A certa altura de Retrato de Família com Teatro de Marionetas (Philippe Garrel, 2023), o pai morto (Aurélien Recoing) aparece num sonho da filha, Martha (Esther Garrel), e pede-lhe que não desista da companhia de teatro que ele dirigia. Noutro filme, isto seria o mote para um final comovente em que a filha, contra ventos e marés, faria renascer a companhia das cinzas (ou, neste caso, dos destroços que resultaram da destruição provocada por uma tempestade) para honrar a memória do pai. Não é nada disso que se passa: nas cenas finais, Martha e os seus dois irmãos seguem os seus caminhos, convencidos de que o futuro não passa por percorrerem as cidadezinhas de província a manipular fantoches. O cinema de Garrel é assim: as pessoas amam-se, juntam-se, separam-se, adoecem, morrem, insistem, desistem. A câmara mostra-as nesses momentos da vida, com uma naturalidade e uma secura que coexistem com um lirismo discreto. Estas características são comuns às longas-metragens de Garrel, tal como o são alguns elementos da equipa técnica, incluindo a equipa de co-argumentistas composta por Arlette Langmann, Jean-Claude Carrière (que entretanto morreu) e Caroline Deruas. A presença dos três filhos de Garrel no elenco, a par da de Deruas (ex-companheira do realizador e mãe de Léna Garrel) faz inevitavelmente pensar no paralelismo entre a vida real e o enredo, que acompanha personagens em busca de um percurso fora da tradição familiar e da tutela paterna. Porém, os méritos de Retrato de Família… não dependem de leituras autobiográficas. Trata-se, acima de tudo, de um filme admirável sobre a tensão entre o desejo de honrar uma tradição e o anseio de emancipação, que já era o tema principal do filme anterior de Garrel, O Sal das Lágrimas (2020). Outro aspecto que aproxima esta obra de outras do cineasta é a inteligência com que cria distanciamento graças a uma voz-off que soa por vezes algo anacrónica, como se se destinasse principalmente a relembrar-nos que estamos a ver cinema, e que não existe a veleidade de mostrar a vida “como ela é”. Outro tipo de distanciamento é o que se sente nas cenas, muito belas, em que os actores da companhia manipulam as marionetas durante os espectáculos. O contraste entre o trabalho físico das vozes e dos corpos e a simplicidade burlesca dos movimentos dos bonecos, que ocupam a parte superior do plano, evoca o trabalho técnico e o esforço subjacentes a qualquer filme, que se diluem no naturalismo aparente e na fluidez da narrativa. Retrato de Família com Teatro de Marionetas (inesperada tradução do título original, Le Grand Chariot) recebeu o Urso de Prata no mesmo Festival de Berlim que premiou Sobre L’Adamant e Céu em Chamas. Não se tem ouvido falar muito dele, mas é um dos melhores filmes que este ano têm estreado em sala.
Outros filmes de Philippe Garrel no Cinéfilo Preguiçoso: L'Ombre des Femmes (2015), O Amante de Um Dia (2017), O Sal das Lágrimas (2020).