27 de maio de 2018

La Pointe Courte


O Cinéfilo Preguiçoso gravou La Pointe Courte (1955), a primeira longa-metragem de Agnès Varda, quando a RTP2 a passou, há algumas semanas, mas só agora teve tempo para ver. Este filme, que também será exibido pelo Cinema Ideal a partir de 31 de Maio, inclui duas correntes que avançam paralelamente, quase nunca interagindo, ambas situadas na vila piscatória identificada no título. A primeira corrente, em torno de um casal que discute uma possível separação, é menos interessante, tanto pelo tema como por cultivar uma estilização demasiado próxima não só de Ingmar Bergman – Silvia Monfort, a actriz principal, tem um aspecto nórdico que lembra as actrizes do cineasta sueco, ostentando uma semelhança extraordinária com a actriz Ingrid Thulin –, mas também de Alain Resnais, que, aliás, assegura a montagem do filme.  A segunda corrente, retratando o quotidiano dos pescadores, apesar de parecer secundária e mais documental, anuncia desde logo um dos traços distintivos mais importantes do cinema de Varda: a atenção a pessoas e coisas que habitualmente passam despercebidas, por serem consideradas insignificantes. Aí encontramos planos, imagens e sequências em torno de elementos como barcos, roupa a secar, peixes estranhos, gatos, ou pequenas conversas e dilemas, que não encontramos na obra de mais nenhum realizador. La Pointe Courte é considerado por muitos um dos filmes precursores da Nouvelle Vague. Deixando de lado as polémicas estéreis sobre se Varda, Resnais e Demy fazem parte do grupo de cineastas da Nouvelle Vague, ou se esse epíteto deve ser reservado ao núcleo duro dos Cahiers du Cinéma, é inegável que este filme tem muitas semelhanças com as primeiras obras de Godard, Truffaut ou Chabrol: orçamento reduzido, aversão à filmagem em estúdio, liberdade formal. A originalidade de Varda está na maneira como conjuga a vertente documental, a ficção e o olho de fotógrafa, tanto neste filme como, geralmente de forma mais satisfatória, noutros da sua longa carreira.

Outro filme de Agnès Varda no Cinéfilo Preguiçoso: Olhares, Lugares.

20 de maio de 2018

Zama


Passaram-se nove anos entre A Mulher Sem Cabeça (2008) e a longa-metragem seguinte da realizadora argentina Lucrecia Martel. Zama (2017), estreado recentemente em Portugal, é uma adaptação do romance de Antonio Di Benedetto sobre um oficial da coroa espanhola colocado numa vila remota da América do Sul, algures no século XVIII. Apesar do longo intervalo, não parece que as prioridades de Martel tenham mudado: tal como A Mulher Sem Cabeça, Zama centra-se numa personagem mergulhada num mundo saturado de eventos e sinais que o tornam refractário à compreensão. Diego de Zama é-nos mostrado como uma pessoa capaz e ciente do seu dever, mas que progressivamente foca toda a sua energia no requerimento dirigido ao rei para ser transferido. Em torno de Zama, acumulam-se as intrigas e os episódios bizarros, por vezes nos limites do fantasmagórico, de que ele se vai progressivamente alheando, até, aparentemente, abdicar de qualquer esperança de transferência e se entregar à missão final de encontrar e neutralizar um bandoleiro famoso. O tema do homem branco nos confins da civilização, à beira da insanidade, está, obviamente, longe de ser original: Conrad e o Buzzati de O Deserto dos Tártaros não estão longe, assim como o Aguirre de Werner Herzog (1972). Martel mostra a alienação e a decadência da sua personagem no estilo vigoroso, visualmente rico e narrativamente esparso que a caracteriza. As semelhanças temáticas e de abordagem com A Mulher Sem Cabeça (um filme notável, diga-se de passagem) levam a pensar que, da próxima vez, Martel deveria fazer uma pausa menor entre projectos sucessivos, para se obrigar a pensar menos e cultivar mais diversidade. A reconstituição histórica funciona como reforço da estranheza que a realizadora costuma explorar e não como elemento novo na sua obra. Zama tem alguns motivos de interesse, mas deixou a estranha sensação de acrescentar pouco a uma filmografia que está a precisar de uma boa lufada de ar fresco.

13 de maio de 2018

Frantz


Depois de vários falsos alarmes e adiamentos, eis que Frantz, de François Ozon (2016), baseado no filme O Homem que eu Matei, de Ernst Lubitsch (1932), estreou finalmente em Portugal. Não querendo perder esta estreitíssima janela de oportunidade, o Cinéfilo Preguiçoso precipitou-se para uma sala de cinema – e ainda bem que o fez. O cinema de Ozon costuma enfrentar dois perigos – a xaropada melodramática e o excesso de artificialidade e de pensamento. Fá-lo sempre destemidamente e nem sempre levando a melhor sobre eles. Quando, como no caso de Frantz, o realizador não sai derrotado deste confronto, produz filmes que nunca mais esquecemos. Precisamente nos momentos em que começamos a suspeitar que este filme perdeu o combate e já sabemos o que vai acontecer a seguir, temos uma surpresa. Oscilando entre sequências a cor e a preto e a branco, Frantz começa por parecer um filme sobre um triângulo amoroso que joga com a orientação sexual, depois transforma-se num filme de guerra em que um sobrevivente tenta redimir-se, a seguir acompanha a pulsão de morte de alguém que perdeu o noivo, convertendo-se posteriormente numa espécie de Vertigo em Paris, com uma banda sonora (de Philippe Rombi) muito próxima da de Bernard Herrmann, em que os protagonistas partilham ou confundem os destinos das personagens de Hitchcock – até ao momento final, que é uma maravilha e outra enorme surpresa. Aliás, a influência de, e homenagem a, Hitchcock e a Vertigo já eram assumidas no filme anterior, o desequilibrado, mas interessante, Uma Nova Amiga (2014). Em Frantz, Ozon não fracassa, mas mesmo os seus fracassos ( como 5x2, de 2004, e Le Temps qui Reste, de 2005) têm geralmente qualquer coisa que os recomenda. Frantz confirma ainda a constância dos temas e obsessões de Ozon ao longo de uma filmografia tão heterogénea e abundante: Anna é mais uma personagem que conta mentiras e inventa ficções para tentar mitigar o desajuste entre a realidade e as aspirações próprias ou de outras personagens, à semelhança do que acontece, por exemplo, em Sous le Sable (2000) e em Dans la Maison (2012). Esperemos que L’Amant Double (2017), o filme que estreou no ano passado em França, não demore tanto a estrear em Portugal.

6 de maio de 2018

En Attendant les Barbares


Se há realizador de quem se pode esperar que permaneça fiel aos seus princípios até ao final da sua carreira, esse realizador é Eugène Green. En Attendant les Barbares (2017), visto no IndieLisboa 2018, mostra Green fiel ao seu estilo: representação rígida, dicção apuradíssima, diálogos repletos de formas gramaticais arcaicas, ausência de referências temporais conjugada com sátira da sociedade contemporânea. O filme adopta um tom, totalmente assumido, de parábola: o enredo, baseando-se em seis personagens que se refugiam na morada de um casal de magos para escapar a uma alegada invasão de bárbaros, presta-se a uma miríade de leituras relacionadas com os medos e complexos que envenenam a sociedade contemporânea. Tudo no filme estabelece uma relação de contraste e de resistência com o mundo actual. Green faz coexistir esta intenção alegórica com numerosas farpas dirigidas contra aquilo que se adivinha serem embirrações pessoais, e essa é talvez a maior fraqueza deste filme: os diversos patamares de crítica e ironia diluem a mensagem do filme e prejudicam a sua coerência. Aquilo que ninguém lhe pode negar é a beleza plástica, a esplendorosa austeridade da fotografia, a intensidade dramática das mudanças de iluminação e alguns momentos magníficos de pura loucura narrativa tão típica deste cineasta, como a longa encenação de um excerto da lenda arturiana Roman de Jaufré. Destaca-se também a descrição dos quadros do pintor barroco Nicolas Tournier pertencentes ao convento dos Agostinhos, em Toulouse, que serve de cenário a parte da acção. Green continua a distinguir-se pela singularidade e só por isso já valeria a pena ver os filmes dele.

(De Eugène Green, o Cinéfilo Preguiçoso já comentou os filmes Le Fils de Joseph e La Sapienza.)