28 de maio de 2023

Império da Luz

Os filmes que descrevem uma relação nostálgica com o cinema nunca deixaram de estar na moda. Império da Luz (2022), disponível nos videoclubes das operadoras de telecomunicações, é o contributo de Sam Mendes para este subgénero. Nos anos oitenta, Hilary (Olivia Colman), a protagonista, trabalha num cinema de Margate, no Sul de Inglaterra. O seu passado não é revelado integralmente, mas percebemos que ela não é feliz e que é psicologicamente instável, tendo já passado por um episódio de internamento. A acção do filme assenta nos acontecimentos associados à chegada de um novo funcionário (Micheal Ward) e ao envolvimento romântico entre este e Hilary. Império da Luz é um filme autobiográfico na medida em que a protagonista foi inspirada pela mãe do realizador, mas Mendes, que também é o argumentista, não o deixa resvalar para o sentimentalismo e consegue manter um distanciamento salutar. Enquanto espectadores do século XXI, sabemos que aquele cinema, pelas suas dimensões, já está em declínio e dificilmente resistirá ao tempo. Aliás, numa das cenas mais belas do filme, vemos que, mesmo naquela época, duas das quatro salas originais do edifício estão fechadas e abandonadas, entregues aos pombos. O apelo à nostalgia pelos tempos idos está ausente, e esse é um ponto a favor. O principal problema de Império da Luz é a falta de ousadia. Todas as linhas narrativas parecem desenhadas para convidar o espectador a concordar, a sentir-se confortavelmente solidário com as personagens e a indignar-se – contra os skinheads, contra a discriminação racial e contra os preconceitos de que são alvo as relações amorosas intergeracionais. Sem esse apelo à unanimidade e aos bons sentimentos, o que resta? Pouca coisa, reconheça-se. A realização é convencional, a maioria das cenas são bastante forçadas e o desfecho é previsível. Lamenta-se ainda o desperdício de dois excelentes actores como são Toby Jones e Colin Firth: enquanto o primeiro ainda tem algum espaço para mostrar o seu talento, o papel de Firth, no papel de um gerente da sala de cinema abusivo e cobarde, é francamente caricatural. No fim, o projeccionista (Jones) tem finalmente oportunidade de mostrar um filme a Hilary, que até aí se recusara a sentar-se na plateia. É curioso e irónico que o filme escolhido seja Being There (1979), de Hal Ashby, já que evoca inevitavelmente Harold and Maude (1971), uma obra do mesmo realizador que também explora uma relação entre um jovem e uma mulher mais velha, mas cuja originalidade e coragem nada têm que ver com o convencionalismo frouxo e a brandura de Império da Luz. Apesar de tudo, é de assinalar que este filme parece indicar vontade, por parte de Mendes, de adoptar um registo mais intimista e menos grandiloquente, depois de dois James Bond e de um filme de guerra. Não deixa de ser louvável, mas espera-se que esforços futuros nessa linha sejam acompanhados por mais pujança criativa e menos previsibilidade.

Outros filmes recentes inspirados pela nostalgia do cinema: Babylon (Damien Chazelle, 2022); Os Fabelmans (Steven Spielberg, 2022).

21 de maio de 2023

Reprise

Da «trilogia de Oslo», de Joachim Trier, realizador  norueguês de origem dinamarquesa, o Cinéfilo Preguiçoso já tinha visto A Pior Pessoa do Mundo (2021) e Oslo, 31 de Agosto (2011). Esta semana, viu finalmente Reprise (2006), disponível no Mubi. Como os outros dois títulos da trilogia, Reprise, realizado por Trier aos trinta e dois anos, acompanha personagens jovens com dificuldades na transição para a vida adulta. Os protagonistas são Erik (Espen Klouman Høiner) e Phillip (Anders Danielsen Lie), dois rapazes com vinte e poucos anos que querem ser escritores. A partir do momento em que os dois vão enviar pelo correio os originais que escreveram, o filme cria um pequeno filme inicial alternativo, com uma narrativa idealizada sobre como as coisas poderiam ter acontecido. Depois do genérico, no entanto, a narrativa principal acompanha as dificuldades dos protagonistas no meio literário e na vida. Um dos livros é rejeitado, o outro é aceite e alcança algum sucesso, mas o autor tem de lidar com uma doença mental, exacerbada por um envolvimento amoroso repentino. Alguém já disse que Reprise parece um filme realizado pelos seus próprios protagonistas. Sem dúvida, sofre de excesso de energia, de excesso de referências cinéfilas e de excesso de ideias sobre a amizade, a identidade individual, o amor e o sofrimento associado à arte. Indecisa entre tantas correntes, a voz-off alterna entre o presente, o passado e o futuro, imaginando histórias alternativas fantasistas, mas sem explorar a narrativa principal com a consistência e a profundidade desejáveis. Entre as referências cinéfilas,  a relação entre o grupo de amigos recorda a de Os Inúteis (Fellini, 1953), há uns laivos de Chungking Express (Wong Kar-Wai, 1994), nomeadamente na obsessão de um dos protagonistas com a contagem decrescente, mas a influência principal, nem sempre bem digerida, é a Nouvelle Vague, no conceito de «amor louco», na relação entre os protagonistas, na repetição da música «Camille» de Georges Delerue (da banda sonora de O Desprezo, de Godard), e também no modo como as referências literárias e cinematográficas são indissociáveis da vida dos personagens. A sátira ao meio literário capta bem não só os ideais de juventude, a superficialidade editorial, as relações entre escritores, os lugares-comuns da recepção e promoção dos livros, mas também a dificuldade de se escrever neste contexto. O visionamento desta trilogia em ordem cronológica inversa não foi propositado, mas permitiu constatar que Reprise contém em germe os dois filmes mais tardios, embora possua interesse por si só. Dir-se-ia até que Oslo, 31 de Agosto é uma espécie de remake mais sóbrio deste primeiro filme, na medida em que recupera tanto o actor  Anders Danielsen Lie, num papel bastante semelhante, como os temas da doença mental e da relação entre amigos, para os explorar mais a fundo, levando-os mais a sério. Quanto à obra de Joachim Trier, quase vinte anos depois de Reprise, à semelhança do que se passa com as suas personagens, parece ainda não ter encontrado um equilíbrio satisfatório entre, por um lado, a vertente mais sombria e problemática da existência humana e, por outro, a energia transbordante que está no seu reverso.