Visto
na RTP2, o documentário No Escuro do
Cinema Descalço os Sapatos (Cláudia Varejão, 2016), pedindo emprestado um
verso de Adília Lopes para o título, filma os bastidores da
Companhia Nacional de Bailado. O preto e branco parece acentuar a
condição preparatória das imagens, que, a partir do escuro, à margem das luzes
do palco, captam ensaios, correcções, comentários sobre a dificuldade de certos
movimentos, expressões de cansaço, dor e frustração, bem como alguns fragmentos
de espectáculos, geralmente filmados a partir de ângulos inacessíveis a um
espectador comum. Como no filme Ama-San (2016),
encontramos uma atenção peculiar aos momentos de repouso e distracção do corpo
de quem – bailarino ou mergulhadora – noutros instantes tem de desempenhar uma
coreografia precisa. No Escuro do Cinema
Descalço os Sapatos é um
documentário que, além de convocar a lembrança de outros filmes como A Dança, de Frederick Wiseman (2009),
sobre Le Ballet de L’Opéra de Paris, ou certos momentos de Um Verão de Amor, de Ingmar Bergman (1951), recorda algumas imagens
das artes visuais, como as bailarinas de Degas (frequentemente retratadas em
ensaios, momentos de abandono ou na expectativa da entrada em cena iminente) e a
série «As Avestruzes Dançarinas» de Paula Rego (1995). Deliberada ou não, a
ligação a estas figuras de Paula Rego efectua-se através da relação dos corpos
com o chão, complicada por todos os entraves que o peso e a gravidade podem
impor. Em Cláudia Varejão, talvez a relação com o chão assuma menos antagonismo.
Ao longo de todo o filme há muitos planos de pés e pernas – e também outros em
que estes estão estranhamente ausentes, apesar de continuarmos a ver corpos. Uma
das histórias mais impressionantes é a da bailarina que, ainda pequena, partiu
os dois pés e, a partir daí, compreendendo o valor e a função desta parte do
corpo, nunca mais na vida correu, «nem para apanhar o autocarro». Logo no
início do documentário, ouvimos um bailarino/coreógrafo explicar que os pés
estão assentes no chão, o torso está assente nas pernas, a cabeça está assente
nos ombros e este percurso demonstra que a terra sustenta as ideias. Na mesma
perspectiva, ter os pés bem assentes no chão ajuda a tornar claras as razões
para nos movimentarmos, sendo esta compreensão essencial para tornar os
movimentos nítidos e precisos. Tal como Ama-San,
No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos é
um documentário não só sobre os limites do corpo, mas também sobre a beleza e
as surpresas da sua superação.