Cansado
de esperar pela estreia em sala do filme Hitchcock/Truffaut
de Kent Jones (2015), o Cinéfilo Preguiçoso comprou o DVD. Este documentário
explora as conversas que deram origem a um livro famoso e interessante não só
para cinéfilos e realizadores, publicado em Portugal com o título Hitchcock: Diálogo com Truffaut. O filme
organiza-se em torno de alguns excertos das gravações destas conversas. Isto revela-se
uma opção inteligente na medida em que o próprio tom de voz de Hitchcock
fornece enquadramentos diferentes a momentos particulares das entrevistas. Um
exemplo é a célebre citação segundo a qual «os actores são gado»: percebemos
que foi articulada com indignação e incredulidade porque um actor (Montgomery
Clift durante a rodagem do filme I
Confess, de 1952) quis «desequilibrar toda a estrutura espacial de um
filme» por ter dúvidas existenciais sobre um plano. Os excertos das gravações são
pontuados por depoimentos de realizadores como Martin Scorsese, David Fincher,
Arnaud Desplechin, Olivier Assayas ou James Gray, a propósito não só da
importância do livro nas suas vidas mas também dos filmes de Hitchcock que
consideram mais marcantes. Neste ponto, apesar de Hitchcock/Truffaut seguir uma estrutura muito semelhante à de Trespassing Bergman, distingue-se deste documentário
pela positiva devido ao facto de nestes depoimentos serem comentadas com
pormenor cenas específicas da obra de Hitchcock (nomeadamente de Vertigo, The Wrong Man e Psycho),
em vez de se privilegiarem aproximações impressionistas. A perversidade dos
interesses de Hitchcock tornou-se um lugar-comum que continua a ser repisado
nestes testemunhos, mas muito mais fascinantes são as referências à
inteligência formal do realizador e ao modo como o seu pensamento se traduz em
imagens: predomina a ideia de o realizador ser «um teórico do espaço» que vê cada filme como uma estrutura, um cineasta com uma mente «puramente matemática», capaz,
no entanto, de sobrecarregar o cinema de emoção. Só uma abordagem formal pode
verdadeiramente fazer justiça a toda a emoção e admiração que a obra deste
realizador suscita. Ao mesmo tempo, a tensão emocional com que vemos os filmes
de Hitchcock está presente nos depoimentos: talvez o ponto mais alto seja aquele
em que James Gray se refere à cena de Vertigo
em que Scottie faz Madeleine regressar dos mortos como o momento mais belo da
história do cinema – mesmo que nos ocorram outras cenas, como discordar? Hoje a
questão que, de acordo com o filme de Kent Jones, mais terá preocupado
Hitchcock – seria ele um artista ou só um entertainer?
– está mais do que resolvida: aliás, parece inacreditável que alguma vez tenha
havido dúvidas a este respeito.