6 de outubro de 2019

On Dangerous Ground


Visto na Cinemateca, o filme On Dangerous Ground/Cega Paixão (Nicholas Ray, 1952) conta a história de Jim Wilson (Robert Ryan), um inspector de polícia de Nova Iorque que, após alguns incidentes em que usou violência para extorquir informação a criminosos, é enviado para investigar um homicídio num lugar distante. Durante esta investigação, contacta com três personagens – o pai agressivo e vingativo da vítima, o criminoso, que não passa de um adolescente assustado e simples de espírito, e a irmã cega deste (interpretada por Ida Lupino) – que o ajudam a pôr a vida em perspectiva. É uma história simples, que o realizador, sem dar qualquer passo em falso que desequilibre o filme para a via do dramalhão, nada faz para complicar desnecessariamente, preocupando-se antes em explorar bem as correntes que a definem. É muito interessante a forma como Nicholas Ray filma o percurso do protagonista pela cidade, para depois marcar bem o contraste com o seu trajecto fora desse ambiente. Apesar de todas as convenções que associam o perigo à cidade, Jim Wilson navega os possíveis perigos urbanos com a maior das facilidades, em perseguições de carro ou pelos passeios, entre a multidão, sendo até contactado por informadores. Quando chega ao campo, no entanto, o dangerous ground referido no titulo torna-se uma descrição concreta e literal. Jim Wilson confronta-se com uma paisagem montanhosa e irregular, não só com rochas, elevações e precipícios, mas também sufocada pela neve. Neste terreno, qualquer deslocação é difícil e perigosa: os pés enterram-se na neve; numa perseguição, o carro escorrega no gelo e capota; o próprio pai da vítima, sempre pronto para disparar, demonstra uma grosseria e uma agressividade que espelham a violência interior do protagonista, até ali sempre em risco de explodir. A sensação de estar deslocado de Jim Wilson é reforçada quando chega à casa isolada de Mary Malden (Ida Lupino), uma mulher cega. A entrada nesta casa repleta de pormenores bizarros, onde se destaca uma árvore erguida a meio da sala, é um dos momentos mais belos do filme. Depois de um acidente durante uma perseguição, o protagonista e o pai da vítima concluem que, como aquele é o único edifício da zona, o criminoso só pode ter-se escondido ali. Aproximam-se a medo, sendo recebidos por esta mulher sozinha numa casa às escuras, onde depois se movem com grande dificuldade, como se eles próprios não vissem, sujando o chão de neve, derrubando objectos e provocando até um pequeno incêndio. No início, os espectadores não vêem a cara da mulher, ouvindo só a sua voz, como aconteceria se também fossem cegos. A ausência de comiseração na atitude desta personagem feminina em relação a si própria e ao irmão contribui para o equilíbrio do filme. Apesar de a fotografia, associada à excelente banda sonora de Bernard Herrmann, explorar todos os contrastes visuais do preto e branco, realçando as trevas e as luzes da cidade, em contraste com a brancura da neve e o negro dos precipícios no campo, o universo do filme não explora contrastes marcados entre os polos do bem e do mal: a personagem do inspector não é totalmente boa; a personagem do criminoso não é inteiramente má; e a personagem da mulher cega não é fraca e indefesa, demonstrando antes uma compreensão objectiva da situação, que, paradoxalmente, ajuda as outras personagens a verem melhor. On Dangerous Ground é um filme simples –  sem ser simplista – onde o realizador não tenta parecer mais inteligente e mais sofisticado do que é. Devia haver mais filmes assim. Para terminar, saliente-se também que houve rumores persistentes segundo os quais Lupino teria substituído Ray na direcção do filme durante um período em que este esteve doente. A ser verdade, não terá sido a única vez em que o seu trabalho de realizadora ficou por creditar na ficha técnica de um filme.