Finalmente,
uma sala de cinema aberta – e com um filme excelente: Retrato de Rapariga em
Chamas (2019), com realização e argumento de Céline Sciamma, no Cinema
Ideal. O enredo gira em torno de uma artista (Marianne/Noémie Merlant) que se desloca
a uma ilha bretã para pintar o retrato de uma rapariga (Héloïse/Adèle Haenel)
que deverá ser enviado para o seu possível noivo, com a condição de a retratada
não saber que está a ser pintada, para não tentar sabotar um casamento em que
não está interessada. A artista tem assim de se fazer passar por dama de
companhia para poder observar a retratada e tentar pintá-la depois de memória. Esta
limitação gera imediatamente uma reflexão interessante sobre o papel do olhar e
da memória na representação artística. O debate recorrente ao longo do filme,
iniciado por uma leitura das Metamorfoses, sobre as razões de Orfeu ter
olhado para Eurídice quase no fim do percurso do seu resgate do mundo dos
mortos é riquíssimo e nunca se resolve plenamente. Teria Orfeu feito aquilo por
preferir a visão do poeta, dependente da memória, à visão do apaixonado? Não
teria sido a própria Eurídice a chamá-lo, por preferir que assim acontecesse? Com
uma dimensão metacinematográfica, a própria narração do filme faz-se em
flashback, sendo o espectador e a protagonista de vez em quando confrontados
com uma imagem de Héloïse caracterizada de um modo que só no futuro se
concretiza (no momento da despedida e depois também num quadro da protagonista
sobre o tema) e que, curiosamente, lembra não só a jovem morta de O Estranho
Caso de Angélica (2010) de Manoel de Oliveira, mas também certos momentos
do cinema de Brisseau. A propósito desta sobreposição de tempos no que toca ao
amor, Sciamma falou também da influência de Mulholland Drive (2001), de
David Lynch. Além de ser um filme sobre a arte e o amor, Retrato de Rapariga
em Chamas, apesar de não poder ser descrito simplesmente como «filme sobre
mulheres», está atento à condição feminina e inclui momentos entre mulheres
pouco vistos no cinema (na cozinha, na casa da parteira que faz a interrupção
da gravidez de uma das personagens, etc.). A realizadora descreveu a sua ideia de partida sem a circunscrever a questões de género –
filmar uma história de amor com igualdade, que faça justiça ao diálogo
intelectual entre modelo e artista. Mas claro que a partir do momento em que
Sciamma coloca uma mulher no papel de artista começa a trilhar um território
pouco explorado. (Obviamente, lembramo-nos de filmes como A Paixão de
Camille Claudel, de Bruno Nuytten, 1988, mas uma das questões principais
desse filme é precisamente a desigualdade na relação entre a artista e
Rodin.) Não é um território muito visto
no cinema sobretudo porque, durante muito tempo na História da arte, o papel de
artista esteve predominantemente reservado aos homens, cabendo à mulher o papel
de modelo. A actividade de muitas mulheres artistas foi não só dificultada, mas
também, por não ser referida, apagada dos registos históricos. Retrato
de Rapariga em Chamas é um filme belíssimo, com várias dimensões que não
costumam ser abordadas no cinema e que merece ser visto em sala. Ainda bem que
voltamos a ter essa liberdade.