29 de junho de 2015

Um Pombo Pousou Num Ramo a Reflectir na Existência



Roy Andersson vê a existência humana como uma tragédia, mas filma-a como uma comédia, ou o contrário? De qualquer modo, há algures um mal-entendido. Se o Cinéfilo Preguiçoso se sentisse mais próximo do sentido de humor baseado na incompreensão, no distanciamento, na falta de empatia e na ideia de que a humanidade é composta por figuras grotescas e ridículas vistas à pressa num Museu de História Natural porque alguém impaciente está à nossa espera para coisas mais práticas, talvez tivesse apreciado mais Um Pombo Pousou Num Ramo a Reflectir na Existência. Ainda assim, é preciso reconhecer que certos elementos deste filme, galardoado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2014, resultam bem, com destaque para as personagens dos vendedores de artigos de diversão deprimidos, a falta de convicção de um dos intervenientes numa aula de flamenco e uma conversa sobre dias da semana que já todos tivemos. Em certo ponto do filme, depois de ter uma visão horrífica relacionada com o sacrifício de escravos numa construção metálica que evoca um instrumento musical, um dos vendedores interroga-se kantianamente em voz alta num corredor: ‘Será correcto usar outros seres humanos apenas para gratificação do nosso prazer?’ O porteiro do prédio responde-lhe sem hesitar: ‘Achas mesmo que esta é a altura adequada para estares a pensar sobre isso? Amanhã há pessoas que têm de se levantar cedo.’ Quem apreciar o minimalismo macabro de Andersson poderá aproveitar para ver ou rever os dois primeiros filmes da trilogia que esta obra encerra: Canções do Segundo Andar e Tu Que Vives, ambos em exibição no Monumental (Lisboa) e no Teatro Municipal do Campo Alegre (Porto).

22 de junho de 2015

The Royal Tenenbaums




The Royal Tenenbaums (2001, visto pelo Cinéfilo Preguiçoso em DVD em dia de grande canícula) foi a terceira longa-metragem realizada por Wes Anderson. O estilo deste autor estava já perfeitamente consolidado: planos cuidados até ao mínimo pormenor visual, humor melancolicamente absurdo, espaços geográficos alheios a qualquer lugar real, mas dotados de uma intensa coerência interna, personagens caracterizadas essencialmente por aquilo que têm de excêntrico. O filme conta a história da família Tenenbaum, cujos filhos, criados para serem prodígios, entram em crise e perdem o rumo quando chegam à idade adulta. Tal como nas restantes obras de Anderson, os momentos mais conseguidos deste filme desconcertante mas sedutor (ao seu modo muito próprio) são aqueles em que as personagens desafiam a sua caracterização tipificada e ousam assumir-se como pessoas, carentes de sentido ou simplesmente de carinho: falamos, por exemplo, da tentativa do patriarca (Gene Hackman, excelente como sempre) de se reconciliar com a família ou da aproximação entre Margot (Gwyneth Paltrow) e o irmão adoptivo (Luke Wilson).  Em retrospectiva, é curioso reconhecer pequenos detalhes que antecipam temas e ideias explorados mais tarde pelo realizador, como a peça cujas personagens são todas animais (Moonrise Kingdom, 2012) ou o ambiente de hotel grandioso e decadente (The Grand Budapest Hotel, 2014).

15 de junho de 2015

Enquanto Somos Jovens


Se por acaso nos acontecesse ver o filme Enquanto Somos Jovens (2014) sem sabermos quem era o realizador, não seria muito difícil adivinhar o nome: Noah Baumbach (n. 1969). Esta facilidade de identificação deve-se a certos traços distintivos dos filmes deste realizador, como a atenção ao espaço urbano e a exploração exaustiva de alguns temas: o fracasso, o problema da autenticidade e as dificuldades da autopromoção. Outra característica importante do cinema de Baumbach é o talento para explorar as dimensões mais negativas e mesquinhas das personagens sem deixar que isso afecte a compaixão com que as filma. Em Enquanto Somos Jovens encontramos explicitamente todas estas questões,  girando em torno do contraste entre a meia-idade e a juventude. Este contraste é encenado através da relação entre os dois casais principais, interpretados magistralmente por Ben Stiller e Naomi Watts, do lado da meia-idade, e por Adam Driver e Amanda Seyfried do lado da juventude – os mais velhos com uma existência quase virtual, os mais novos ostentando um interesse por actividades práticas e artesanais que às vezes não passa de pose. Do ponto de vista da distribuição, este filme tem sido tratado como um produto mais mainstream do que a restante obra do realizador, mas só se pode dizer que este é o seu filme mais comercial porque a obra de Baumbach, permanecendo sempre fiel a si mesma, já atingiu um estatuto em que ela própria dita as regras do que pode interessar ao grande público. Um espectador da geração de Baumbach revê-se imediatamente nos gestos, nos hábitos, nos conflitos e nas preocupações das suas personagens; os restantes dificilmente deixarão de empatizar com o que há de universal e eterno no medo de envelhecer e na procura da felicidade e do equilíbrio.

8 de junho de 2015

Gaslight



 
Gaslight (visto em DVD, já que nada em sala parecia ter interesse) é um filme de 1944, realizado por George Cukor. A personagem principal, Paula, interpretada por Ingrid Bergman (num papel que lhe valeu o primeiro de três óscares), vive assombrada pelo assassinato da tia que ocorreu numa casa situada numa praça pacata de Londres. Quando Paula parece a caminho de refazer a vida, o casamento e o regresso subsequente à casa da tia trazem de volta terrores antigos associados ao homicídio, que ficou por esclarecer. O marido (Charles Boyer) tenta persuadi-la de que está a perder o juízo e ameaça interná-la; em paralelo, entrega-se a actividades misteriosas que o filme dá generosamente a entender estarem relacionadas com o crime. A comparação com filmes aproximadamente contemporâneos que também exploram o tema da duplicidade do marido (por exemplo Suspicion, de Hitchcock, ou Secret Beyond the Door, de Lang) não é muito favorável a Gaslight, em termos de complexidade e subtileza. Contudo, não faltam pontos de interesse, em particular a maneira como o regresso de Paula e a sua alienação são encenados como um processo de descoberta do próprio passado, cujo culminar lhe permite por fim iniciar a sua própria vida. O filme vale ainda pela tortura psicológica que Paula inflige ao marido no confronto final e pela maneira como deixa brilhar em papéis secundários duas grandes actrizes, respectivamente em fim e início de carreira: May Whitty e Angela Lansbury.

1 de junho de 2015

National Gallery


Nos planos finais do filme O Grande Museu (real. Johannes Holzhausen, 2014) eram focados diferentes pormenores de uma das telas em que Bruegel representou a Torre de Babel, exposta no Museu de História da Arte de Viena. Em National Gallery (2014), Frederick Wiseman também trabalha esta visão de museu como um edifício em permanente construção e desconstrução, onde toda a gente fala linguagens diferentes sem chegar a um consenso estável. Contudo, enquanto The Great Museum abordava exclusivamente o museu vienense, o filme de Wiseman, fascinado pela diversidade dos discursos e comportamentos dos funcionários do museu londrino, desencadeia uma reflexão sobre arte que ultrapassa a questão dos limites físicos e circunstanciais do espaço museológico. Contrastando momentos de visitas guiadas, de aulas, de reuniões da direcção, de um espectáculo de dança inspirado por uma exposição dedicada a Ticiano e de discussões sobre assuntos tão diferentes como restauro, propriedades físicas das obras de arte e acções de marketing, Wiseman mostra que não há realmente oposição entre interpretações subjectivas e interpretações supostamente objectivas tanto das obras de arte como da própria instituição do museu. Em relação a este tema, destacam-se dois momentos. Num deles, um especialista explica que, ainda que o restauro se apoie em estudos exaustivos dos objectos, restaurar uma obra nunca pode ser simplesmente reconstituir o seu estado original; este processo exige uma reinterpretação da obra de arte tomando em consideração o contexto em que esta passará a integrar-se e não só o seu passado. Noutro momento, durante uma conversa sobre uma tela de Vermeer, uma historiadora afirma que o importante nas obras de arte é a capacidade destas de reterem a nossa atenção sempre que nos aconteça observá-las, muitas vezes por motivos que os ensaístas que escreveram sobre ela não previram (a hora do dia, a pessoa com quem se está, um pormenor, uma tonalidade, um gesto, uma acção). Deste modo, Wiseman demonstra que, mesmo num museu, a arte faz parte da vida.