Birdman ou (A Inesperada Virtude da
Ignorância) de Alejandro
G. Iñárritu (2014), visto recentemente na televisão, aborda o tema sempre
fértil do artista em crise. O que há nas crises existenciais que torna a sua representação
apelativa? São momentos em que o passado, o presente e o futuro embatem uns nos
outros e a ininteligibilidade do mundo, dos outros e dos nossos próprios actos
se expõe em toda a sua implacável crueza, enquanto nos questionamos sobre o que
há de real e de ficcional na nossa vida. (Como a dada altura o filme nos
recorda, Shakespeare, no início do século dezassete, explicou isto melhor do
que ninguém: «[life] is a tale/Told by an idiot, full of sound and
fury/Signifying nothing».) As personagens principais de Birdman são actores, figuras já de si permanentemente divididas
entre a ficção e a realidade. Ainda que o protagonista seja Riggan (Michael
Keaton), um actor de Hollywood em declínio que protagonizou blockbusters mas quer provar que é um
artista a sério com uma adaptação teatral de Raymond Carver, a figura de Mike
(Edward Norton) exprime mais enfaticamente a cisão entre real e ficção. Mike,
um actor com uma presença teatral impressionante, não sente qualquer
dificuldade no palco; contudo, não sabe existir fora dele: a sua vida reduz-se
ao teatro. Através do confronto destas duas personagens, impõe-se a ideia quase
paradoxal de que ser autêntico no teatro é inseparável de ser autêntico na
própria vida. Incapaz de concretizar esta ou qualquer outra síntese, o filme Birdman, no entanto, divide-se em dois. A
realização parece entretida com um história diferente, mais pretensiosa, menos
dolorosa, menos verdadeira: a de Iñárritu a tentar fazer arte pensando que a
arte é uma coisa decorativa, grandiloquente, espectacular, cheia de truques e
efeitos gratuitos, quando, na realidade, a arte que as personagens e os actores
representam se relaciona com as dificuldades mais comezinhas, quotidianas,
miseráveis e essenciais das suas vidas. Este filme foi premiado com quatro
Óscares da Academia, incluindo o de Melhor Filme, o de Melhor Realização e o de
Melhor Argumento Original. Michael Keaton viu escapar-se-lhe das mãos (para
Eddie Redmayne) o Óscar que este filme mais mereceria.