Quando vemos Anatomia de Uma Queda (Justine Triet, 2023), premiado com a Palma de Ouro, recordamos inevitavelmente um filme que estreou em Portugal há mais ou menos um ano: Tár (Todd Field, 2022). Ambos têm como protagonista uma mulher forte que cai em desgraça por motivos que não ficam totalmente esclarecidos. Nos dois filmes, damos por nós a perguntar-nos se desconfiamos da protagonista apenas por ser uma mulher com sucesso – uma figura tão rara, que só pode ter conquistado esse estatuto de modo desonesto, manipulando todos, claro. Talvez por explorar mais a noção de narrativa, Anatomia de Uma Queda é menos intenso do que Tár. Enquanto no filme de Todd Field estamos dentro da cabeça em desintegração da protagonista, no de Justine Triet situamo-nos numa sala de tribunal, um local onde todos tentam impor a sua própria descrição dos factos, sabendo que ganhará não a verdade, mas a versão mais convincente – como aliás afirma explicitamente um dos advogados. Sandra Voyter (Sandra Hüller), a protagonista sobre quem recai a suspeita de ter matado o marido, um escritor frustrado que supostamente lhe faz a vida negra, é, além disso, uma romancista de sucesso – portanto, alguém que sabe contar histórias. Esta capacidade reforça a desconfiança que suscita: em tribunal, o advogado da acusação chega a ler passagens dos seus livros para a incriminar. Enquanto espectadores, temos acesso apenas a um momento da vida deste casal, através do registo sonoro de uma discussão, feito pelo marido, e mesmo esta situação deixa lugar a dúvidas. É o único momento em que vemos o marido em acção; de resto, ele é sempre descrito por outros. Em contraponto aos relatos da protagonista, temos os depoimentos contraditórios das testemunhas, mas também os do filho do casal, não menos contraditórios. O filho, deficiente visual desde um atropelamento que ajudou a minar a relação entre os pais, é uma personagem crucial, que durante grande parte do filme parece ser a única pessoa que quer descobrir a verdade, em vez de impor uma versão própria dos factos. Como nunca ficamos com a sensação de que sabemos o que realmente aconteceu, podemos descrever Anatomia de Uma Queda como um filme que reflecte sobre o conceito de narrativa, mas sem propor uma narrativa unificadora. O Cinéfilo Preguiçoso já tinha visto um filme de Justine Triet (Sibyl, 2019), com temas e personagens relativamente próximos (escritores, psicanalistas e realizadores), mas Anatomia de Uma Queda é bastante melhor, por se dispersar menos em caminhos secundários. Como já tantos sublinharam, Sandra Hüller é uma actriz notável, mas convém destacar também mais dois actores: no papel de advogado de defesa, Swann Arlaud, de quem já vimos também um desempenho (ainda mais) impressionante, no papel de Yann Andréa, em Quero Falar sobre Marguerite Duras (Claire Simon, 2021); e ainda, no papel do filho cego, o extraordinário Milo Machado Graner (que esperamos ver em breve no próximo filme de Arnaud Desplechin).