19 de dezembro de 2021

Touching the Skin of Eeriness

O Cinéfilo Preguiçoso tem sido um utilizador relativamente assíduo da plataforma Henri, onde a Cinemateca Francesa disponibiliza gratuitamente filmes raros e fora do comum. Foi nesta plataforma que viu Touching the Skin of Eeriness (2013), uma das primeiras obras de Ryusuke Hamaguchi. É um filme curioso por várias razões, a começar pela sua duração – 54 minutos –, que o situa numa zona cinzenta entre a curta e a longa-metragem. A personagem principal, Chihiro, faz parte de dois triângulos afectivos: um é formado pelo irmão e pela companheira, com quem mora; o outro é formado por um amigo, Naoya, e pela namorada deste. Em ambos os triângulos, Chihiro é aquele que está fora da relação principal, o que gera uma tensão muito visível ao longo do filme. Embora raramente abandone o registo realista, Touching the Skin of Eeriness desenvolve-se essencialmente no plano simbólico. Existe evolução nas relações entre as personagens, ocorre um desfecho trágico que fica por explicar, mas o filme deixa a impressão de que os acontecimentos da narrativa podem ser fruto de forças invisíveis, ou subaquáticas, se se quiser ser fiel às metáforas predominantes, onde abundam as referências à água, à superfície e às inundações. Resulta daqui uma aproximação aos códigos do cinema fantástico que é outro dos factores de originalidade do filme, mas de modo subtil, pois não há qualquer peripécia que não seja passível de explicação racional. É notável a maneira como Hamaguchi, que viria a ganhar fama graças a filmes bastante longos, consegue erigir uma estrutura simbólica tão robusta em menos de uma hora. Alguns elementos dessa estrutura são: a tensão entre toque e distanciamento (tornada explícita nas cenas, muito hamaguchianas, em que Chihiro e Naoya ensaiam os passos de uma dança estranha e intensa); a água (aquilo que ela esconde e que acabará, inevitavelmente, por reemergir); e um peixe misterioso que morde as pessoas e que reaparece periodicamente nas conversas ou num distribuidor de brindes de plástico. Touching the Skin of Eeriness não fornece respostas e pode até argumentar-se que não suscita perguntas. Talvez a sequela anunciada no final, e que (tanto quanto o Cinéfilo Preguiçoso sabe) Hamaguchi nunca realizou, pudesse esclarecer alguma coisa, ou talvez não. Em retrospectiva, não é difícil discernir neste filme alguns dos traços e métodos que caracterizam a obra subsequente deste cineasta, mas não deixa por isso de ser um objecto único e fascinante. É um filme que deixa o espectador intrigado mas não defraudado, ao contrário do que acontece muitas vezes com realizadores cujas obras, de tão elípticas e minimalistas, redundam em mistificação e nulidade. Agora que Roda da Fortuna e da Fantasia (2021) pode ser visto em sala, este é um excelente complemento, que, no entanto, só estará disponível na plataforma Henri até 4 de Janeiro.
 
O Cinéfilo Preguiçoso regressará em Janeiro. Boas festas para todos.
 
Outros filmes de Ryusuke Hamaguchi no Cinéfilo Preguiçoso: Happy Hour (2015), Asako I & II (2018) , Roda da Fortuna e da Fantasia (2021), Drive My Car (2021).

12 de dezembro de 2021

Nomadland

O Cinéfilo Preguiçoso viu finalmente Nomadland (real. Chloé Zhao, 2020). Baseado num livro de Jessica Bruder sobre os americanos que, depois da crise de 2007-2009, se viram obrigados a viajar pelos Estados Unidos em busca de trabalhos temporários, Nomadland recebeu o Óscar para melhor filme e o Leão de Ouro no Festival de Veneza, e também foi muito elogiado entre nós, o que gera sempre uma espécie de saturação que nos pode fazer sentir que já vimos o filme mesmo antes de o termos visto. Ainda assim, ver Nomadland não foi uma perda de tempo. Mesmo sem ter uma realização inovadora ou original, destaca-se o respeito com que aborda a complexidade destas personagens e das suas motivações. Em vez de as filmar simplesmente como vítimas, mostra não só os momentos difíceis do seu quotidiano, mas também o exercício da liberdade de escolha que permite que algumas delas considerem aquela forma de vida preferível ao sedentarismo. Vemos as personagens tanto a trabalhar como em momentos de lazer através da paisagem americana, filmada quase sempre ao nível do olhar humano, com o horizonte em fundo. O elenco inclui verdadeiros nómadas, entre os quais Linda May, Swankie e Bob Wells, em interacção com a protagonista Fern (excelente Frances McDormand). Como acontece em First Cow (Kelly Reichardt, 2019), em contraste com a tendência da cultura americana para o tom épico e heróico, aqui presta-se atenção a anti-heróis, personagens supostamente insignificantes que as pessoas mais convencionais desvalorizam ou não conseguem compreender. Deste modo, o filme mostra que os próprios Estados Unidos são mais complexos do que parecem, não se limitando a ser a terra do capitalismo e dos capitalistas. Tudo isto é interessante, mas não faz um grande filme e talvez não justifique o entusiasmo desmedido e o consenso crítico que Nomadland gerou. Sentimos muitas vezes que é um filme um pouco ligeiro e nem sempre capaz de aprofundar as personagens e as situações. O final, obrigando Fern a regressar à casa de partida, simplifica a única personagem relativamente complexa, sugerindo que afinal não é assim tão diferente daqueles que tentam convencê-la a viver em casa deles. Talvez um dos motivos pelos quais o filme fez tanto sucesso seja o facto de prestar atenção a personagens pouco comuns, mas sem se atrever a afastar-se completamente de moldes narrativos mais tradicionais. Por outras palavras, Nomadland transmite uma impressão de alguma ousadia e ruptura com as convenções, mas nunca abandona a vizinhança da zona de conforto dos espectadores e da crítica.