27 de setembro de 2020
Lisboa no Cinema – Um Ponto de Vista
20 de setembro de 2020
Os Tradutores
Disponível nos videoclubes das operadoras de telecomunicações, Os Tradutores (2019), de Régis Roinsard, parte de uma ideia inspirada no processo de tradução do romance Inferno, de Dan Brown: concentrar os tradutores de determinado livro num bunker para garantir a rapidez do trabalho e impossibilitar as fugas de informação sobre um potencial bestseller. Os Tradutores seria um filme muito melhor se se concentrasse em aprofundar as personagens referidas no título. Em vez disso, dispersa-se num enredo pseudopolicial com uma narração relativamente complicada que, tal como a maioria dos thrillers contemporâneos, abusa de flashbacks, relatos pouco fiáveis e mudanças de perspectiva. O enredo sublinha, por um lado, a personagem de Oscar Brach, pseudónimo do autor misterioso do livro a traduzir, inspirado por Thomas Pynchon (Nicolas Richard, o tradutor francês de Pynchon foi consultor do filme), e, por outro, as desventuras e injustiças do meio editorial. Apesar da opção invulgar de ter tradutores como personagens importantes e de haver um autor que acaba por fazer alguma coisa pelos tradutores, ao contrário do que habitualmente acontece, o filme circunscreve-se a alguns lugares-comuns sobre a profissão, sem ser capaz de os explorar a seu favor. Além de encontrarmos o tópico já entediante do editor como vilão, muito em voga ultimamente, verificamos que cada tradutor corporiza um ou mais estereótipos associados à actividade, alguns mais absurdos do que outros. Podemos chamar-lhes falácias, na medida em que, ao contrário do que se passa neste filme, raramente existem em estado puro num tradutor só, embora possam estar presentes em diferentes graus em todos eles. Temos a falácia da pressão (o tradutor que facilmente cede ao stress, como se não estivesse habituado a conviver diariamente com esse problema); a falácia da identificação (o tradutor que se confunde com as personagens ou com o autor, chorando ao traduzir o livro); a falácia da exclusividade (o tradutor que acha que só ele deve traduzir determinado autor); a falácia do método único (o tradutor que acha que só há uma maneira correcta de traduzir um livro – a dele); a falácia financeira (o tradutor que trabalha só pelo dinheiro, como se se ganhasse muito a traduzir); a falácia da frustração (o tradutor como autor frustrado); a falácia do convívio (o tradutor que ambiciona conviver com o autor e ser amigo dele, como se o autor não tivesse mais nada que fazer). Se não há mais filmes sobre tradutores e tradução, é porque se trata de um tema difícil. Talvez a maior dificuldade seja fazer justiça à complexidade do universo mental desta actividade. Sem dúvida, como neste filme, há momentos de terror e angústia na tradução; contudo, ao contrário do que se passa em Os Tradutores, também há momentos de prazer perante o trabalho bem feito, uma sensação que talvez não seja particularmente cinematográfica.
13 de setembro de 2020
Roubaix, Misericórdia
6 de setembro de 2020
Setembro
E cá estamos em Setembro, mês de transições e também o título de um filme de 1987 realizado por Woody Allen. Entre tempestades imprevistas que parecem poder mudar tudo mas não mudam nada, na luz suave e nas sombras da casa de férias onde decorre a acção deste filme, quase todas as personagens estão de passagem, umas para retomarem a vida anterior, outros para começarem vida nova. A peça Tio Vânia, de Tchékhov, costuma ser referida como influência principal do filme, devido não só à concentração da acção num só espaço, mas também ao entrecruzamento das relações das personagens. Note-se, no entanto, que em Tchékhov as personagens são quase sempre maiores do que a vida que têm, enquanto neste filme só temos personagens menores, que não parecem estar à altura da casa. Esta casa no meio de nenhures, cheia de recantos em que as personagens podem encontrar-se ou isolar-se (uma reconstituição em estúdio de uma casa de Mia Farrow no Connecticut), e onde se guardam recordações acumuladas ao longo de vários anos, é a única personagem maior do que a vida do filme, está à venda e assiste ironicamente à “dispersão da sua raça”. Curiosamente, como em A Verdade, de Kore-eda, temos em Setembro uma relação problemática entre mãe (Diane/Elaine Stricht) e filha (Lane/Mia Farrow), em que um dos motivos de conflito é um livro de memórias da mãe em que a verdade é distorcida. Em torno desta relação, giram as outras personagens – Howard (Denholm Elliot), apaixonado por Lane; Stephanie (Dianne Wiest); amiga de Lane; e Peter (Sam Waterston), um publicitário que se isolou ali para tentar escrever um romance e que funciona como centro de interesse das personagens femininas – um interesse que, por ser difícil de explicar, é um dos aspectos mais intrigantes do filme. Devido a dificuldades de casting, Woody Allen filmou Setembro três vezes, duas delas integralmente, substituindo actores ou alterando a distribuição de papéis. É preciso reconhecer que, interpretado por Christopher Walken ou por Sam Shepard, respectivamente a primeira e a segunda escolhas, o inseguro Peter seria uma personagem muito diferente. A partir do que já escrevemos, facilmente se percebe que temos em Setembro personagens e temas bastante comuns no cinema de Woody Allen: relações problemáticas e cruzadas, artistas frustrados ou demasiado autocríticos, temperamentos artísticos que não encontram o meio de expressão adequado, descontentamentos e motivações egoístas, pequenas traições entre amigos ou amantes, segredos mal escondidos e enganos. O que sobressai neste filme é precisamente a realização: o modo como o realizador, apesar de manter o olhar irónico, suspende o riso e demonstra alguma compaixão pela mediocridade agitada das personagens. Apesar de nenhuma delas gerar simpatia, compreendemo-las dolorosamente. Setembro foi um fracasso de bilheteira, além de ter sido recebido muito friamente pela crítica; está na altura de rever favoravelmente a sua posição e importância na obra de Woody Allen.