No
filme Museum Hours (Jem Cohen, 2012),
a protagonista viajava para a cidade de Viena para acompanhar os últimos momentos
de alguém (uma simples conhecida) em coma no hospital. No filme Columbus (Kogonada, 2017) também Jin (John
Cho) viaja da Coreia para a cidade no Indiana identificada no título, para
acompanhar os últimos dias do pai, um famoso historiador de arquitectura, igualmente
em coma no hospital. Enquanto esperam, os protagonistas destes dois filmes deambulam
pelas respectivas cidades com a atenção de um visitante de museu interessado. Na
Viena de Jem Cohen deparávamos com uma cidade cheia de rugosidades e de camadas
temporais sobrepostas inspirando uma meditação sobre a morte; na Columbus
de Kogonada encontramos percursos mais regenerativos, orientados para o futuro, entre a arquitectura modernista e quase utópica da cidade. A
partir destes percursos surgem os diálogos entre duas personagens muito
diferentes que ali se cruzam um pouco por acaso: o já referido Jin, e Casey (a extraordinária Haley Lu Richardson), que funciona
como uma espécie de guia não só da cidade mas também da vida do interlocutor. Ao
mesmo tempo que uma eventual faceta terapêutica da arquitectura é discutida por
Casey e Jin, as conversas sobre os edifícios que visitam e a simples presença
destes condicionam as trajectórias de ambos e ajudam-nos tanto a reflectir
melhor sobre as suas situações como a lidar com os seus traumas. Podemos, além
disso, dizer que tanto o filme de Kogonada como o de Jem Cohen são meditações
sobre a atenção, na medida em que encontramos em ambos um interesse muito
particular por elementos que facilmente passam despercebidos na vida de todos
os dias. (Em Columbus, aliás, a dada
altura uma das personagens interroga-se se teremos deixado de nos interessar pelo
que é importante e, portanto, de lhe prestar atenção.) Columbus gira em torno das relações pai-filho e mãe-filha. Se Jin
sempre teve uma relação (ou ausência de relação) problemática com o pai,
incapaz de dedicar ao filho a atenção que dedicava à arquitectura, também Casey
tem uma relação difícil com a mãe, em que há muito desempenha um
papel protector. O primeiro aprende com a segunda que às vezes é preciso ficar,
enquanto a segunda aprende com o primeiro que outras vezes é preciso partir.
Kogonada é o pseudónimo de um artista que, antes desta sua primeira
longa-metragem, alcançou alguma fama com os seus ensaios em vídeo sobre
realizadores como Bresson e Wes Anderson. Este filme revela influências cinéfilas,
em particular a de Ozu, que são declinadas quer em alusões visuais directas (os
planos intercalares filmados a partir de pequenas ruas transversais, tão
típicos do mestre japonês), quer em considerações sobre o dever e os laços
familiares. O principal mérito de Columbus
é conjugar o respeito pelos predecessores com a ambição, conseguida, de
criar um objecto original.
17 de junho de 2018
Irma Vep
É considerável o número de filmes que expõem as manobras e os mecanismos intrincados e caóticos da rodagem e produção cinematográfica. Invariavelmente, os filmes deste género privilegiam o conflito, o falhanço e a crise. Pense-se naquele que é provavelmente o maior deles todos (8 ½, Federico Fellini, de 1963), mas também em A Noite Americana (François Truffaut, 1973), O Estado das Coisas (Wim Wenders, 1982), Paixão (Jean-Luc Godard, 1982) State and Main (David Mamet, 2000), ou Cuidado com Essa Puta Sagrada (Rainer Werner Fassbinder, 1971). Este último, aliás, foi citado como influência directa por parte de Olivier Assayas, realizador de Irma Vep (1996), que o Cinéfilo Preguiçoso viu esta semana em DVD. Em Irma Vep, o filme dentro do filme, que não sabemos se chegará a ser concluído, é um remake de Les Vampires (1915), de Louis Feuillade, para cujo papel principal o realizador (Jean-Pierre Léaud) convidou a actriz Maggie Cheung – que, assim, no filme de Assayas, desempenha o papel de uma personagem com o seu nome. O motivo de interesse principal de Irma Vep é a maneira como Assayas filma Cheung, transplantada do seu habitat natural (o cinema de Hong Kong, essencialmente comercial, embora adulado pela crítica francesa), incapaz de se integrar no microcosmos da equipa de produção e filmagem por causa da barreira linguística, e alheia às intrigas, discórdias e paixonetas que a sua presença desencadeia ou acentua. Assayas consegue transmitir esse isolamento de forma discreta e inteligente, explorando simultaneamente os mecanismos misteriosos que permitem a um actor ou a uma actriz encarnar uma personagem, independentemente de esta ser muito ou pouco parecida com eles. Sintomaticamente, Cheung, depois de o realizador supostamente sofrer um esgotamento nervoso, acaba por ser afastada do filme (por ser chinesa, logo incompatível com o espírito parisiense do filme original), apesar de ser um dos poucos elementos profissionais e sãos no meio de uma equipa minada pela rivalidade, pela incompetência e pelas falhas de comunicação. Ainda assim, fica a sugestão de que o realizador conseguiu pelo menos aproximar-se do seu objectivo: os rushes visionados no final mostram cenas carregadas de um mistério e delírio visual próximo do filme de Feuillade, com uma Cheung digna de Musidora, que chegou a ser uma espécie de ídolo para os surrealistas. Num filme sobre um suposto erro de casting, é irónico constatar que Jean-Pierre Léaud parece ele mesmo deslocado (e não estamos a falar do deslocamento e alienação inerentes à persona cinematográfica de Léaud): além da péssima dicção de inglês, o seu estilo meio alucinado acrescenta níveis de desajuste e delírio que distraem em vez de acrescentarem alguma coisa ao filme. Note-se, no entanto, que em 2001 Léaud dará corpo com sucesso a mais um realizador em crise, no belíssimo Le Pornographe (Bertrand Bonello, 2001).
10 de junho de 2018
Mulheres do Século XX
Mulheres do Século XX (2016), visto em DVD, é o filme que
Mike Mills declarou ter feito para tentar compreender a mãe, depois de em 2010
ter realizado Beginners/Assim É O Amor, onde tentava compreender
o pai, um historiador de arte que foi director do Santa Barbara Museum of Art e
só assumiu ser homossexual aos setenta e cinco anos, cinco anos antes de
morrer. Perto do fim de Mulheres do
Século XX, a voz-off de Jamie (Lucas Jade Zumann), o filho-narrador afirma:
«Tentei explicar ao meu próprio filho como a avó era, mas foi impossível.» Um
dos pontos fortes do filme reside na consciência desta incompreensão e deste
fracasso – a ideia de que nem sempre somos capazes de entender as pessoas mais
importantes para nós – e nas soluções visuais e narrativas encontradas para lidar com essa
dificuldade fundadora. Dorothea Fields (Annette Bening), uma figura à Amelia
Earhart, revela-se refractária não só ao tempo, mas também a qualquer tipo de narração, explicação ou autodescrição, não
se percebendo bem se se trata de uma figura vazia ou de alguém que simplesmente
tem uma paixão maior do que as ferramentas ao seu dispor para a expressar, como
a dada altura se comenta a propósito da banda The Raincoats (que Dorothea,
sintomaticamente, não entende). Receando não ser capaz de educar o filho devido
à incomunicabilidade que a caracteriza, Dorothea pede ajuda a Abbie (Greta
Gerwig), Julie (Elle Fanning) e William (Billy Crudup), personagens que se
movem em torno da relação mãe-filho. Graças a esta «transferência de poderes» um
pouco a contragosto, Jamie é exposto a informação sobre o espírito do tempo (o
feminismo, o movimento pós-punk, o movimento new age, incluindo uma referência
à surpreendente intervenção de Jimmy Carter no discurso «Uma Crise de Confiança»), a
que Dorothea parece impermeável. Simultaneamente, essa transferência permite a
Mike Mills traçar um retrato histórico interessante dos Estados Unidos no
século XX, através da exploração da vida de todas estas personagens não só no
presente da acção (em 1979), mas também antes e depois desta data. Deste modo,
apesar de inspirado por uma incompreensão irresolúvel, Mulheres do Século XX funciona também como veículo de compreensão e
ilustra, de forma sóbria e muitas vezes tocante, a maneira como os afectos, o
acaso e as tendências de uma época contribuem para moldar a vida de cada
pessoa.
3 de junho de 2018
Nina
Qualquer filme biográfico sobre uma pessoa muito carismática corre o risco de se deixar deslumbrar pelo biografado e pode cair na tentação de achar que o carisma, por si só, chega para transformar essa pessoa numa personagem cativante e fazer um filme com interesse. Nina (2016), visto no videoclube de uma operadora de telecomunicações, sucumbe a esta tentação com estrondo e sem vestígios de luta. Ao passo que England Is Mine – Descobrir Morrissey (2017), mau grado as limitações apontadas, desenvolvia uma ideia legítima (mostrar o processo que transformou o jovem Steven no Morrissey dos Smiths), em Nina o espectador tem direito apenas a uma sequência de cenas desconexas, oscilando entre o passado e o presente, mas sempre centradas numa fase já decadente da vida da grande Nina Simone (final dos anos 80). Esta solução, além de não transmitir informação satisfatória sobre uma das figuras mais ricas do século XX, aproxima o filme do tom da telenovela. Parece crível que a realizadora, Cynthia Mort (mais conhecida como argumentista e produtora, por exemplo da série Roseanne), tenha querido transmitir a força interior de Nina Simone e a sua capacidade para contrariar o declínio artístico e físico, mas a maneira como o faz é tão frouxa que deita por terra qualquer boa intenção. A decisão de basear a linha narrativa numa relação entre duas pessoas muito diferentes – neste caso, com o enfermeiro Clifton Henderson (interpretado por David Oyelowo) –, além de convencional e de já ter sido explorada até à exaustão em muitos outros filmes, revela-se desastrosa, pelo facto de a segunda personagem parecer completamente nula do ponto de vista dramático. Talvez a única virtude deste filme seja demonstrar que a força, o talento e o carisma de Nina eram suficientemente grandes para sobreviver a tamanho cortejo de inépcias: Nina até ganha algum interesse quando, sem invenções nem filtros narrativos, mostra a cantora a actuar. Ao que parece, este filme conheceu várias vicissitudes, incluindo processos judiciais interpostos pela realizadora por estar descontente com decisões dos produtores. O Cinéfilo Preguiçoso não está interessado em esmiuçar estas questiúnculas, muito menos a controvérsia em torno da escolha de Zoe Saldana para o papel da protagonista, mas dá o benefício da dúvida a Cynthia Mort. Além disso, continuando interessado na grande Nina Simone, há-de ver em breve o documentário What Happened, Miss Simone? (2015, realizado por Liz Garbus), na esperança de obter resultados mais convincentes.
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