17 de junho de 2018

Irma Vep


É considerável o número de filmes que expõem as manobras e os mecanismos intrincados e caóticos da rodagem e produção cinematográfica. Invariavelmente, os filmes deste género privilegiam o conflito, o falhanço e a crise. Pense-se naquele que é provavelmente o maior deles todos (8 ½, Federico Fellini, de 1963), mas também em A Noite Americana (François Truffaut, 1973), O Estado das Coisas (Wim Wenders, 1982), Paixão (Jean-Luc Godard, 1982) State and Main (David Mamet, 2000), ou Cuidado com Essa Puta Sagrada (Rainer Werner Fassbinder, 1971). Este último, aliás, foi citado como influência directa por parte de Olivier Assayas, realizador de Irma Vep (1996), que o Cinéfilo Preguiçoso viu esta semana em DVD. Em Irma Vep, o filme dentro do filme, que não sabemos se chegará a ser concluído, é um remake de Les Vampires (1915), de Louis Feuillade, para cujo papel principal o realizador (Jean-Pierre Léaud) convidou a actriz Maggie Cheung – que, assim, no filme de Assayas, desempenha o papel de uma personagem com o seu nome. O motivo de interesse principal de Irma Vep é a maneira como Assayas filma Cheung, transplantada do seu habitat natural (o cinema de Hong Kong, essencialmente comercial, embora adulado pela crítica francesa), incapaz de se integrar no microcosmos da equipa de produção e filmagem por causa da barreira linguística, e alheia às intrigas, discórdias e paixonetas que a sua presença desencadeia ou acentua. Assayas consegue transmitir esse isolamento de forma discreta e inteligente, explorando simultaneamente os mecanismos misteriosos que permitem a um actor ou a uma actriz encarnar uma personagem, independentemente de esta ser muito ou pouco parecida com eles. Sintomaticamente, Cheung, depois de o realizador supostamente sofrer um esgotamento nervoso, acaba por ser afastada do filme (por ser chinesa, logo incompatível com o espírito parisiense do filme original), apesar de ser um dos poucos elementos profissionais e sãos no meio de uma equipa minada pela rivalidade, pela incompetência e pelas falhas de comunicação. Ainda assim, fica a sugestão de que o realizador conseguiu pelo menos aproximar-se do seu objectivo: os rushes visionados no final mostram cenas carregadas de um mistério e delírio visual próximo do filme de Feuillade, com uma Cheung digna de Musidora, que chegou a ser uma espécie de ídolo para os surrealistas. Num filme sobre um suposto erro de casting, é irónico constatar que Jean-Pierre Léaud parece ele mesmo deslocado (e não estamos a falar do deslocamento e alienação inerentes à persona cinematográfica de Léaud): além da péssima dicção de inglês, o seu estilo meio alucinado acrescenta níveis de desajuste e delírio que distraem em vez de acrescentarem alguma coisa ao filme. Note-se, no entanto, que em 2001 Léaud dará corpo com sucesso a mais um realizador em crise, no belíssimo Le Pornographe (Bertrand Bonello, 2001).