Esta
semana vimos Anoitecer (2018), de László Nemes (realizador húngaro mais conhecido pelo filme O Filho
de Saul, 2015), disponível nos videoclubes das operadoras de
telecomunicações. Sob a égide de “A Morte e a Donzela” de Schubert, a acção do
filme começa numa loja requintada de Budapeste do princípio do século XX onde
uma rapariga com uma expressão intrigante, Írisz Leiter/Juli
Jakab, experimenta chapéus como se experimentasse identidades. Ela explica
gradualmente quem é, para grande consternação das vendedoras: veio de Trieste
para se candidatar a uma vaga de modista de chapéus, e desde sempre sonha
trabalhar naquele armazém que no passado pertenceu aos pais. Vamos descobrindo
que o passado da família de Írisz tem contornos trágicos – os pais morreram num
incêndio e ela foi enviada aos dois anos para um orfanato noutra cidade. O
facto de o filme nunca deixar claro se se tratou de um incidente anti-semita
cria uma camada de sentido adicional, e ainda mais universal e intemporal, em
que Írisz desempenha um papel semelhante aos
protagonistas de contos de fadas que, injustamente afastados da família e da
sua herança, regressam para reclamar o que é seu. Como nos contos de fadas, Írisz
não conhece plenamente a sua própria identidade. Quase sempre filmada de
costas, como se perseguida por nós e pelo passado que ignora, a protagonista
passa a maior parte do tempo em movimento, a fazer perguntas e a tentar
compreender; todas as outras personagens sabem mais do que ela sobre a sua
família, mas as respostas às perguntas que ajudariam Írisz e o espectador a terem
uma visão mais clara são sempre vagas, evasivas ou inexistentes. Nesta cidade,
o passado é comparável à sala do armazém de chapéus que ficou emparedada depois
da visita da única cliente, a imperatriz Sissi. Como que impelida pela força do
destino ou por uma espécie de memória de sangue, Írisz percorre o espaço simultaneamente sofisticado e bárbaro de Budapeste, onde, como comenta uma personagem, o horror
do mundo se esconde por baixo das pequenas coisas infinitamente belas; até ao
fim, ignora a função que vai cumprir. O filme decorre numa atmosfera de
pesadelo ou de fantasmagoria que alguns já compararam à dos textos de Arthur
Schnitzler, nomeadamente conforme adaptado por Kubrick em De Olhos Bem
Fechados (1999). Entre festas de jardim, pousadas de mau aspecto, rituais à
luz de archotes, aristocratas dissolutos, grupos de anarquistas perigosos e
indícios de conspiração e de sacrifícios humanos, Írisz descobre que tem um
irmão de quem nunca lhe tinham falado e esta descoberta e identificação libertam
as forças de destruição. Apesar de ter quase 140 minutos de duração, o que,
inevitavelmente, acaba por cansar, Anoitecer é um filme intenso e
absorvente que nos deixa a pensar sobre questões como o peso do passado e da
família, ou a medida em que cada um de nós cumpre um destino colectivo ou individual.