11 de março de 2018

Ramiro


No filme Ramiro (Manuel Mozos, 2017) encontramos uma Lisboa que tem andado esquecida ou desaparecida: pouco turística, lenta, lacónica, desanimada, nada produtiva. À semelhança do que se verifica em Paterson (Jim Jarmusch, 2016), o filme acompanha o ritmo repetitivo das conversas de ocasião, dos encontros pouco emocionantes e da rotina sem acontecimentos do seu protagonista. A recusa deste, um alfarrabista e escritor obscuro chamado Ramiro, de publicar má poesia tem como pares uma vizinha que reaprende a falar depois de um AVC enquanto cuida da neta adolescente e grávida, uma professora do ensino secundário, frequentadores de alfarrabistas, funcionários rabugentos de gráficas e um cão chamado Ortigão. Ramiro segue com mais interesse a história misteriosa do presidiário que é filho da vizinha do que a actualidade literária; finge não ter para venda livros de um autor na moda que despreza, e vai para um jardim, à noite, declamar para os patos os poemas de um escritor morto que admira. Os pontos altos da narrativa são a compra de uma biblioteca de coleccionador a preço acessível, a venda de uma edição rara por 250 euros, o nascimento do filho da adolescente, além do roubo e reencontro, na feira da ladra, perto do fim do filme, do caderno de poemas, que não sabemos se publicará ou não. Um realizador mais inexperiente e inseguro teria tentado ser mais exibicionista, parecer mais engraçadinho, exagerar no saudosismo ou inserir um rasgo ou momento mais dramático aqui e ali; Mozos está mais preocupado em simplesmente mostrar o que não costuma aparecer (tal como o fazia, num registo bem diferente, no magnífico documentário Ruínas, de 2009). A personagem principal, aparentemente apática e carente de ambição, termina o filme como começou: com uma relação sentimental estável mas não isenta de problemas, laços de amizade e vizinhança sólidos e um ganha-pão que parece algo precário mas chega para subsistir. A vida em redor, contudo, fluiu inexoravelmente. É esse fluxo que Mozos nos dá a ver: um fluxo potente e silencioso como o caudal de água filmado em grande plano, a dada altura, que é descrito como capaz de arrancar pedras do leito por onde corre.


Este ano, por motivos logísticos, a pausa pascal do Cinéfilo Preguiçoso terá de ser mais longa e começa esta semana. Se tudo correr bem, no entanto, voltaremos depois da Páscoa.

4 de março de 2018

Rodin


Jacques Doillon tem protagonizado, desde os anos 70, uma carreira prolífica razoavelmente alinhada com muitas das principais tendências do cinema francês dito “de autor” pós-Nouvelle Vague. Os seus filmes, alguns dos quais têm estreado em salas portuguesas, adoptam uma abordagem realista e giram quase sempre em torno das atribulações sentimentais de um grupo pequeno de personagens, filmadas num registo naturalista e isento de artifícios. A ênfase é quase sempre colocada numa situação de crise, frequentemente de cariz amoroso, mas que também pode estar relacionada com precariedade social ou conflitos familiares. Rodin (2017), visto esta semana no videoclube de uma operadora de telecomunicações, surge como uma anomalia na carreira de um realizador muito pouco dado a filmes de época ou biográficos. O ponto de partida da narrativa é a encomenda da Porta do Inferno, obra em que se destacam as figuras alusivas ao Inferno de Dante, mas a concepção e execução de uma estátua de Balzac acabam por se transformar numa espécie de símbolo dos ideais artísticos do escultor. Vincent Lindon, um actor que o Cinéfilo Preguiçoso aprecia, parece tolhido pelo peso histórico da personagem principal: faltam-lhe as doses terapêuticas de histrionismo que costuma saber injectar nos papéis. Em contrapartida, o desempenho de Izïa Higelin (que se tem desdobrado entre a representação e o trabalho de cantora rock) como Camille Claudel é muito louvável, contribuindo para dar equilíbrio a um filme que se articula em torno da relação entre duas personagens (Rodin e Camille) num registo típico de Doillon, muito dependente de vinhetas do quotidiano e de diálogos. É interessante contrastar a abordagem de Doillon com, por um lado, a de Bruno Nuytten (Camille Claudel, 1988), mais atenta ao lado malsão da relação entre mestre e discípula (e condicionada pelas personalidades de dois actores tão maiores do que a vida como Isabelle Adjani e Gérard Depardieu) e, por outro, a de Bruno Dumont (Camille Claudel 1915, 2013), em que os excessos de paixão e de tensão criativa dão lugar a uma Camille solitária, retida num lugar austero, e a lutar por não perder a razão. A impressão que fica é a de um filme desconexo e sem linha narrativa, a espaços interessante, mas que pouco acrescenta ao que já se sabe sobre dois artistas tão famosos e amplamente retratados e evocados, ressentindo-se da hesitação entre explorar a vida pessoal e a dimensão artística. Doillon mostra-se pouco à vontade num género que lhe é estranho e revela incapacidade de encontrar soluções e ângulos de abordagem que confiram interesse a esta exploração biográfica.