29 de setembro de 2024
Grand Tour
22 de setembro de 2024
A Paixão segundo G. H.
Baseado num romance com o mesmo título que Clarice Lispector publicou em 1964, A Paixão segundo G. H. (Luiz Fernando Carvalho, 2023) teve uma passagem pelas salas de cinema portuguesas em Fevereiro de 2024, mas tão breve, que, quando o Cinéfilo Preguiçoso reparou, já não conseguiu apanhá-lo. Felizmente, passa agora nos canais TVCine. É difícil descrever a surpresa e a emoção que se sentia ao descobrir que era possível escrever em português com a liberdade linguística, literária e conceptual com que Lispector escreveu. Na medida em que a sua obra abriu caminho a outras vozes (não só femininas, nem apenas em português) – algumas com tanta popularidade como Elena Ferrante –, é possível que já não tenha o mesmo impacto. Ainda assim, um filme inspirado por um livro desta escritora suscita inevitavelmente curiosidade. Tanto no cinema como na televisão, o realizador brasileiro Luiz Fernando Carvalho já trabalhou a partir de livros, de escritores como Raduan Nassar, Eça de Queiroz, Machado de Assis e Milton Hatoum. Em relação a este título de Lispector em particular, tinha, no entanto, o desafio de enfrentar um texto concentrado no espaço e no tempo, quase sem acção, com poucas personagens e praticamente reduzido ao monólogo interior da protagonista. A própria narradora se descreve como alguém que procura dar forma ao informe, entregando-se totalmente à linguagem – a ponto de as palavras, em determinados momentos, não quererem dizer nada. A narradora assume que não tem medo de ser inexpressiva nem de escrever coisas de gosto duvidoso, se assim tiver de ser. A “paixão” mencionada no título refere-se precisamente a uma intensidade de percepção perante a vida, expressa no famoso símbolo da barata com o invólucro estalado que a protagonista descobre em sua casa. Caberia ao realizador captar essa mesma intensidade, através de todos os meios cinematográficos à sua disposição. Perante um texto destes, o maior risco, então, seria registar “teatro filmado” – ou seja, fazer um filme em que as palavras são mais importantes do que tudo o resto, sufocando aquilo a que chamamos cinema. Este risco não foi superado. Não se pode dizer que, enquanto cinema, A Paixão segundo G. H. seja um objecto muito complexo, com capacidade para, por si só, interessar a quem não tenha lido Clarice Lispector ou a quem não conheça bem a sua obra. Temos principalmente uma actriz a falar, filmada em grandes planos, ao som de uma banda sonora de elevado conteúdo emocional, que, com excertos de compositores como Mahler ou Górecki, chama demasiada atenção para si própria. A montagem, os movimentos de câmara e as transições entre planos soam a falso precisamente por parecerem tentativas forçadas de injectar cinema no texto e demonstrar a mais-valia da adaptação cinematográfica. Qualquer admirador de Lispector vê este filme com algum fascínio ao perceber como as palavras ganham vida, e só há elogios a fazer à actriz Maria Fernanda Cândido, na medida em que, com a sua interpretação, dá inteligibilidade a um texto difícil de articular e assimilar. Ficamos, ainda assim, a pensar em como poderia ser um filme verdadeiramente cinematográfico, inspirado por este ou outro livro de Clarice Lispector.
15 de setembro de 2024
The Wonderful Story of Henry Sugar and Three More
8 de setembro de 2024
The Neon Bible
Felizmente, a Cinemateca está a apresentar uma retrospectiva de Terence Davies. Esta semana, à laia de homenagem a este realizador britânico (1945-2023) e a Gena Rowlands (1930-2024), o Cinéfilo Preguiçoso viu The Neon Bible (1995), um filme baseado no romance epónimo de John Kennedy Toole (1989), narrado em flashbacks por um rapaz à janela de um comboio, recordando a infância e a adolescência vividas no contexto de repressão religiosa, racial, social e sexual do Mississípi, entre fins dos anos 30 e início dos anos 50. Não se faz justiça a The Neon Bible quando se descreve este filme, como o próprio Davies e outros fizeram, como mera obra de transição e experimentação – por ser a primeira adaptação literária deste realizador, por ter a sua primeira grande personagem feminina (a tia Mae, interpretada por Gena Rowlands), e por explorar o formato scope e diferentes géneros e estilos (filme de guerra, musical, denúncia do charlatanismo religioso, história de adolescência, expressão do gótico sulista, etc.). A indefinição de género, a imperfeição e a artificialidade quase teatral e ritualística que caracterizam The Neon Bible permitem-lhe mostrar maravilhosamente bem os mecanismos da memória. Até aqui, Davies tinha explorado cinematograficamente a sua biografia, em filmes como Distant Voices, Still Lives (1988) e The Long Day Closes (1992). Neste filme, consegue a estranha proeza de contar a sua própria história contando a história de uma personagem de outro autor. A experimentação de géneros pode ser encarada como uma espécie de revisitação da memória do cinema, em busca dos meios mais adequados para se exprimir. Mesmo a atitude do protagonista (David, interpretado em diferentes idades por Jacob Tierney e Drake Bell), assistindo desamparadamente à violência, loucura e pobreza da sua existência num universo em que as mulheres são as figuras principais, é a de um espectador de cinema, na medida em que se limita a observar, comovido e deslumbrado, sem grande possibilidade de intervenção. Quando, perto do fim do filme, David se aventura no reino da acção – com resultados catastróficos –, desencadeia a narração fragmentária da história durante a sua fuga de comboio. Antes disso, o famoso e belíssimo plano com o lençol branco que acaba por tapar o ecrã, transformando-se nele, ao som distante da banda sonora de E Tudo o Vento Levou (1939, Victor Fleming), faz recordar momentos semelhantes em A Estrada (Federico Fellini, 1954) e Fechar os Olhos (Víctor Erice, 2023) e lembra que fazer cinema pode ser captar imagens mal entrevistas no vazio através daquilo que só com dificuldade nos permite vislumbrá-las. Já houve quem salientasse que nem Terence Davies nem John Kennedy Toole são grandes contadores de histórias. Na verdade, não é contar histórias que lhes interessa mais. Como este filme bem demonstra, o cinema consegue fazer muito mais do que isso. A dada altura, nas diferentes vozes que captamos em The Neon Bible, entre discursos na rádio, encontros na igreja, sessões com pregadores e conversas na rua, a tia Mae pede a David que leia um poema de Longfellow («The Day is Done») em que se fala da possibilidade de a música das palavras e das coisas mais humildes obrigar as preocupações do dia a retirarem-se silenciosamente, e este filme, com toda a sua luz e escuridão, faz uma coisa parecida. Não é invulgar que os momentos em que determinado autor está numa encruzilhada sejam aqueles que de modo mais desarmado nos revelam toda a complexidade da sua obra.
Outros filmes de Terence Davies no Cinéfilo Preguiçoso: A Quiet Passion (2016); Benediction (2021).
1 de setembro de 2024
A Torre sem Sombra
28 de julho de 2024
The Meyerowitz Stories (New and Selected)
Na última publicação do mês de Julho de 2023, o Cinéfilo Preguiçoso escreveu sobre A Lula e a Baleia (Noah Baumbach, 2005), um filme sobre uma família em desagregação, na perspectiva dos filhos. Por uma questão de simetria, na última publicação do mês de Julho de 2024, decidiu escrever sobre um filme de Baumbach que ainda não tinha visto, por só estar disponível na Netflix. Estreado em 2017, The Meyerowitz Stories (New and Selected) tem personagens muito semelhantes às do filme de 2005: um pai egocêntrico (Harold/Dustin Hoffman, professor reformado e escultor obscuro, com vários divórcios), que ostenta uma superioridade intelectual que o reconhecimento público não confirma; e filhos disfuncionais – neste caso, três (Danny/Adam Sandler, Jean/Elizabeth Marvel e Matthew/Ben Stiller) –, que tentam recuperar dos efeitos nefastos da influência do progenitor, sem conseguirem plenamente. Encontramos dinâmicas familiares próximas em filmes como The Royal Tenenbaums (Wes Anderson, 2001) e Golden Exits (Alex Ross Perry, 2017). Podemos dizer que se Baumbach fizesse um filme com as personagens de A Lula e Baleia na idade adulta, a história não seria muito diferente, embora em The Meyerowitz Stories haja uma distinção mais marcada entre os filhos que ficaram com a mãe depois de um divórcio e o meio-irmão destes, que nasceu de um casamento posterior. As imperfeições e as fraquezas das personagens continuam a ser impiedosamente exploradas, nomeadamente em momentos de comédia física (correrias, pancadaria, destruição de um carro), mas em The Meyerowitz Stories há mais equilíbrio entre a tristeza e o ressentimento, por um lado, e a necessidade de amar e perdoar. As personagens não são só egoístas; captamos, acima de tudo, a humanidade delas. Neste aspecto, destaca-se o desempenho de Adam Sandler, no papel de um músico falhado que nunca acreditou em si mesmo, mas é capaz de um vasto espectro de emoções, da alegria ao sofrimento, da exasperação ao perdão. Baumbach contou que, depois de ver A Lula e a Baleia, Mike Nichols comentou com ele: “Este filme lembrou-me a razão pela qual comecei a fazer cinema: o desejo de vingança.” O realizador de The Meyerowitz Stories, no entanto, já ultrapassou essa fase. A estrutura do filme tem inspiração literária, dividindo-se em secções, como uma antologia de textos previamente publicados em revistas diferentes. Enquanto procurava um caminho para entrar no filme, Baumbach lembrou-se do livro The Maples Stories, de John Updike, um volume que reúne contos que acompanham uma família ao longo do tempo, até à sua desintegração. Composta por Randy Newman ao piano, a banda sonora de The Meyerowitz Stories destaca-se pela subtileza e pelo sentido de humor, ajudando a identificar a atmosfera nova-iorquina sofisticada, mas pretensiosa, em que a acção decorre. Outro traço distintivo deste filme é a montagem, que por vezes impõe cortes em momentos que correspondem a picos de tensão, como se não fosse necessário continuar, por já todos sabermos como aquelas discussões vão acabar – sem nunca acabarem. Woody Allen continua a ser uma referência, mais uma vez citado de modo relativamente evidente, no monólogo de abertura de Danny, dentro do carro, a comentar os edifícios de Nova Iorque, como Sam Waterston em Hannah e as Suas Irmãs (1986). No capítulo hilariante em que encontramos as personagens no hospital, Baumbach explora o contraste entre a vulnerabilidade individual e a indiferença e impessoalidade desse estabelecimento, num dos momentos da sua obra em que há mais equilíbrio entre a comédia e o drama. Estas cenas passadas no hospital em redor do pai, internado e inconsciente, mostram como o tratamento oblíquo, quase negligente, do pathos o pode tornar ainda mais intenso do que uma abordagem com grande sentimentalismo e gravidade. The Meyerowitz Stories consolida a capacidade deste realizador de partir do pessoal (a história da sua família, a vida em Nova Iorque) para fazer um filme que demonstra que há comédia mesmo nos momentos mais difíceis da vida e que o cinema pode ser um instrumento para assimilar tudo isto.
O Cinéfilo Preguiçoso regressa em Setembro. Boas férias para todos.
Outros filmes de Noah Baumbach no Cinéfilo Preguiçoso: Ruído Branco (2022); Marriage Story (2019); Mistress America (2015); Enquanto Somos Jovens (2014).