O filme Paula Rego: Histórias e Segredos (Nick
Willing, 2017) tem sido um grande sucesso de público, com mais de três mil
espectadores nos primeiros onze dias de exibição só em Lisboa – e mais de cinco
mil em todo o país. Entre outros, dois elementos importantes e indissociáveis
terão contribuído para este êxito: em primeiro lugar, a questão do género e o
modo como é superada; em segundo, a informação biográfica. Um dos grandes
traços distintivos do filme é mostrar uma mulher que aceita tornar pública uma
conversa sobre assuntos que outras mulheres foram educadas a abordar apenas
em privado (enquanto conversas de homens
sobre temas semelhantes em público são mais comuns). Esta característica é
digna de nota na medida em que invalida as fronteiras convencionais entre
masculino e feminino, um pouco à semelhança da actividade artística conforme
descrita por Paula Rego: durante o filme a artista explica que a actividade de
pintar não só se processa numa dimensão muito diferente da de ser mãe ou mulher
(nomeadamente mulher de alguém), como precisa de se desligar destas
circunstâncias para se desenvolver e afirmar. Tanto no seu discurso como na sua
obra, Paula Rego trabalha sem medo questões consideradas sórdidas, feias e
dolorosas que pouca gente, homem ou mulher, tem a coragem de enfrentar e esse é
um dos motivos pelos quais é valorizada ao mesmo nível de artistas como Francis
Bacon ou Lucian Freud. A vertente biográfica deve ser encarada não com adesão
cega, mas com a mesma cautela que a questão do género na arte exige. Sobre os
segredos, convém ter em mente que estes têm o condão especial de se multiplicar
– por cada segredo revelado pode haver mil segredos escondidos. As histórias
que Paula Rego conta sobre a sua vida e o modo como se aplicam aos quadros são
mais importantes não quando tentam explicar biograficamente a obra da artista
mas quando acrescentam dimensões a imagens que há muito transcenderam a
biografia, assim ampliando a sua interpretação em vez de a fecharem. Um exemplo
marcante é o de Anjo, um quadro que
representa a figura aparentemente maligna (que o diga quem já viu este quadro
frente a frente) de uma mulher armada de uma espada e de uma esponja. Quando a
artista explica que vê esta figura não como carrasco mas como anjo-da-guarda,
percebemos imediatamente que, para Paula Rego, o que parece mais ameaçador pode
ser afinal o que mais a protege, sendo esta síntese tão difícil precisamente
uma das forças principais da vida e da obra da artista. O realizador, Nick
Willing, que se tem especializado em videoclips e séries televisivas, é filho
de Paula Rego e do artista inglês Vic Willing, cuja vida e falecimento
prematuro são também abordados no filme. Graças à obra e à presença intensa e
fascinante de Paula Rego, este documentário dispensa a originalidade formal
para se afirmar como um objecto interessante e plenamente merecedor da atenção
que está a atrair.