7 de junho de 2020

Retrato de Rapariga em Chamas


Finalmente, uma sala de cinema aberta – e com um filme excelente: Retrato de Rapariga em Chamas (2019), com realização e argumento de Céline Sciamma, no Cinema Ideal. O enredo gira em torno de uma artista (Marianne/Noémie Merlant) que se desloca a uma ilha bretã para pintar o retrato de uma rapariga (Héloïse/Adèle Haenel) que deverá ser enviado para o seu possível noivo, com a condição de a retratada não saber que está a ser pintada, para não tentar sabotar um casamento em que não está interessada. A artista tem assim de se fazer passar por dama de companhia para poder observar a retratada e tentar pintá-la depois de memória. Esta limitação gera imediatamente uma reflexão interessante sobre o papel do olhar e da memória na representação artística. O debate recorrente ao longo do filme, iniciado por uma leitura das Metamorfoses, sobre as razões de Orfeu ter olhado para Eurídice quase no fim do percurso do seu resgate do mundo dos mortos é riquíssimo e nunca se resolve plenamente. Teria Orfeu feito aquilo por preferir a visão do poeta, dependente da memória, à visão do apaixonado? Não teria sido a própria Eurídice a chamá-lo, por preferir que assim acontecesse? Com uma dimensão metacinematográfica, a própria narração do filme faz-se em flashback, sendo o espectador e a protagonista de vez em quando confrontados com uma imagem de Héloïse caracterizada de um modo que só no futuro se concretiza (no momento da despedida e depois também num quadro da protagonista sobre o tema) e que, curiosamente, lembra não só a jovem morta de O Estranho Caso de Angélica (2010) de Manoel de Oliveira, mas também certos momentos do cinema de Brisseau. A propósito desta sobreposição de tempos no que toca ao amor, Sciamma falou também da influência de Mulholland Drive (2001), de David Lynch. Além de ser um filme sobre a arte e o amor, Retrato de Rapariga em Chamas, apesar de não poder ser descrito simplesmente como «filme sobre mulheres», está atento à condição feminina e inclui momentos entre mulheres pouco vistos no cinema (na cozinha, na casa da parteira que faz a interrupção da gravidez de uma das personagens, etc.). A realizadora descreveu  a sua ideia de partida sem a circunscrever a questões de género – filmar uma história de amor com igualdade, que faça justiça ao diálogo intelectual entre modelo e artista. Mas claro que a partir do momento em que Sciamma coloca uma mulher no papel de artista começa a trilhar um território pouco explorado. (Obviamente, lembramo-nos de filmes como A Paixão de Camille Claudel, de Bruno Nuytten, 1988, mas uma das questões principais desse filme é precisamente a desigualdade na relação entre a artista e Rodin.)  Não é um território muito visto no cinema sobretudo porque, durante muito tempo na História da arte, o papel de artista esteve predominantemente reservado aos homens, cabendo à mulher o papel de modelo. A actividade de muitas mulheres artistas foi não só dificultada, mas também, por não ser referida, apagada dos registos históricos. Retrato de Rapariga em Chamas é um filme belíssimo, com várias dimensões que não costumam ser abordadas no cinema e que merece ser visto em sala. Ainda bem que voltamos a ter essa liberdade.