1 de março de 2020

Barbara


Os filmes de cariz biográfico impõem sempre um dilema quanto à abordagem a adoptar: apresentar o biografado a um público que não o conhece, ou assumir que o espectador está minimamente a par da sua vida e da sua obra? Em Barbara (2017), sexta longa-metragem realizada por Mathieu Amalric (se não contarmos com um telefilme de 2010 baseado numa peça de Corneille), gravada pelo Cinéfilo Preguiçoso na RTP2, a opção é claramente a segunda. O filme mostra-nos Jeanne Balibar (premiada com o César de melhor actriz por este desempenho) no papel de uma actriz que vai encarnar Barbara num filme realizado por um fã bastante obsessivo (o próprio Amalric) desta cantora francesa, que gozou de um sucesso colossal no seu país mas que, por razões difíceis de explicar, é relativamente pouco conhecida além-fronteiras. Sucedem-se, num ritmo vertiginoso, imagens de arquivo, cenas em que a actriz, longe das câmaras, treina para o seu papel, e cenas da rodagem do filme dentro do filme. Nem sempre é fácil perceber se estamos a ver Barbara ou Balibar, nem se a personagem de Balibar está a vestir a pele de Barbara ou a ser ela mesma. Por trás disto tudo, a personagem do realizador faz parte da linhagem de tantas outras que Amalric interpretou: um pouco alucinado, intenso e sempre à beira de perder o controlo. Isto suscita alguma ambiguidade adicional: estamos a ver a personagem do realizador, a persona de Amalric, ou o realizador do filme? Estes abismos conceptuais confundem-se com a essência do filme, que parece querer ser uma reflexão um tanto desconexa e fragmentária sobre a impossibilidade de abordar uma artista tão complexa como Barbara, e nunca uma exploração das angústias criativas de um realizador ou uma meditação metaficcional, como 8 ½ (1963), de Fellini, ou Sinédoque, Nova Iorque (2008), de Charlie Kaufman. Ironicamente, a demonstração com sucesso da tese principal (nenhum filme pode fazer justiça a uma figura como Barbara) redunda também no fracasso de Barbara. Fica-se com a impressão de que a cantora Barbara, embora omnipresente durante a totalidade do filme, se furta sistematicamente às tentativas de a expor ao olhar das câmaras, sejam estas as câmaras reais ou as do filme dentro do filme. Restam as canções, quase todas muito belas, e que são tantas outras exortações para que as pessoas desistam dessa mania pueril de tentar transmitir algo de profundo e original a propósito de um artista.