10 de março de 2024

Corpo e Alma

O Cinéfilo Preguiçoso segue com interesse uma rubrica do canal YouTube do site Konbini em que pessoas ligadas ao cinema escolhem DVDs das prateleiras de um videoclube parisiense e explicam as suas opções. Num destes vídeos, Wim Wenders elogiou Corpo e Alma (2017), um filme da realizadora húngara Ildikó Enyedi premiado com o Urso de Ouro no Festival de Berlim. Os elogios e a descrição do filme suscitaram a curiosidade do Cinéfilo Preguiçoso, que tratou de comprar o DVD. Corpo e Alma segue a história de Endre, director de um matadouro, e Mária, recentemente contratada para o posto de responsável pelo controlo de qualidade. Nas entrevistas de um inquérito interno, motivado por um furto na farmácia do matadouro, a psicóloga responsável descobre que Endre e Mária têm sonhos semelhantes, que giram em torno de um veado e uma corça, vagueando numa floresta gelada em busca de alimento. Esta descoberta, que aproxima Mária e Endre, nunca é usada para explorações metafísicas: ao contrário do que o título poderia sugerir, não há uma tentativa assumida de explorar o contraste entre a existência terrena das personagens e uma dimensão onírica ou transcendente. Os sonhos partilhados são um elemento que nunca é explicado e que as personagens aceitam sem demasiado espanto. Esta decisão corajosa de usar os sonhos como dispositivo narrativo encontra paralelo no comedimento estilístico do filme. Embora tenha um ponto de partida insólito, a trajectória convergente das personagens é relativamente linear, sendo mostrada com simplicidade, apesar dos inevitáveis recuos e mal-entendidos. A personagem de Mária apresenta traços habitualmente associados ao espectro do autismo ou transtorno obsessivo-compulsivo, e o filme ressente-se, por vezes, de uma caracterização quase unicamente baseada nestas características. Compreende-se, no entanto, que Enyedi queira mostrar um percurso de aprendizagem sentimental a partir do zero quase absoluto: Mária tem de aprender tudo, desde a importância do contacto táctil até ao poder da música, e alguns desses momentos são dos mais conseguidos. Ficamos com a impressão de que Corpo e Alma partiu de uma única ideia de argumento bem definida e que explora essa ideia com inteligência e contenção. (E quem nos dera que se pudesse dizer o mesmo de tantos filmes que soçobram devido ao peso das intenções e dos significados com que o cineasta os sobrecarrega!) É também um filme que sugere que uma mudança de vida pode depender de acasos e fenómenos que, de tão absurdamente arbitrários, remetem para uma dimensão lírica, que não nos cabe tentar explicar, mas sim mostrar e respeitar.