O
terceiro volume de As Mil e Uma Noites (Miguel Gomes, 2015) começa com um
prólogo protagonizado por Xerazade, a narradora das histórias que dão corpo a
esta trilogia. Apesar de fluir demasiado ao sabor de ideias narrativas fugazes
e superficiais, esta secção possui uma componente auto-reflexiva interessante:
o cansaço de Xerazade e as dúvidas sobre se conseguirá continuar a aplacar
durante muito mais tempo a fúria sanguinária do rei Xariar põem em causa o
próprio dispositivo ficcional em que a trilogia assenta. Desgraçadamente, essa
fadiga e descrença parecem contaminar o resto do filme. Ao contrário dos dois
volumes anteriores, este é completamente dominado por uma única história (se
exceptuarmos o episódio breve e dispensável A Floresta Quente): a da
comunidade de passarinheiros que, entre Chelas e a Alta de Lisboa, se dedicam à
captura e ao treino de tentilhões que se defrontam em concursos de canto
renhidos. O registo, entre o documentário e a ficção, é aquele a que Gomes nos
habituou; os hábitos, rituais e disputas dos criadores são mostrados com detalhe
e empatia; não faltam momentos deliciosos, como a explicação sobre como a
antiga arte de ‘virar’ um tentilhão (isto é, ensiná-lo a cantar) beneficiou com
as novas tecnologias (CDs, MP3…). Porém,
o episódio arrasta-se muito para lá do interesse que consegue suscitar. Pior do
que isso: pela primeira vez nesta trilogia, a liberdade narrativa e a
criatividade, que chegam a ser intoxicantes nos volumes anteriores, dão lugar a
uma certa complacência. A ausência de ecos da situação política e social do
Portugal de hoje (os que existem são forçados, como a manifestação das forças
de segurança) contrasta também com volumes um e dois. Mas nada disto chega para
anular a impressão de que estas Mil e Uma Noites foram uma das aventuras mais
ambiciosas e loucas do cinema português dos últimos anos.
26 de outubro de 2015
19 de outubro de 2015
Caprice
A Festa
do Cinema Francês já conheceu melhores dias em Lisboa. O Cinéfilo Preguiçoso
lembra-se não só de sessões esgotadas, com a presença do realizador ou de algum
actor emblemático, mas também de olhar para o programa e concluir tristemente
que não ia ter tempo para ver todos os filmes que lhe interessavam. Este ano só
um filme pareceu suficientemente convidativo: Caprice (2015), realizado por Emmanuel Mouret. Não se percebe muito
bem por que razão este realizador (nascido em 1970) não é mais reconhecido pelo
público português. Os seus filmes evocam imediatamente duas influências
fortíssimas: Woody Allen e Éric Rohmer. Certas sequências e alguns temas deste Caprice parecem extraídos de filmes do
realizador nova-iorquino: a relação entre um homem desastrado e uma mulher
belíssima, mas aparentemente inatingível; os mal-entendidos e os actos
irracionais da vida sentimental de pessoas com idade para terem juízo; conversas
em restaurantes ou cafés; mesmo a presença do realizador como protagonista dos
seus filmes é alleniana. A influência de Éric Rohmer aparece aqui filtrada por
um tópico mais propriamente proustiano: a ideia de que as relações amorosas
mais duradouras são decididas por um acaso. Rohmeriano é também o contraste
entre as duas personagens femininas que dividem o protagonista: uma delas é «a
escolhida», uma actriz famosa e mulher perfeita que o protagonista há muito
desejava à distância, mas com quem as coisas parecem não funcionar com a
intensidade previamente imaginada; a outra é «a encontrada», uma jovem aspirante
a actriz, imprevisível e perigosa, que, contudo, não só percebe que a relação
entre os dois seria a combinação perfeita, como também acaba, através de uma
edição cuidadosa, por transformar num sucesso a peça aborrecida escrita pelo
protagonista. Ainda que herdeiro destas influências fortes, Emmanuel Mouret
produz um cinema único que, na sua aparente leveza e bom humor, nos deixa
sempre a pensar em temas sérios, como os meandros e as armadilhas do amor. Este
filme tem estreia prevista em sala.
12 de outubro de 2015
5 x 2
Uma vez
que a estreia em Portugal do último filme de François Ozon, Une Nouvelle Amie, tem vindo a ser
repetidamente adiada – enésimo exemplo da falta de respeito que certos
distribuidores demonstram pelos espectadores –, o Cinéfilo Preguiçoso decidiu
rever 5 x 2 (2004) e não esqueceu a
devida vénia à boa alma que inventou o DVD. Ozon é um cineasta hiperactivo e
ecléctico cujo apetite por temas controversos lhe trouxe alguma fama de
irreverente e até revolucionário. Contudo, a sua filiação remete-nos para o
melodrama e para a Nouvelle Vague, e a sua abordagem e registo são
essencialmente clássicos e muito devedores do cinema de género (thriller, musical). 5 x 2 pode ser descrito como o retrato de um casamento frágil. O
facto de o filme ser narrado ao arrepio da sequência cronológica dos eventos
nada acrescenta ou retira aos méritos ou impacto do filme, mas tem a vantagem
de anular, logo à partida, qualquer interrogação sobre o desfecho, permitindo
ao espectador concentrar-se nas personagens e no enredo – que, diga-se em abono
da verdade, não requer grande dose de perspicácia. Se exceptuarmos Valeria
Bruni-Tedeschi, excelente como sempre, o que fica de 5 x 2 é a história banal de uma mulher e de um homem que se unem,
têm um filho e se separam sem que qualquer razão evidente o justifique. Talvez
Ozon pretendesse precisamente erigir essa arbitrariedade em tema principal, mas
o resultado final fica claramente aquém de Swimming
Pool, Sous le Sable, Jeune & Jolie ou Dans la Maison.
5 de outubro de 2015
Haewon e os Homens
‘O tempo resolve tudo’, diz, numa das suas últimas cenas, a protagonista do filme Nobody’s Daughter Haewon (2013) (em francês, Haewon et les Hommes), realizado por Hong Sang-Soo. Se nem sempre resolve tudo, nos filmes de Hong o tempo traz pequenas mudanças e evoluções psicológicas. Isto sucede mau grado o tratamento pouco canónico que é dado à cronologia dos seus filmes. Também neste caso abundam as elipses, as bifurcações, as redundâncias e os limbos (por exemplo, os sonhos de Haewon), à semelhança do que se verifica em The Day He Arrives (2011), abordado pelo Cinéfilo Preguiçoso há três semanas. Outras semelhanças são a personagem do realizador de cinema tornado professor pela força das circunstâncias e o ambiente urbano de uma Seul discreta e isenta de traços distintivos, mas singularmente propícia a encontros e coincidências. Contrariamente a esse e a outros filmes de Hong, surge neste uma protagonista feminina forte e intensa cujo processo de assumir as rédeas da sua vida é o motor da narrativa. A maneira como Haewon enfrenta as suas relações sentimentais e as opiniões alheias, ou como deixa que o acaso e a vontade a conduzam a algo parecido com uma reconciliação com o mundo, faz lembrar Marie Rivière em O Raio Verde (1986), nesta que é uma das obras mais rohmerianas de um dos mais rohmerianos cineastas activos, tanto pelo modo como a protagonista se vai definindo através de confrontos verbais com outras personagens, como pela clarificação gradual da sua indecisão relativamente aos próprios desejos. Nobody’s Daughter Haewon e The Day He Arrives estão reunidos numa edição em DVD da France Inter integrada na colecção 2 Films de, que inclui obras de realizadores como Chantal Akerman, Philippe Garrel, Nanni Moretti ou Werner Herzog. Fica a sugestão.
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