20 de março de 2016

Le Plaisir




Nos filmes compostos por episódios independentes, um dos principais dilemas com que o realizador ou realizadores se debate(m) é o equilíbrio entre a coerência do todo e a especificidade temática e estilística de cada segmento. Em Le Plaisir (1952, visto em DVD), a segunda longa-metragem que realizou após regressar a França, Max Ophüls resolve o problema com elegância e sagacidade. O denominador comum é declinado de maneira diferente em cada um dos três episódios, baseados noutros tantos contos de Guy de Maupassant: a busca do prazer confronta-se sucessivamente com a decrepitude, com a pureza e com a morte. A brevidade e  a economia narrativa do primeiro e do último segmento contrastam com as delongas narrativas e as digressões do segundo, que aí permitem a Ophüls entregar-se a uma saborosa incursão campestre digna de Renoir e fazer justiça ao carisma burguês e provinciano de algumas personagens secundárias, que deste modo ganham vida e superam a mera condição de caricatura. Compensando esta diversidade de registos, o estilo omnipresente de Ophüls (a que o Cinéfilo Preguiçoso já aludiu), caracterizado pelo dinamismo dos movimentos de câmara, confere coesão ao filme. Quer se trate de um salão de baile, de um bordel numa vilória normanda, ou de mansardas de artistas, a câmara desenha trajectórias que coincidem com as das personagens ou que as intersectam cirurgicamente, captando a vida na sua fluidez e efemeridade. O estratagema de usar como narrador o próprio Maupassant, dirigindo-se aos vindouros como quem conversa com amigos, é uma aposta arriscada mas ganha: pela sua empatia com as pulsões e as misérias da vida, pela sua recusa em moralizar, estes contos são intemporais, a tal ponto que a voz do autor soa tão familiar hoje como provavelmente soaria no século XIX ou em 1952. O elenco fabuloso (Jean Gabin, Danielle Darrieux, Daniel Gélin, Madeleine Renaud, Pierre Brasseur, Simone Simon…) recorda-nos a extraordinária abundância de actores geniais do cinema francês pré-Nouvelle Vague.

NOTA: Na próxima semana, por motivo de férias, não haverá Cinéfilo Preguiçoso. Estaremos de volta na primeira semana de Abril. Boa Páscoa.

13 de março de 2016

Walden



Se quisermos identificar uma ligação essencial entre o filme Walden: Diaries, Notes, and Sketches (1969), de Jonas Mekas (n. 1922), visto na Cinemateca, e o livro do escritor americano Henry David Thoreau com que partilha o título, teremos de pensar nas atitudes do realizador e do escritor perante a vida. Em Walden; or, Life in the Woods, Thoreau explica que decidiu passar uma temporada numa cabana nos bosques porque queria «viver deliberadamente». De modo semelhante, Mekas afirma a dada altura no seu filme: «I live because I make home movies/I make home movies because I live». É verdade que no filme de Mekas não encontramos a distinção entre Natureza e civilização que Thoreau sublinha. Ainda que tenha filmado várias sequências em locais próximos da Natureza, Mekas nunca perde a ligação à cidade. Natureza e cidade estão ao mesmo nível: Mekas dá tanta atenção à vida dentro e fora dos apartamentos de Nova Iorque (incluindo cenários mais mundanos como um concerto dos Velvet Underground, uma sessão de discussão com Allen Ginsberg, um acto de protesto de John Lennon e Yoko Ono, uma sequência interminável de um espectáculo de circo, imagens de Central Park em diversas estações do ano, um encontro com Dreyer ou um gato em contraluz) como a tudo o que fica fora da cidade, na floresta, em povoações mais calmas, em casamentos  bucólicos e em casas afastadas da civilização em que um cão a roubar comida de pássaro pode ser o acontecimento mais importante do fim-de-semana. Referindo-se a esta torrente de imagens aparentemente arbitrárias e repetitivas, «sem drama, nem suspense, nem romance», entrecortadas por ocasionais separadores com palavras, alguns dos quais podem ser páginas do livro de Thoreau, Mekas interpela directamente o espectador em jeito de explicação:  «Tu, espectador, que estás aqui dentro, enquanto lá fora a vida continua a correr só por inércia, fica e vê apenas [...]. A vida corre tão depressa, que é provável que estas imagens não durem muito mais tempo» (citado de memória). Deste modo, as actividades de viver e filmar (indissociáveis para Mekas), bem como de ver cinema, são descritas como forma de resistência à inércia das coisas que acontecem só por acontecer. Mekas filma deliberadamente para que algo consiga persistir. 

6 de março de 2016

Cavaleiro de Copas



Não se pode acusar Terrence Malick de ser um tarefeiro; cunho pessoal e visão estética nunca faltaram aos seus filmes. Cavaleiro de Copas/Knight of Cups (2015) mostra uma abordagem estilística reconhecível por quem viu The Tree of Life (2011) e A Essência do Amor/To the Wonder (2012), os filmes da fase pletórica de Malick (cinco longas-metragens em cinco anos, incluindo uma por estrear e uma em pós-produção), que se seguiu à sua fase parcimoniosa (quatro longas-metragens em trinta e dois anos). Esta abordagem caracteriza-se por movimentos de câmara vertiginosos, fragmentação da estrutura cronológica e dissonância entre a banda sonora e a imagem. O conteúdo, esse, relaciona-se sempre com o significado da vida, as consequências das acções e as recordações e o arrependimento que tais acções suscitam. Sente-se na maneira como Malick filma uma intenção de superar a distinção entre a forma e o conteúdo, mas esse propósito acaba por redundar numa submissão do enredo e das suas implicações morais à estética que o cineasta imprime. O que permanece depois do visionamento de Knight of Cups é uma sucessão de imagens e situações fugidias, independentes dos dilemas de consciência do protagonista (Christian Bale, um argumentista de Hollywood atormentado por problemas familiares e sentimentais e pela vacuidade da vida em geral) e do substrato filosófico/esotérico em que cabem The Pilgrim’s Progress, o Tarot e uma associação implícita à Divina Comédia («Nel mezzo del cammin…»). Apesar de ser menos grandiloquente do que The Tree of Life (felizmente, não há um único dinossáurio entre o elenco) e menos irritantemente superficial do que To the Wonder, e ainda que não faltem momentos genuinamente belos e surpreendentes, Knight of Cups confirma o beco sem saída por onde Malick parece ter voluntariamente enveredado. O facto de esse percurso resultar de uma tentativa de inovar e superar códigos e cânones só é paradoxal na aparência.