84 Charing Cross Road (David Jones,
1987), visto em DVD, baseia-se no livro com o mesmo título em que Helene Hanff, na altura (1970) uma
dramaturga americana de pouco sucesso, reuniu a correspondência que trocou
entre 1949 e 1968 com alguns funcionários da livraria londrina Marks & Co,
nomeadamente Frank Doel (Anthony Hopkins), o alfarrabista responsável pelas
compras do estabelecimento. Não encontrando em Nova Iorque, a preços acessíveis,
os livros esgotados que gosta de ler, a protagonista (Anne Bancroft) prefere
tornar-se cliente à distância da livraria inglesa. É um filme muito sui generis na medida em que Helene e as
personagens de Londres nunca se conhecem pessoalmente – todos os contactos se
desenvolvem por intermédio das cartas, dos livros e de pequenos presentes, num
tempo em que não há Internet, ainda se usa máquinas de escrever, ainda se fuma
nos filmes, ainda se escreve cartas, e a chegada do correio é um acontecimento
de grande importância. O filme The Lake
House (Alejandro Agresti, 2006), com Sandra Bullock e Keanu Reeves, ainda
que com mais complicações e incongruências, tem uma estrutura semelhante – nos
dois casos as personagens interagem apenas epistolarmente, mas enquanto em 84 Charing Cross Road partilham o mesmo
tempo, vivendo em espaços diferentes, em The Lake House os protagonistas partilham o mesmo espaço, embora em tempos distintos. De
notar também que em 84
Charing Cross Road não há grandes dramas emocionais – só o quotidiano
das personagens, que nem sequer são muito eruditas, autodescrevendo-se apenas
como pessoas que se interessam por livros. As deliciosas observações sobre os
livros procurados e lidos – autores vagamente obscuros ou textos difíceis de
encontrar de clássicos, como a prosa de John Donne, certos ensaios de William Hazlitt,
ou o diário de Samuel Pepys – convocam
todas as outras dimensões da existência. Um dos momentos mais comoventes é
aquele em que Helene, limpando o pó dos livros que tem nas estantes, depois de
receber uma má notícia sobre Frank Doel, percebe que a vida dela teria sido
muito mais pobre e infeliz sem aquela relação. Não há muitos filmes sobre a
importância dos livros nas nossas vidas. 84
Charing Cross Road destaca-se, assim, não só pela invulgaridade do tema,
mas também pela delicadeza e sobriedade da abordagem e pela humanidade das
personagens, aparentemente banais, mas, talvez precisamente por isso,
infinitamente interessantes. É um daqueles filmes que dificilmente ficará na
história do cinema mas que oferece numerosos motivos para ser admirado.