28 de junho de 2020

High Life


O Cinéfilo Preguiçoso é admirador da realizadora francesa Claire Denis, sobretudo de filmes como Beau Travail (1999), 35 Rhums (2008) e do documentário Jacques Rivette le Veilleur (1990). A reacção predominante após o visionamento de High Life (2018) num canal de televisão foi, contudo, de perplexidade. Ao contrário de outras obras de ficção científica, como 2001: Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick, 1968), Solaris (Andrei Tarkovsky, 1972) ou Arrival (Denis Villeneuve, 2016), onde o contacto do ser humano com territórios desconhecidos ou com extraterrestres é um elemento crucial, fica-se com a sensação de que, neste filme, o enredo e as situações encenadas tanto podiam decorrer no espaço sideral como numa ilha do oceano Pacífico ou num qualquer huis clos corriqueiro. As personagens são presidiários condenados por crimes graves, que, num futuro distópico vagamente sugerido, aceitam partir numa nave espacial em direcção a um buraco negro. As dinâmicas entre as personagens, envolvendo pulsões homicidas, lascívia e um vago sentimento de missão e responsabilidade, são francamente desinteressantes, fazendo lembrar uma versão extragaláctica de O Senhor das Moscas. As duas personagens principais, interpretadas por Robert Pattinson e Juliette Binoche, são, respectivamente, insípidas e grotescas, sendo as restantes demasiado superficiais e lineares para cativarem o espectador. Os momentos mais conseguidos do filme são aqueles em que se explora a relação entre o protagonista e a filha, nascida na nave: o contraste entre os gestos e rotinas da paternidade e o ambiente asséptico e decadente é filmado com uma delicadeza que faz lembrar os melhores momentos de Denis. A banda sonora, de Stuart A. Staples, também merece referência, não só por ser muito boa, mas também pela notável longevidade da associação entre a realizadora e os Tindersticks, que começou com Nénette et Boni (1996). De então para cá, só numa das suas longas-metragens (Beau Travail) Denis não contou com a colaboração desta banda ou de um dos seus membros. Nada disto, infelizmente, chega para dissipar a sensação de que não existiu nada por detrás deste filme para além da vontade de explorar o registo da ficção científica. A História do cinema está cheia de obras-primas cujo ponto de partida foi uma ideia vaga e informe, ou uma singela aspiração de fazer algo de diferente, mas High Life não é um exemplo disso.

Sobre O Meu Belo Sol Interior (Claire Denis, 2017).

21 de junho de 2020

Anoitecer


Esta semana vimos Anoitecer (2018), de László Nemes (realizador húngaro mais conhecido pelo filme O Filho de Saul, 2015), disponível nos videoclubes das operadoras de telecomunicações. Sob a égide de “A Morte e a Donzela” de Schubert, a acção do filme começa numa loja requintada de Budapeste do princípio do século XX onde uma rapariga com uma expressão intrigante, Írisz Leiter/Juli Jakab, experimenta chapéus como se experimentasse identidades. Ela explica gradualmente quem é, para grande consternação das vendedoras: veio de Trieste para se candidatar a uma vaga de modista de chapéus, e desde sempre sonha trabalhar naquele armazém que no passado pertenceu aos pais. Vamos descobrindo que o passado da família de Írisz tem contornos trágicos – os pais morreram num incêndio e ela foi enviada aos dois anos para um orfanato noutra cidade. O facto de o filme nunca deixar claro se se tratou de um incidente anti-semita cria uma camada de sentido adicional, e ainda mais universal e intemporal, em que Írisz desempenha um papel semelhante aos protagonistas de contos de fadas que, injustamente afastados da família e da sua herança, regressam para reclamar o que é seu. Como nos contos de fadas, Írisz não conhece plenamente a sua própria identidade. Quase sempre filmada de costas, como se perseguida por nós e pelo passado que ignora, a protagonista passa a maior parte do tempo em movimento, a fazer perguntas e a tentar compreender; todas as outras personagens sabem mais do que ela sobre a sua família, mas as respostas às perguntas que ajudariam Írisz e o espectador a terem uma visão mais clara são sempre vagas, evasivas ou inexistentes. Nesta cidade, o passado é comparável à sala do armazém de chapéus que ficou emparedada depois da visita da única cliente, a imperatriz Sissi. Como que impelida pela força do destino ou por uma espécie de memória de sangue, Írisz percorre o espaço simultaneamente sofisticado e bárbaro de Budapeste, onde, como comenta uma personagem, o horror do mundo se esconde por baixo das pequenas coisas infinitamente belas; até ao fim, ignora a função que vai cumprir. O filme decorre numa atmosfera de pesadelo ou de fantasmagoria que alguns já compararam à dos textos de Arthur Schnitzler, nomeadamente conforme adaptado por Kubrick em De Olhos Bem Fechados (1999). Entre festas de jardim, pousadas de mau aspecto, rituais à luz de archotes, aristocratas dissolutos, grupos de anarquistas perigosos e indícios de conspiração e de sacrifícios humanos, Írisz descobre que tem um irmão de quem nunca lhe tinham falado e esta descoberta e identificação libertam as forças de destruição. Apesar de ter quase 140 minutos de duração, o que, inevitavelmente, acaba por cansar, Anoitecer é um filme intenso e absorvente que nos deixa a pensar sobre questões como o peso do passado e da família, ou a medida em que cada um de nós cumpre um destino colectivo ou individual.

14 de junho de 2020

A Grande Beleza


Visto esta semana num canal de televisão, A Grande Beleza (2013) foi o filme que consolidou a reputação do realizador napolitano Paolo Sorrentino, arrecadando os prémios de melhor filme estrangeiro desse ano na esfera anglo-saxónica: Óscar, Globo de Ouro e BAFTA. A personagem principal, Jep (Toni Servillo), é um escritor que, muitos anos depois de publicar o seu único romance, vive uma existência mundana e trabalha como jornalista e crítico. O filme mostra as festas e os eventos sociais que Jep frequenta, acompanhando as suas interacções com uma galeria de personagens vagamente ridículas e excêntricas mas com algo de trágico e de inadaptado. O parentesco artístico com Fellini é mais do que evidente: sem nunca recorrer à citação directa, Sorrentino filma cenas que poderiam fazer parte de um eventual remake de La Dolce Vita (1960), (1963) ou Roma (1972): a futilidade dos rituais da alta sociedade, o bloqueio criativo, a revisitação da infância, a omnipresença dos cenários urbanos e dos vestígios da Roma imperial atravessam o filme do princípio ao fim. Marcel Proust, mencionado ironicamente mais do que uma vez nos diálogos, é também uma influência poderosa: à maneira do narrador da Recherche, Jep entrega-se deliberadamente à mundanidade, mas alimenta a ambição suprema da escrita, parecendo esperar uma revelação (a “Grande Beleza” do título) que sirva de impulso para converter em literatura as suas experiências e impressões. À falta de um enredo, o filme progride ao sabor das festas nocturnas e dos momentos que a elas sucedem, matinais e melancólicos, passados em ambiente doméstico ou em ruas desertas ladeadas por monumentos. As melhores sequências de A Grande Beleza são aquelas em que Sorrentino se assume como criador de imagens, diálogos e situações dramáticas fugazes ou até gratuitos (como a visita nocturna a alguns palácios de Roma de que uma personagem misteriosa tem a chave). No final, decepciona um pouco a tentação de procurar a quadratura do círculo: reconciliação com os erros do passado, identificação reforçada com a mundanidade e com as incoerências da sociedade, vontade (ambígua) de se libertar do círculo vicioso da existência social, para, finalmente, começar a escrever. A singular personagem de Jep, digna de um Mastroianni sexagenário, merecia uma solução menos forçada e artificial. Fica-se, porém, com a impressão de se ter visto um filme ousado e interessante, mesmo nas suas falhas, que dá vontade de continuar a descobrir a obra de Sorrentino.

7 de junho de 2020

Retrato de Rapariga em Chamas


Finalmente, uma sala de cinema aberta – e com um filme excelente: Retrato de Rapariga em Chamas (2019), com realização e argumento de Céline Sciamma, no Cinema Ideal. O enredo gira em torno de uma artista (Marianne/Noémie Merlant) que se desloca a uma ilha bretã para pintar o retrato de uma rapariga (Héloïse/Adèle Haenel) que deverá ser enviado para o seu possível noivo, com a condição de a retratada não saber que está a ser pintada, para não tentar sabotar um casamento em que não está interessada. A artista tem assim de se fazer passar por dama de companhia para poder observar a retratada e tentar pintá-la depois de memória. Esta limitação gera imediatamente uma reflexão interessante sobre o papel do olhar e da memória na representação artística. O debate recorrente ao longo do filme, iniciado por uma leitura das Metamorfoses, sobre as razões de Orfeu ter olhado para Eurídice quase no fim do percurso do seu resgate do mundo dos mortos é riquíssimo e nunca se resolve plenamente. Teria Orfeu feito aquilo por preferir a visão do poeta, dependente da memória, à visão do apaixonado? Não teria sido a própria Eurídice a chamá-lo, por preferir que assim acontecesse? Com uma dimensão metacinematográfica, a própria narração do filme faz-se em flashback, sendo o espectador e a protagonista de vez em quando confrontados com uma imagem de Héloïse caracterizada de um modo que só no futuro se concretiza (no momento da despedida e depois também num quadro da protagonista sobre o tema) e que, curiosamente, lembra não só a jovem morta de O Estranho Caso de Angélica (2010) de Manoel de Oliveira, mas também certos momentos do cinema de Brisseau. A propósito desta sobreposição de tempos no que toca ao amor, Sciamma falou também da influência de Mulholland Drive (2001), de David Lynch. Além de ser um filme sobre a arte e o amor, Retrato de Rapariga em Chamas, apesar de não poder ser descrito simplesmente como «filme sobre mulheres», está atento à condição feminina e inclui momentos entre mulheres pouco vistos no cinema (na cozinha, na casa da parteira que faz a interrupção da gravidez de uma das personagens, etc.). A realizadora descreveu  a sua ideia de partida sem a circunscrever a questões de género – filmar uma história de amor com igualdade, que faça justiça ao diálogo intelectual entre modelo e artista. Mas claro que a partir do momento em que Sciamma coloca uma mulher no papel de artista começa a trilhar um território pouco explorado. (Obviamente, lembramo-nos de filmes como A Paixão de Camille Claudel, de Bruno Nuytten, 1988, mas uma das questões principais desse filme é precisamente a desigualdade na relação entre a artista e Rodin.)  Não é um território muito visto no cinema sobretudo porque, durante muito tempo na História da arte, o papel de artista esteve predominantemente reservado aos homens, cabendo à mulher o papel de modelo. A actividade de muitas mulheres artistas foi não só dificultada, mas também, por não ser referida, apagada dos registos históricos. Retrato de Rapariga em Chamas é um filme belíssimo, com várias dimensões que não costumam ser abordadas no cinema e que merece ser visto em sala. Ainda bem que voltamos a ter essa liberdade.