessante não só para cinéfilos e realizadores, publicado em Portugal com o título Hitchcock: Diálogo com Truffaut. O filme organiza-se em torno de alguns excertos das gravações destas conversas. Isto revela-se uma opção inteligente na medida em que o próprio tom de voz de Hitchcock fornece enquadramentos diferentes a momentos particulares das entrevistas. Um exemplo é a célebre citação segundo a qual «os actores são gado»: percebemos que foi articulada com indignação e incredulidade porque um actor (Montgomery Clift durante a rodagem do filme I Confess, de 1952) quis «desequilibrar toda a estrutura espacial de um filme» por ter dúvidas existenciais sobre um plano. Os excertos das gravações são pontuados por depoimentos de realizadores como Martin Scorsese, David Fincher, Arnaud Desplechin, Olivier Assayas ou James Gray, a propósito não só da importância do livro nas suas vidas mas também dos filmes de Hitchcock que consideram mais marcantes. Neste ponto, apesar de Hitchcock/Truffaut seguir uma estrutura muito semelhante à de Trespassing Bergman, distingue-se deste documentário pela positiva devido ao facto de nestes depoimentos serem comentadas com pormenor cenas específicas da obra de Hitchcock (nomeadamente de Vertigo, The Wrong Man e Psycho), em vez de se privilegiarem aproximações impressionistas. A perversidade dos interesses de Hitchcock tornou-se um lugar-comum que continua a ser repisado nestes testemunhos, mas muito mais fascinantes são as referências à inteligência formal do realizador e ao modo como o seu pensamento se traduz em imagens: predomina a ideia de o realizador ser «um teórico do espaço» que vê cada filme como uma estrutura, um cineasta com uma mente «puramente matemática», capaz, no entanto, de sobrecarregar o cinema de emoção. Só uma abordagem formal pode verdadeiramente fazer justiça a toda a emoção e admiração que a obra deste realizador suscita. Ao mesmo tempo, a tensão emocional com que vemos os filmes de Hitchcock está presente nos depoimentos: talvez o ponto mais alto seja aquele em que James Gray se refere à cena de Vertigo em que Scottie faz Madeleine regressar dos mortos como o momento mais belo da história do cinema – mesmo que nos ocorram outras cenas, como discordar? Hoje a questão que, de acordo com o filme de Kent Jones, mais terá preocupado Hitchcock – seria ele um artista ou só um entertainer? – está mais do que resolvida: aliás, parece inacreditável que alguma vez tenha havido dúvidas a este respeito.

30 de outubro de 2016

O Ornitólogo


Em O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues (2016), seguimos o percurso de Fernando, um ornitólogo que se dedica à observação dos hábitos de várias espécies de aves enquanto desce o rio Douro de caiaque, numa zona isolada e quase desprovida de presença humana. Uma distracção na aproximação a uns rápidos quase precipita o seu afogamento. Acaba por ser salvo por duas improváveis peregrinas chinesas, mas esse é apenas o começo de uma sequência de aventuras e encontros, cada vez mais bizarros, repletos de referências etnográficas, mitológicas e sobretudo cristãs. De forma progressiva, e sem concessão a qualquer lógica ou realismo, Fernando metamorfoseia-se em Santo António e acaba o filme na berma da estrada, a caminho de Pádua; não falta sequer um sermão aos peixes. Essa transformação ocorre em paralelo com a substituição gradual do actor principal, Paul Hamy (uma agradável surpresa), pelo próprio realizador – até à sequência final do filme, em que João Pedro Rodrigues assume totalmente o papel de Fernando/António. A multiplicidade de alusões, citações e referências é desconcertante. Fica a impressão de que, mais do que impor uma qualquer leitura simbólica coerente, João Pedro Rodrigues pretendeu descrever um percurso do registo realista para o registo onírico e fantástico, da lucidez para a alucinação. O Ornitólogo dispensa densidade hermenêutica; é visualmente empolgante e poderoso na sua singularidade de objecto desligado de qualquer justificação ou contexto. A singularidade não exclui a tentação de apontar semelhanças com Veredas (1977), de João César Monteiro (onde o Portugal profundo é palco de intersecções inesperadas entre o mito e a realidade) e O Desconhecido do Lago (2013), de Alain Guiraudie (o elemento líquido, a proximidade entre o desejo e a morte…). João Pedro Rodrigues recebeu o Leopardo para Melhor Realização no Festival de Locarno, por este filme.

23 de outubro de 2016

Café Society


Devido não só à preguiça mas também a uma concentração inusitada de prazos, deslocações, compromissos e falta de disponibilidade mental para estudar a programação, este ano o Cinéfilo Preguiçoso não verá um único filme do DocLisboa. Em contrapartida, não perdeu Café Society (2016), o filme mais recente de Woody Allen (e primeira colaboração deste com o lendário director de fotografia Vittorio Storaro, também responsável por filmes como O Último Tango em Paris ou Apocalypse Now). Café Society passa-se em Hollywood e Nova Iorque nos anos trinta do século vinte, encenando uma defesa ambígua da vida simples, em contraste com os ambientes retratados. A estrutura narrativa divide-se entre uma intriga romântica e uma história de gangsters relacionada com a família de um dos protagonistas, que parece flagrantemente lateral e acaba por desequilibrar o filme. Na intriga romântica, reencontramos o tema dos erros nas escolhas, associado à ideia rohmeriana de que o parceiro mais adequado é não o escolhido mas sim o encontrado. O encanto do filme resulta tanto da presença e do desempenho dos actores nos papéis principais – Jesse Eisenberg (Bobby) e Kristen Stewart (Vonnie) – como do facto de Woody Allen os filmar de um modo inédito. Talvez nunca se tenha visto um Jesse Eisenberg tão contido e resignado como na segunda parte deste filme, reforçando a ideia de que a passagem do tempo traz sempre mais consequências do que inicialmente se pensa. Por sua vez, Kristen Stewart é filmada como uma estrela do passado, mas sempre um pouco deslocada, sem perder uma certa componente quotidiana, contemporânea e independente que a distingue, em oposição a Blake Lively (Veronica), muito bonita, porém isenta de qualquer densidade dramática – no que, aliás, espelha a própria falta de densidade não só da sua personagem mas também dos universos em que circula. O fim do filme, um dos momentos mais puramente românticos do cinema de Allen de há muitos anos para cá, é o seu ponto mais alto. Não sabemos o que acontecerá a seguir, mas naquele momento os protagonistas parecem perceber a verdadeira dimensão do erro cometido. É um momento de paragem e compreensão, coisa tão rara nos dias que correm.

16 de outubro de 2016

Barbara


Barbara (2012) foi a sexta longa-metragem de Christian Petzold, um dos representantes da chamada “Escola de Berlim”. Tal como em Phoenix (2014, filme seguinte do mesmo realizador, protagonizado igualmente por Nina Hoss e Ronald Zehrfeld), a história gira em torno de personagens cujo passado atribulado, progressivamente revelado, condiciona os seus comportamentos e decisões. A personagem principal é uma pediatra que, na Alemanha Oriental de 1980, é punida com o desterro para um hospital de província por ter pedido autorização para abandonar o país. Apesar de alguma frieza, vista como arrogância pelos colegas, Barbara revela competência e empatia com os seus doentes, ao mesmo tempo que se aproxima de André, o director de serviço, também ele desterrado devido a um erro médico; entretanto, prepara em segredo a sua fuga, em conivência com o amante da Alemanha Ocidental. Petzold adopta uma abordagem linear e sóbria, deixando que as personagens e os actores (sobretudo Hoss, com quem colaborou em quase todos os seus filmes) se exprimam. O registo esparso e objectivo só é interrompido numa cena quase fantasmagórica perto do final do filme, junto ao mar, e em alguns momentos entre o surreal e o burlesco (as criadas de um hotel fazendo o pino para evitar as varizes, ou o diálogo sobre as virtudes de um Mercedes, a poucos metros do local onde Barbara se encontra com o amante, em plena floresta). Todo o filme converge para a decisão final de Barbara, que abdica da oportunidade de fugir e de ser livre, em benefício de uma doente sua de quem se aproximou. O facto de Petzold deixar em aberto todas as leituras e motivações possíveis (sentido do dever?, paixão por André?, desilusão em relação ao amante?, patriotismo residual?, resignação?) permite que se insinue uma impressão de moralismo e conformismo que não era decerto o efeito pretendido. Para quem se interessa por estas coisas (o Cinéfilo Preguiçoso interessa-se), Petzold recebeu por este filme o Urso de Prata para melhor realizador no Festival de Berlim de 2012, o mesmo que consagrou Tabu (2012), de Miguel Gomes, com o prémio Alfred Bauer. Nesse ano o Urso de Ouro foi para os irmãos Taviani e Mike Leigh presidiu ao júri.

9 de outubro de 2016

Um Editor de Génios


Baseado no livro Max Perkins: Editor of Genius, de A. Scott Berg, Um Editor de Génios (2016), filme de estreia do encenador Michael Grandage, gira em torno da história do editor da Scribner Maxwell Perkins (Colin Firth), que descobriu e trabalhou com escritores como Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald ou Thomas Wolfe (Jude Law), o outro protagonista do filme. As actividades de ler, escrever, editar, rever e discutir correcções ou cortes num texto podem ser cinematográficas? A julgar por este filme, nem por isso. Sem saberem como abordar visualmente esta dimensão tão importante da vida das personagens, o realizador e o argumentista John Logan investiram tudo no contraste fácil entre, por um lado, o clichê do escritor espalhafatoso que supostamente escreve como vive e sobre o que vive e, por outro, o editor calmo, metódico e rigoroso, totalmente obcecado pelo trabalho. Esta opção transforma o que poderia ser um filme interessante sobre escrita e edição num festival de interpretações previsíveis: Colin Firth fazendo de si próprio; Jude Law não só ainda mais canastrão e irritante do que é habitual, mas também dado a acessos de incontinência verbal e gestual muito para lá daquilo que a personagem pedia. As cenas em que alguém escreve ou edita são fugazes e decorativas, funcionando mais como separadores do que como motor da narrativa. Apesar de ser apresentado como escritor prolífico, Thomas Wolfe raramente é mostrado a escrever. O mais interessante de Um Editor de Génios acaba por ser a reconstituição histórica de Nova Iorque na época da Grande Depressão, associada à evocação de uma geração de escritores com vidas e estilos divergentes, mas com fins igualmente trágicos. A oposição mais irónica é aquela que se estabelece entre Thomas Wolfe e Scott Fitzgerald: o primeiro enquanto escritor torrencial que produz sucessos de vendas; o segundo como alguém que, além de se debater com dificuldades para conseguir escrever e sobreviver, é mal recebido pelos contemporâneos (na única sequência do filme que suscita um sorriso, Scott Fitzgerald lamenta o facto de no ano anterior ter recebido pouco mais de dois dólares de direitos por The Great Gatsby). Obviamente, a ironia reside no facto de actualmente quase ninguém se lembrar de Thomas Wolfe, enquanto Fitzgerald continua a ser estudado e celebrado. É sempre bom que o cinema nos recorde que adivinhar o futuro da literatura é uma tarefa delicada.

2 de outubro de 2016

A Lagosta


Desta vez a escolha do Cinéfilo Preguiçoso recaiu sobre A Lagosta (2015), de Yorgos Lanthimos, realizador grego que adquiriu grande notoriedade desde Canino (2011). Tal como este, A Lagosta descreve um mundo fechado e regido por leis rígidas, aplicadas com violência extrema. O percurso da personagem principal, David (Colin Farrell, numa interpretação sóbria e eficaz), vai permitindo ao espectador descobrir as regras de uma sociedade que desencoraja a solidão e a condição de solteiro, ao ponto de ser dado aos cidadãos desemparelhados um prazo para encontrarem um companheiro, findo o qual serão transformados num animal à sua escolha. Lanthimos tenta, com sucesso variável, fazer a atenção atribuída às peripécias vividas por David coexistir com os significados metafóricos do filme, mais ou menos subtis. A Lagosta funciona melhor quando aposta no humor negro e menos bem quando se desdobra em novas ramificações e subenredos para refinar a componente de crítica social. A impressão geral é a de um filme engenhoso e muito meditado, mas que faz lembrar demasiadas vezes o pior Haneke e deixa o espectador a suspirar pelo melhor Kubrick. Na coluna dos activos, mencione-se ainda a fotografia e os cenários: a alternância entre o hotel antiquado onde os solitários esperam pela alma gémea ou pela metamorfose, a floresta frondosa onde David encontra um exército de rebeldes (tão fanáticos na defesa do celibato como os seus oponentes na imposição da conjugalidade) e o ambiente urbano anónimo da grande cidade contribui para a atmosfera distópica. A Lagosta recebeu o prémio do júri do festival de Cannes de 2015 (presidido pelos irmãos Coen).

25 de setembro de 2016

Julieta


Esta semana – quem diria? – o Cinéfilo Preguiçoso foi ao cinema. O filme que possibilitou esta ocasião foi Julieta (2016), a vigésima longa-metragem de Pedro Almodóvar, inspirada pelos contos «Chance», «Soon» e «Silence», de Alice Munro. O espectador sente-se em pleno universo almodovariano logo nas cenas iniciais, quando a protagonista arruma livros para levar numa viagem, com a angústia de quem não quer deixar para trás nada de essencial à vida. Recorda-se imediatamente o momento de A Flor do Meu Segredo (1995) em que Leo (Marisa Paredes) descreve as escritoras preferidas: as loucas, as doentes, as suicidas, as alcoólicas... Apesar de Julieta recuperar o interesse do realizador por personagens femininas fortes mas entregues à dor, distingue-se da restante obra por uma abordagem mais minimalista e menos estridente: não há discussões muito violentas, gritos e lágrimas; as personagens sofrem em silêncio. Esta ausência de confrontos verbais acaba, aliás, por ser o motor narrativo do filme, ao contribuir para desencadear as tragédias que ocorrem – um suicídio, uma morte no mar e um desaparecimento. A alienação e o mutismo da mãe da protagonista, vítima de Alzheimer, dão corpo ao silêncio que vai minando a vida de todas as personagens. Outro elemento interessante é o modo como Almodóvar trabalha a noção de que há sentimentos que vão passando de geração em geração, através da repetição dos mesmos erros e incompreensões. A falta de linearidade da estrutura temporal da narração ilustra a repetição dos erros: Julieta recrimina-se por passar à filha toda a culpa injustificada que sempre sentiu; os filhos desaparecem da vida dos pais e só quando, por sua vez, perdem também um filho, percebem a dor que causaram no passado ou continuam a causar. A actriz Rossy de Palma encarna uma personagem sinistra, como um fantasma vindo dos primeiros filmes de Almodóvar. Alguns dos momentos mais fortes e inesquecíveis do filme, porém, concentram-se na belíssima sequência no comboio, quase onírica e tão hitchcockiana: um ramo que bate na janela; um suicida que tenta conversar antes de pôr fim à vida; um veado perdido na noite; o acidente que ninguém quer descrever.

18 de setembro de 2016

Woman of Tokyo


Nesta semana, o Cinéfilo Preguiçoso viu Woman of Tokyo (1933), filme mudo de Yasujiro Ozu, reunido numa edição em DVD do British Film Institute com duas obras mais tardias: Tokyo Twilight (1957) e Early Spring (1956). Woman of Tokyo, que dura apenas quarenta e cinco minutos e que terá sido rodado em apenas nove dias, é um melodrama cujo enredo se resume numa frase: o estudante universitário Ryoichi comete um acto tresloucado ao descobrir que a irmã trabalha como dançarina num clube nocturno para pagar as propinas dele. A narrativa é linear e caracteriza-se por uma absoluta economia de meios, com duas únicas excepções: um bizarro filme dentro do filme (Ryoichi e a namorada assistem a uma cena do episódio realizado por Lubitsch do filme If I Had a Million, de 1932) e um esboço de crítica social visando a imprensa sensacionalista, representada por alguns jornalistas que assediam a irmã e a namorada de Ryoichi, em busca de notícias trágicas. Ozu filma esta história simples e funesta com uma empatia extraordinária pelas personagens e uma atenção constante aos seus gestos e gradações de sentimento; esse elemento humano coexiste – e não há aqui nada de paradoxal – com numerosos planos aproximados de objectos (chaleiras, tigelas, luvas, uma peça de fruta cortada ao meio) que parecem secundarizar as pessoas mas ajudam a integrá-las na paisagem quotidiana onde se desenrolam as suas vidas. Procurar semelhanças entre o Ozu dos anos trinta e o Ozu do período do pós-guerra, marcado por uma sucessão de obras-primas que lhe trouxeram reconhecimento internacional, é um exercício supérfluo para a apreciação deste filme, mas é impossível deixar de notar aqui um estilo já plenamente formado e seguro, que aguardava talvez a maturidade e a cumplicidade de actores lendários como Chishu Ryu e Setsuko Hara para passar do tocante para o sublime. Outras características de Woman of Tokyo em que também se reconhece a marca de água do cinema de Ozu são a forma como esvazia de qualquer vestígio de grandiosidade trágica o acto desesperado de Ryoichi, assim como a lucidez com que nos mostra o princípio do resto das vidas das personagens: a namorada em pranto, a irmã revoltada («Foste um fraco!»), os repórteres em busca de mais sangue e lágrimas, o último movimento de câmara, um pouco à deriva, numa rua silenciosa.

11 de setembro de 2016

Na Cave



O que terá acontecido ao filme Hitchcock/Truffaut, de Kent Jones (2015), com estreia prevista para Setembro? Não se sabe. Além disso, quando se consulta a lista de estreias até ao fim deste mês em Portugal, parece não haver um único título capaz de convencer o Cinéfilo Preguiçoso a deslocar-se a uma sala de cinema. Restam os DVDs, mas às vezes fazem-se compras que depois suscitam arrependimento. Se um dia, por falta de espaço, o Cinéfilo Preguiçoso decidir livrar-se de alguns filmes, o documentário Na Cave, de Ulrich Seidl (2014), parece um forte candidato à eliminação, logo seguido por Chocolate, de Lasse Halström (2000), que um dia veio de graça com um jornal. O que há nas caves dos austríacos filmados por Seidl? Coisas bizarras, mas francamente desinteressantes: colecções de objectos relacionados com Hitler, carreiras de tiro onde se desenrolam conversas racistas, troféus de caça, equipamento para práticas sadomasoquistas, bonecos representando bebés de modo bastante realista, móveis que foram «muito caros». Como fantasmas tão insistentes que acabam por parecer inofensivos, os proprietários das caves vão reaparecendo ao longo do filme, geralmente filmados em planos frontais repetitivos e monótonos, reencenando práticas e dizendo inanidades. Apesar de haver diferenças importantes entre as diversas figuras que se prestam a ser filmadas, estas são equiparadas, como se houvesse entre elas uma ligação explicativa mais abrangente que as transforma em actantes da mesma doença. O filme parece conter uma advertência moral (cuidado com as coisas subterrâneas), mas não chega propriamente a ser satírico, por ser tanta a mediocridade documentada. Cai no ridículo quando tenta que o espectador partilhe a sua tentativa de ridicularizar os intervenientes. Fica-se  a pensar se o que não é subterrâneo na Áustria não será muito mais perigoso. Quem conseguir chegar ao fim do filme precisará de um antídoto para reanimar os neurónios atordoados: para um retrato inteligente e realmente mordaz da Áustria, recomenda-se a leitura da obra de Thomas Bernhard.

4 de setembro de 2016

O Desconhecido do Lago


O Cinéfilo Preguiçoso regressou de férias e constatou que existem poucos motivos de entusiasmo na lista de estreias das próximas semanas; felizmente, o seu baú de DVDs está bem aprovisionado. O Desconhecido do Lago (2013) é a quarta longa-metragem de Alain Guiraudie, realizador cujo estatuto de ave rara do cinema francês se tem diluído, a ponto de o seu mais recente filme (Rester Vertical, de 2016, ainda inédito entre nós) ter integrado a selecção oficial do último festival de Cannes. O Desconhecido do Lago passa-se integralmente num lago artificial da região da Provença e no mato circundante, palco de encontros sexuais furtivos entre homens. Franck trava amizade com Henri (personagem ambígua, que durante quase todo o filme se limita a observar e comentar a acção, mas precipita o desenlace quando age pela primeira e única vez num dos momentos mais surpreendentes do filme) e apaixona-se por Michel, apesar de o ter visto assassinar um amante. À excepção do homicídio (filmado de forma assombrosa, muito de longe e sem cortes, num lusco-fusco sinistro e opressivo), a acção do filme resume-se aos diálogos junto à água, às braçadas dos banhistas e às actividades sexuais no meio de vegetação, mostradas de forma explícita mas com uma candura desconcertante. As cenas finais, mergulhadas numa treva quase total, remetem-nos para o domínio do conto de terror, talvez o único género apropriado para acolher os últimos momentos de Franck: dilacerado entre o medo e o desejo, desejoso ao mesmo tempo de fugir e de reencontrar o amante. O Desconhecido do Lago rompe com o estilo que Guiraudie cultivou em muitos dos seus filmes anteriores, que integravam elementos fantásticos, oníricos e iconoclastas ao serviço de um humor muito peculiar, sem nunca perder de vista o contacto com problemas muito reais de sociedade, política e identidade sexual. No entanto, a utilização da natureza semi-selvagem como cenário único aparenta-o ao extraordinário Du Soleil pour les Gueux, uma curta-metragem que, pela duração (55 minutos), originalidade e notável coerência estética, merece figurar na filmografia de Guiraudie ao lado das suas longas-metragens, que esperamos continuar a ver nas salas portuguesas.

31 de julho de 2016

Uma Pastelaria em Tóquio


Uma Pastelaria em Tóquio (2015) é a longa-metragem mais recente da realizadora japonesa Naomi Kawase, que tem vindo a conquistar um lugar estável nos festivais europeus e nos circuitos de estreias em sala. O enredo do filme, baseado no livro do romancista, poeta e performer Durian Sukegawa, é de grande simplicidade: Sentaro, o dono solitário e melancólico de uma pequena pastelaria especializada em dorayaki (panquecas recheadas), contrata como ajudante Tokue, uma senhora idosa com um talento extraordinário para a confecção do recheio de pasta doce de feijão. Confrontado com a revelação de que a senhora é uma sobrevivente da lepra que vive num sanatório desde a juventude, Sentaro resigna-se a vê-la partir por pressão da proprietária da loja e dos próprios clientes. Apesar de breve, este convívio marca a vida de ambos, o que se torna claro quando Sentaro herda os apetrechos de cozinha de Tokue após a morte desta, acabando por abandonar a pastelaria e estabelecer-se por conta própria, com uma banca ao ar livre. Uma Pastelaria em Tóquio não é desprovido de algum interesse e encanto, sobretudo no primeiro terço, quando os gestos e procedimentos da confecção dos dorayaki são mostrados com uma precisão e objectividade de documentarista, permitindo ao espectador apreciar o virtuosismo de Kawase no tratamento dos planos aproximados recolhidos no espaço exíguo da pastelaria. Infelizmente, o filme resvala rapidamente para um sentimentalismo que soa a falso. O nadir deste percurso descendente talvez seja a referência às histórias que todos os seres transportam consigo, incluindo (ao que parece) os próprios feijões. Outro passo em falso é a maneira forçada como a personagem de Wakana, uma adolescente com problemas familiares, é incluída, parecendo uma tentativa canhestra de tentar evitar um enredo demasiado centrado no par Sentaro-Tokue. Pelo menos, os percursos pedestres de Wakana permitem ao espectador apreciar uma Tóquio tranquila, anónima e discretamente bela, longe do pitoresco e do cosmopolitismo high-tech.

O Cinéfilo Preguiçoso parte agora de férias. Desejamos aos nossos leitores boas férias e bons filmes. Até Setembro.

24 de julho de 2016

Patience (After Sebald)


Mais uma semana, mais um documentário em DVD. Desta vez, Patience (After Sebald), de Grant Gee (2012), um filme que homenageia o livro Os Anéis de Saturno, de W.G. Sebald (1944-2001), procurando seguir o percurso do narrador numa caminhada na região inglesa de Suffolk. Como os outros documentários de que falámos nas últimas semanas, Patience recorre a depoimentos, neste caso  com a singularidade de se ouvirem predominantemente as vozes dos diversos admiradores de Sebald entrevistados, porque os rostos aparecem pouco, por vezes diluindo-se na paisagem. Nestes depoimentos residem simultaneamente a maior fraqueza e a melhor surpresa deste filme. A maior fraqueza é o excesso de comentário; o documentário nunca chega a autonomizar-se do ponto de vista visual: poucas sequências se destacam como verdadeiramente memoráveis e as palavras são quase sempre mais importantes do que as imagens. Poder-se-ia dizer que o valor do filme é subsidiário do livro. Por outro lado, a melhor surpresa deve-se ao facto de convocar uma série de figuras interessantes nunca antes reunidas no mesmo círculo: fãs tanto de Robert Macfarlane como de Adam Phillips, Tacita Dean, Rick Moody, Christopher Woodward, Michael Silverblatt ou Iain Sinclair ficam a perceber de repente que há uma ligação fundamental a uni-los. Sobre Sebald, justamente uma das ideias mais interessantes que ficam é a da sua capacidade para estabelecer conexões inesperadas e reveladoras entre elementos (pessoas, momentos históricos, espaços, conceitos) diferentes e por vezes até contraditórios: sofrimento e prazer, mobilidade e encurralamento, progressão e repetição, luto e celebração, beleza e estranheza, exaustão e persistência. A impressão final é a de um filme mais conservador do ponto de vista formal do que outro documentário do mesmo realizador sobre uma obra literária (Innocence of Memories, de 2015, em torno de um romance de Orhan Pamuk), mas talvez mais eficaz, graças ao tom esparso e sóbrio e à humildade que revela ao seguir à risca a estrutura e a cronologia do livro. Os testemunhos e a revisitação dos lugares descritos no livro acabam por evocar Sebald de forma surpreendentemente poderosa, da mesma maneira que uma nuvem de fumo difusa, numa das cenas finais, se transforma por momentos no rosto do escritor.

17 de julho de 2016

Trespassing Bergman


O calor potencia a preguiça, por isso o Cinéfilo escreve esta semana sobre um filme visto na comodidade do lar, na RTP2. Trespassing Bergman, documentário de 2013, realizado por Jane Magnusson e Hynek Pallas (e exibido na edição de 2014 do IndieLisboa), arranca com um dispositivo vagamente metaficcional: vários realizadores e actores famosos chegam, por diversos meios (a pé, de automóvel, de helicóptero) à casa de Ingmar Bergman na ilha de Fårö; entram, vagueiam pelas divisões e vão emitindo comentários («parece o muro de Berlim», afirma Tomas Alfredson, realizador do bastante estimável Tinker Tailor Soldier Spy). Esta ideia de mostrar os admiradores do mestre sueco como invasores, entre a reverência e o fetichismo, nunca é explorada com grande convicção e o filme acaba por se assemelhar a tantos outros, recorrendo abundantemente ao esquema clássico de depoimentos filmados, intercalados com imagens de arquivo e excertos de filmes. Como seria quase inevitável, o interesse do filme varia de forma evidente de acordo com os entrevistados. Há depoimentos genuinamente interessantes (Scorsese, Zhang Yimou, Michael Haneke, Woody Allen…), superficiais (John Landis, González Iñárritu, Wes Anderson) e delirantes (Lars von Trier – who else? – em roda livre). Há ainda reacções e momentos inesperados, como o ataque de pânico de Claire Denis, que a obriga a abandonar a casa abruptamente, ou a descoberta de uma cassete VHS do filme A Pianista, de Haneke, em cuja lombada o próprio realizador vê quatro estrelas, presumivelmente uma apreciação crítica positiva deixada pela mão de Bergman. Em jeito de balanço final, Trespassing Bergman é um filme sem muito para dar em termos de ideias de cinema, algo conformista na estrutura e que pouco ou nada revela sobre Bergman que não se soubesse já. No entanto, tem o apreciável mérito de levar um grupo muito significativo de cineastas e actores (além dos já mencionados, Francis Coppola, Ridley Scott, Takeshi Kitano, Alexander Payne, Robert De Niro, Holly Hunter, Laura Dern, Isabella Rossellini, entre outros) a revelar um pouco mais sobre si e sobre a maneira como entendem a prática de fazer cinema, através da relação que estabeleceram, ao longo das décadas, com a obra de Bergman. Por exemplo, a maneira cândida e comovida como Ang Lee conta o primeiro visionamento de A Fonte da Virgem, num Taiwan conservador e fechado, faz valer a pena, só por si, o visionamento deste documentário.

10 de julho de 2016

Finding Vivian Maier



Numa semana muito triste por causa da morte de Abbas Kiarostami (1940-2016), o Cinéfilo Preguiçoso viu em DVD o documentário Finding Vivian Maier, realizado por John Maloof e Charlie Siskel (2013) depois da descoberta num leilão de uma caixa de negativos de uma extraordinária fotógrafa até então totalmente desconhecida. O documentário assume uma abordagem detectivesca, através da qual o próprio John Maloof, que comprou a caixa com a intenção vaga de usar algumas fotografias num livro sobre a história de um bairro de Chicago, descreve o percurso que seguiu a partir do momento em que percebeu o valor artístico da descoberta. Para tentar conhecer a autora das fotografias, Maloof explorou exaustivamente todos os objectos pessoais que conseguiu reunir contactando as pessoas para quem ela tinha trabalhado como ama. Esta estrutura aparentemente convencional, baseada em entrevistas cuidadosamente montadas para permitir a revelação gradual dos vários aspectos da personalidade e biografia de Vivian Maier,  garante-nos acesso à obra que vai sendo mostrada, às dúvidas e perplexidades, bem ou mal resolvidas pela investigação, de Maloof, assim como aos testemunhos daqueles que conheceram a artista. Contudo, talvez uma das características mais interessantes do documentário resida na exposição das lacunas da investigação, que nunca assegura uma compreensão abrangente e satisfatória da figura investigada. Ironicamente, os depoimentos incluídos revelam mais sobre quem fala do que sobre o assunto da conversa. Nenhuma das pessoas que a conheceram e que com ela viveram – mais ou menos fluentes, mais ou menos estranhas, mais ou menos paranóicas ou indiferentes e desatentas – se interessou o suficiente por Vivian Maier para se dar conta do valor da obra e da artista, descrita quase sempre apenas como uma acumuladora de objectos excêntrica e reservada, dotada de arestas que não lhe permitiam encaixar em lugar algum durante muito tempo. Curiosamente, só nos depoimentos de fotógrafos e críticos a propósito das fotografias de alguém que nunca conheceram pessoalmente alcançamos um visão mais completa de como Vivian Maier pode ter sido: a liberdade, o sentido de humor e de oportunidade, o espírito curioso, a sede de informação. Além de ser um documentário sobre uma fotógrafa prodigiosa, tão embrenhada nesta actividade que nunca divulgou o próprio trabalho, além de desencadear alguma reflexão sobre os mecanismos de consagração artística, Finding Vivian Maier é um filme sobre o mistério que cada um de nós representa para os outros. «Como conhecer alguém?» é uma das perguntas essenciais que coloca.

3 de julho de 2016

Amor e Amizade


Amor e Amizade (2016), a quinta longa-metragem realizada por Whit Stillman (cuja passagem pelo IndieLisboa de 2015 foi aqui devidamente assinalada), é a adaptação de uma obra pouco conhecida de Jane Austen (o romance epistolar Lady Susan) e representa uma ruptura com os cenários urbanos e contemporâneos a que este realizador nos habituara. Quando isto acontece, a tentativa de procurar pontos comuns e continuidades de tema ou de estilo com a obra anterior do autor apresenta-se como um exercício quase inevitável, embora de interesse duvidoso. Não é difícil encontrar esses pontos comuns no caso de Stillman: a predominância de diálogos saturados de segundos sentidos — instrumento de revelação da verdade mas sobretudo de manipulação —, a importância do estatuto social, o gosto por personagens obstinadas e um tanto excêntricas (sendo particularmente memoráveis as desempenhadas pelo fabuloso Chris Eigeman nos três primeiros filmes de Stillman) ou a presença das actrizes Kate Beckinsale e Chloë Sevigny, nos papéis da protagonista Lady Susan Vernon e da sua confidente americana. Para além da coerência temática ou falta dela, Amor e Amizade é um filme que faz plena justiça ao humor de Jane Austen e que gere de forma sagaz as clivagens entre aquilo que é dito e aquilo que é mostrado. O efeito cómico é potenciado pela forma como Stillman adopta as regras do filme de época (reconstituição histórica cuidada, montagem clássica, ausência de efusões estilísticas) sem abdicar de um olhar moderno e satírico sobre os costumes sociais da Inglaterra do século XVIII, onde a manipulação e a conspiração, quase sempre em torno do casamento, eram muitas vezes mais uma necessidade absoluta do que uma opção. Acrescente-se, a título de curiosidade, que está anunciada a publicação de uma versão do romance de Austen reescrita pelo próprio Stillman, que aliás já fizera o mesmo relativamente ao seu próprio argumento do filme The Last Days of Disco (1998). Ninguém que tenha visto pelo menos um filme dele ficará surpreendido com este prolongamento literário da sua actividade de realizador.

26 de junho de 2016

Maggie Tem Um Plano


 
Maggie Tem Um Plano, de Rebecca Miller (2015), possui muitas características entediantes. O facto de se tratar de mais um filme situado em Nova Iorque, sobre personagens que não se cansam de falar sobre as próprias dificuldades e más relações, por si só, não é um problema. Há e continuará a haver bons filmes com estes mesmos tópicos – mas distinguindo-se de Maggie Tem Um Plano por assentarem em diálogos mais inteligentes e em dilemas que suscitam mais curiosidade. Por exemplo, o filme Listen Up Philip (sobre o qual escrevemos recentemente) situa-se na mesma cidade, incluindo personagens equivalentes (escritores, académicos, criativos), mas é muito mais interessante. E, contudo, participam no filme de Rebecca Miller – nascida em 1962, filha do dramaturgo Arthur Miller e casada com Daniel Day Lewis, já nossa conhecida por ter realizado filmes como Velocidade Pessoal (2002) ou A Balada de Jack e Rose (2005) – actores excelentes e carismáticos, desempenhando papéis que poderiam dar pano para mangas: uma protagonista (Greta Gerwig) com uma dimensão maternal controladora que, depois de tentar proteger em enredos consistentes todos os que a cercam, um pouco à semelhança da Emma de Jane Austen, tem de se render ao «destino» ou «acaso»; um casal de académicos da área da «antropologia fictocrítica» (sic) – John (Ethan Hawke) e Georgette (Julianne Moore) – a braços com as dificuldades típicas tanto de um casamento longo como da carreira em questão. Apesar de não serem propriamente medíocres, estas e outras figuras nunca se destacam daquilo a que vulgarmente chamamos «conversa de chacha», ao ponto de – proeza inesperada mas dispensável – não haver qualquer química entre as personagens de Greta Gerwig e Ethan Hawke, pelo simples facto de os diálogos e a maior parte das situações em que estão envolvidos serem tão desengraçados e repisarem tantos lugares-comuns maçadores que chegam a ser exasperantes. Felizmente, em contraste absoluto com Maggie Tem Um Plano no que diz respeito à inteligência dos diálogos, estreou esta semana o filme Academia das Musas,  de José Luis Guerín (visto pelo Cinéfilo Preguiçoso no ano passado).

19 de junho de 2016

L'Avenir


Compreendendo cinco longas-metragens (uma das quais já abordada neste espaço) e um punhado de curtas, a carreira de Mia Hansen-Løve pode inserir-se na tradição naturalista francesa representada por Pialat, Téchiné ou Doillon. Contudo, existem particularidades de estilo que conferem um cunho de individualidade muito forte aos seus filmes e que a distinguem dos seus pares e dos seus antecessores. L’Avenir (2016, traduzido em Portugal por O Que Está por Vir), confirma esta impressão de originalidade e continuidade. O filme segue uma personagem num ponto crítico da sua vida. Professora de filosofia, casada e com dois filhos, Nathalie (Isabelle Huppert) é confrontada, num espaço de tempo curto, com o divórcio, a morte da mãe, o nascimento do neto e a sabotagem dos seus projectos editoriais, demasiado austeros e desalinhados com os ditames do marketing. L’Avenir é a crónica das reacções de Nathalie aos dissabores que sofre, oscilando entre a aparente indiferença, a indignação, alguns picos de emoção e, sobretudo, um pragmatismo sóbrio e amargo. Não se pode falar em estoicismo (aliás, Nathalie demonstra pouca propensão para derivar algum consolo da filosofia que ensina), mas antes de uma pulsão para dar continuidade à vida e para manter a lucidez que inclui uma forte dose de instinto, o mesmo instinto de que a gata da mãe dá mostras quando é pela primeira vez posta em contacto com a natureza. Não há epifanias nem redenções neste filme, cujo término, apesar de soar justo, surge num momento aparentemente arbitrário da narrativa e não coincide com qualquer ponto de inflexão libertador, tão do agrado de argumentistas medíocres. Entre as muitas coisas que se poderiam ainda dizer sobre este filme admirável, saliente-se apenas os planos em que Hansen-Løve coloca Nathalie em cenários naturais semi-selvagens (Bretanha, Vercors) quase abstractos, e ainda o uso da música (Schubert, Woody Guthrie…); em ambos os casos, a justeza do tom dispensa a pertinência narrativa. Como não é nosso costume afirmar o óbvio, terminemos com a referência à presença do rivetteano André Marcon (no papel do marido), em vez de aludirmos à excelência de Isabelle Huppert. Este filme recebeu o Urso de Prata de melhor realizador no festival de Berlim.

12 de junho de 2016

Listen Up Philip


Visto em DVD, Listen Up Philip (2014), a terceira longa-metragem de Alex Ross Perry (n. 1984), gira em torno de um jovem escritor (interpretado pelo excelente Jason Schwartzman) depois da publicação do seu segundo romance. Narrado em voz-off, como uma ficção, pelo actor e escritor Eric Bogosian, o filme acompanha igualmente as personagens que gravitam em torno de Philip, nomeadamente Ike Zimmerman (Jonathan Pryce), um escritor mais velho e já consagrado que decide apadrinhá-lo, a namorada Ashley (Elizabeth Moss), o gato Gadzookey, adoptado por Ashley quando Philip decide deixar a cidade por uns tempos, além de outras novas e antigas namoradas com quem Philip se vai confrontando. Os modelos de escritor e de literatura explorados no filme estão muito próximos dos de certos romancistas americanos do sexo masculino, como Philip Roth ou algum Saul Bellow, com obras que se alimentam de maus sentimentos em relação às mulheres, encaradas apenas como caixas de ressonância para desabafos mais ou menos egocêntricos. Os movimentos de câmara e a rarefacção da linearidade narrativa recordam o cinema de Cassavetes nos seus primeiros tempos, mas quando o próprio Alex Ross Perry escreveu que Listen Up Philip é um filme sobre a agressividade e as energias negativas da cidade de Nova Iorque, integrou-se imediatamente numa família de realizadores de que fazem parte Woody Allen e Noah Baumbach. Também Allen e Baumbach fazem filmes sobre Nova Iorque, sem hesitarem em mostrar o lado mais mesquinho da cidade e das suas personagens. Em comparação com estes dois realizadores, contudo, parecem faltar a Perry algum sentido de humor e um certo distanciamento irónico. Para Perry, as características mais importantes das personagens são as suas fraquezas, raramente ou nunca compensadas por virtudes redentoras. Em contraste com os filmes de Woody Allen e Noah Baumbach, que exploram um espectro de emoções e circunstâncias mais complexo e mais amplo, Listen Up Philip resulta essencialmente como um excelente instrumento de exploração dos fracassos no amor, na amizade e na vida em geral. É um filme que não oferece redenções nem resoluções satisfatórias, mas que, mau grado a sua negatividade, deixa espaço para a capacidade de seguir em frente e superar o medo da solidão.

5 de junho de 2016

Alexandre Nevsky


Está a decorrer até ao próximo dia 13 de Julho, no Espaço Nimas, um excelente “Ciclo Grande Cinema Russo”, organizado pela Medeia Filmes. O Cinéfilo Preguiçoso não podia ficar indiferente. Alexandre Nevsky (visto no dia 3 de Junho, repete no dia 20), estreado originalmente em 1938, foi o primeiro filme sonoro de Sergey Eisenstein (em co-realização com Dmitry Vassiliev), tendo sido concebido como um alerta patriótico em face da ascensão da ameaça nazi, aqui posta em paralelo com as invasões teutónicas da Rússia no século XII. Esqueça-se o argumento, de um maniqueísmo que chega a ser aflitivo. Esqueça-se a enfadonha personagem do príncipe Nevsky e a sua retórica monocórdica. Assinale-se a tentativa de introduzir algum comic relief e uma componente humana e romântica através das personagens de Vassily, Gavrilo, Olga e Vassilissa, (embora seja difícil não estabelecer comparações desfavoráveis com um filme como La Marseillaise, de Jean Renoir, estreado no mesmo ano e que se distingue pela complexidade e riqueza das suas personagens, sem abdicar da alegoria nem da mensagem). Aquilo que faz de Alexandre Nevsky uma obra-prima é a sua dimensão plástica: a montagem, os magníficos planos de paisagens e multidões, o fabuloso preto-e-branco de Eduard Tissé, a lendária partitura de Prokofiev e sobretudo o modo como todos estes elementos se harmonizam para conferir uma notável unidade estética ao filme, culminando numa das mais extraordinárias cenas de batalha da história do cinema. Alexandre Nevsky pode parecer-nos hoje francamente datado nalguns aspectos, devido às circunstâncias históricas que presidiram à sua concepção e à apertada vigilância exercida pelo Kremlin, que impediu derivas formalistas excessivas por parte do realizador. Se o filme ainda hoje nos impressiona, é enquanto manifestação de cinema puro (deixando de lado os debates, sempre úteis mas quase sempre infrutíferos, sobre a “pureza” e “impureza” do cinema): corpos, luz e sons em movimento, amalgamados num todo vibrantemente superior às suas partes.

29 de maio de 2016

Uma Nova Amiga



Segundo o realizador François Ozon, o filme Uma Nova Amiga (2014), estreado em Lisboa ao fim de uma longa espera e de inúmeros falsos alarmes, foi adaptado livremente do conto «The New Girlfriend», de Ruth Rendell, num tom e num espírito deliberadamente próximos dos da série Alfred Hichcock Presents. Dentro da obra de Hitchcock, talvez o filme Vertigo/A Mulher que Viveu Duas Vezes (1958) seja uma referência ainda mais importante do que a série televisiva. Tal como Madeleine Elster/Judy Barton (Kim Novak) encarna a figura da amante morta de Scottie (James Stewart) em Vertigo, também David/Virginia (Romain Duris) encarna Laura, a amiga morta de Claire (Anaïs Demoustier), em Uma Nova Amiga. A atmosfera onírica das recordações do passado das amigas na casa de infância de Laura e o quadro que representa Laura recordam igualmente Vertigo. David/Virginia é um homem que se sente melhor com a aparência feminina ou uma mulher num corpo de homem? Claire aproxima-se de David/Virginia simplesmente porque ele substitui a sua amiga morta e lhe permite consumar uma relação que nunca teve com ela, ou porque se sente atraída tanto por David como por Virginia? Em todos os seus filmes, Ozon esteve atento à ambiguidade sexual das personagens e ao modo como os papéis associados ao género podem ser simplistas e enganadores. Uma Nova Amiga não tenta resolver estas dificuldades: o seu objectivo parece consistir em retratar a circulação de afectos, desejos e memórias, sem deixar entrever soluções. No livro The Argonauts (2015), que aborda um tema próximo deste filme, Maggie Nelson sugere que tentar definir a identidade sexual das pessoas é menos importante do que deixá-las serem quem são, sem terem de se explicar permanentemente. A questão mais importante deste filme de Ozon é precisamente esta liberdade, defendida por Nelson, de se ser como se é. A concessão dessa liberdade a David/Virginia é o factor que o faz (muito melodramaticamente) despertar de um coma e que abre caminho para um final idílico. Só na aparência este final faz concessões ao sentimentalismo: mostrar a felicidade no final dos percursos tão acidentados destas personagens é um acto quase revolucionário.

22 de maio de 2016

O Lobo de Wall Street



O Lobo de Wall Street (2013), de Martin Scorsese, estreou num conhecido canal temático e o facto mereceu ampla campanha publicitária. O Cinéfilo Preguiçoso não podia ficar indiferente e aproveitou para ver um filme que lhe tinha escapado aquando da estreia em salas. O Lobo de Wall Street é um filme onde o estilo e os temas predilectos de Scorsese são reconhecíveis nos primeiros fotogramas. O argumento, baseado no livro de memórias do protagonista Jordan Belfort, narra a ascensão e queda de uma empresa de corretagem cujos métodos agressivos e de legalidade mais do que duvidosa a aproximam bizarramente dos bandos mafiosos que Scorsese retrata em muitas das suas obras anteriores. As semelhanças não se ficam por aqui: tal como em Goodfellas (1990) ou Casino (1995), o esquema narrativo adopta uma perspectiva de primeira pessoa (e é fácil aqui arriscar alusões ao sacramento da confissão e à formação católica do realizador), sendo a ascensão e queda descritas com uma lucidez retrospectiva que abre caminho para algo que se assemelha ambiguamente à redenção. A vulgaridade, a amoralidade e a venalidade de Belfort e dos seus acólitos são exploradas com uma intensidade que roça os limites de uma autoparódia plenamente consciente da parte do autor. O Lobo de Wall Street pouco acrescenta de novo à obra de Scorsese: o tom é eufórico e pletórico, Jonah Hill (no papel de Donnie, braço direito de Belfort) faz de Joe Pesci, e Thelma Schoonmaker encarrega-se da montagem com a mesma competência e virtuosismo das últimas décadas. Fica a impressão de um realizador sem nada a demonstrar, que se entretém a explorar territórios novos mas sem quaisquer veleidades de ruptura com o seu passado e os seus hábitos.

15 de maio de 2016

Birdman



Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) de Alejandro G. Iñárritu (2014), visto recentemente na televisão, aborda o tema sempre fértil do artista em crise. O que há nas crises existenciais que torna a sua representação apelativa? São momentos em que o passado, o presente e o futuro embatem uns nos outros e a ininteligibilidade do mundo, dos outros e dos nossos próprios actos se expõe em toda a sua implacável crueza, enquanto nos questionamos sobre o que há de real e de ficcional na nossa vida. (Como a dada altura o filme nos recorda, Shakespeare, no início do século dezassete, explicou isto melhor do que ninguém: «[life] is a tale/Told by an idiot, full of sound and fury/Signifying nothing».) As personagens principais de Birdman são actores, figuras já de si permanentemente divididas entre a ficção e a realidade. Ainda que o protagonista seja Riggan (Michael Keaton), um actor de Hollywood em declínio que protagonizou blockbusters mas quer provar que é um artista a sério com uma adaptação teatral de Raymond Carver, a figura de Mike (Edward Norton) exprime mais enfaticamente a cisão entre real e ficção. Mike, um actor com uma presença teatral impressionante, não sente qualquer dificuldade no palco; contudo, não sabe existir fora dele: a sua vida reduz-se ao teatro. Através do confronto destas duas personagens, impõe-se a ideia quase paradoxal de que ser autêntico no teatro é inseparável de ser autêntico na própria vida. Incapaz de concretizar esta ou qualquer outra síntese, o filme Birdman, no entanto, divide-se em dois. A realização parece entretida com um história diferente, mais pretensiosa, menos dolorosa, menos verdadeira: a de Iñárritu a tentar fazer arte pensando que a arte é uma coisa decorativa, grandiloquente, espectacular, cheia de truques e efeitos gratuitos, quando, na realidade, a arte que as personagens e os actores representam se relaciona com as dificuldades mais comezinhas, quotidianas, miseráveis e essenciais das suas vidas. Este filme foi premiado com quatro Óscares da Academia, incluindo o de Melhor Filme, o de Melhor Realização e o de Melhor Argumento Original. Michael Keaton viu escapar-se-lhe das mãos (para Eddie Redmayne) o Óscar que este filme mais mereceria.

8 de maio de 2016

Cemitério do Esplendor



Ser cinéfilo em Lisboa exige atenção e paciência. Na segunda semana de exibição, o último filme do tailandês Apichatpong Weerasethakul, que é apenas um dos maiores realizadores da actualidade, já só está visível em duas salas, ao princípio da tarde e à noite. Ao longo de década e meia de carreira, oito longas-metragens (uma delas em co-realização) e numerosas curtas e instalações, Apichatpong tem vindo a construir um percurso singularíssimo, com acolhimento entusiástico nos circuitos dos festivais ocidentais e na crítica especializada (por oposição à criticazinha que se contenta com recensões bem-dispostas e rondas de entrevistas patrocinadas). Em muitos dos filmes deste realizador, uma matriz de crenças budistas relacionadas com a reencarnação serve de base para cenários, ambientes e ramificações narrativas em que diferentes planos se sobrepõem ou intersectam com fluidez desconcertante: o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, o humano e o animal, o passado e o presente, o corpóreo e o espiritual, o quotidiano e a lenda. Cemitério do Esplendor (2015) não foge a este registo e vem claramente na continuidade de obras anteriores, não faltando uma ou outra piscadela de olho: a sequência final, por exemplo, evoca Syndromes and a Century (2006). O Cinéfilo Preguiçoso não tem qualquer problema com autocitações ou repetições: os cineastas verdadeiramente grandes (Kiarostami, Rohmer, Hong Sang-Soo…) têm mais que fazer do que tirar coelhos da cartola, filme após filme, para entreter a galeria. A partir de uma história que envolve soldados atacados por uma sonolência inexplicável e internados numa antiga escola, Apichatpong oferece mais um filme em que as fronteiras entre o mistério e o quotidiano mais comezinho deixam de existir, de tão porosas que são. Mais uma vez, o realizador alcança a proeza de respeitar tanto o mistério como a inteligência do espectador, não receando deixá-lo sem bússola neste território repleto de alusões, desvios e fantasmas. Weerasethakul pertence à categoria restrita de criadores que produzem uma obra intensamente original sem procurarem a originalidade por meio de artifícios e golpes de rins, limitando-se a serem coerentes consigo próprios.

1 de maio de 2016

Le fils de Joseph



No IndieLisboa, o Cinéfilo Preguiçoso não viu os filmes de Whit Stillman e de Mia Hansen-Løve porque acredita ingenuamente que estes estrearão em breve nas salas de cinema. Em relação ao filme de Eugène Green que passou no festival, seria difícil manter a mesma crença. Temos de agradecer ao IndieLisboa a possibilidade de ver em sala os trabalhos mais recentes deste realizador tão singular. No festival do ano passado vimos La Sapienza (2014) e este ano não perdemos Le fils de Joseph (2016), pelo que pudemos comprovar que Eugène Green continua a fazer os filmes que bem lhe apetece, totalmente distintos do que se pode ver por aí. Tematicamente, Le fils de Joseph gira em torno da relação entre pai e filho, não se esquecendo de explorar algumas referências bíblicas como a fuga para o Egipto da sagrada família ou a história de Abraão e Isaac. Como acontece em La Sapienza, o pretensiosismo e o humor involuntário de certas conversas são um dos alvos preferidos de Green. Em Le fils de Joseph, o contexto destas conversas é o meio literário: Oscar Pormenor (Mathieu Amalric) é um editor irascível; há lançamentos de livros dominados por conversas de chacha; Maria de Medeiros encarna Violette Tréfouille, uma crítica de livros inculta mas muito social. Outro dos traços distintivos do cinema de Eugène Green é a capacidade de captar o mistério dos actores: reincidentes em filmes deste realizador, Fabrizio Rongione e Natacha Régnier continuam extraordinários. Embora Green não seja dado à defesa militante de ideais ou pontos de vista estéticos, a sua atitude é de resistência: como Straub/Huillet ou Rohmer, faz os filmes que quer fazer, alheio a tendências e a flutuações do gosto – essa é a ideia que transmite ao cinéfilo agradecido.

24 de abril de 2016

Innocence of Memories | L'Aquarium et la Nation


O Cinéfilo Preguiçoso está a acompanhar a edição deste ano do IndieLisboa. Innocence of Memories (2015), de Grant Gee, exibido na secção “Silvestre” é um objecto híbrido, misto de (pseudo)documentário, ensaio e narrativa metaficcional na voz de uma personagem secundaríssima do romance The Museum of Innocence, de Orhan Pamuk. O filme alterna longas deambulações nocturnas pelas ruas de Istambul (entregues aos cães vadios e aos poucos seres humanos que trabalham durante essas horas mortas) com imagens de lugares e objectos referidos no livro, além de excertos de uma entrevista a Pamuk. Vários níveis de ficção e metaficção entrelaçam-se: o livro, o museu descrito no livro (concebido para celebrar o amor entre o narrador e Füsun, uma prima distante) e o museu real, aberto ao público em Istambul desde 2012. A reflexão sobre as relações entre as memórias, os lugares e os objectos atravessa todos estes níveis e confere-lhes uma coesão conceptual que complementa a sensualidade quase fetichista com que a profusão de recordações do museu é filmada. Grant Gee é um cineasta e fotógrafo inglês que ganhou notoriedade com documentários sobre a banda Radiohead e sobre o escritor W.G. Sebald. Também na secção “Silvestre”, a sessão de curtas-metragens n.º 4 foi alvo de atenção devido à presença de L’Aquarium et la Nation (2015), de Jean-Marie Straub, que tem mantido uma actividade intensa (cerca de dois filmes realizados por ano) após a morte da sua colaboradora de sempre, Danièle Huillet, em 2006. Partindo de textos de Malraux, Straub construiu uma obra ao mesmo tempo densa e formalmente esparsa. O facto de este filme ser a proposta mais radical e ousada desta sessão não terá decerto surpreendido nenhum dos presentes na sala 3 do São Jorge.