16 de dezembro de 2018

Le Livre d'Image


A carreira de Jean-Luc Godard sofreu um número impressionante de metamorfoses nos 63 anos que passaram entre o seu primeiro filme, o documentário Opération Béton (1955), e o recentemente estreado Le Livre d’Image (2018). Se existe denominador comum, será a compulsão para reflectir sobre o mundo através das imagens, do som e da montagem, manifestada de modo evidente tanto nos filmes narrativos como nos de natureza documental ou ensaística. Le Livre d’Image aproxima-se claramente do registo e do modus operandi de Histoire(s) du Cinéma (1988-1998), consistindo numa colagem de imagens de arquivo e segmentos sonoros, com diferentes graus de manipulação. A divisão em cinco núcleos temáticos, explorando o simbolismo dos cinco dedos da mão, ajuda o espectador a organizar mentalmente o fluxo sensorial e semântico que o atinge, mas não conduz necessariamente a uma perspectiva mais global e integrada sobre uma eventual tese que o realizador quisesse transmitir. Mais do que a enunciação de um sistema ou de ideias próprias, Godard sempre privilegiou o trabalho de reflexão sobre o mundo através do cinema: dentro desta linha, Le Livre d’Image é uma cadeia de microteses, interrogações, paradoxos e provocações que nascem ou são ilustrados pela fricção entre as imagens e os sons. Cinquenta e oito anos depois dos jump cuts de À Bout de Souffle (1960), é ainda e sempre a montagem o instrumento godardiano por excelência, perdurando no realizador a convicção de que, da justaposição de duas impressões distintas, pode dialecticamente nascer algo de novo e fecundo. (Curiosamente, a montagem deste filme é co-atribuída a Godard e a três colaboradores, entre os quais Nicole Brenez, a conhecida historiadora e especialista em cinema experimental.) O capítulo final do filme distingue-se dos outros por ter um cariz mais narrativo e por incluir imagens originais, em vez de recorrer exclusivamente a arquivos. O enredo, baseado num romance de Albert Cossery, envolve lutas de poder num emirado fictício. O filme perde alguma coesão nesta fase, embora se entenda a intenção, e a pertinência dentro da dinâmica argumentativa do filme, de discutir a invisibilidade do cinema árabe no Ocidente e a inadequação das tentativas de compreender a realidade do mundo árabe pelos meios cinematográficos convencionais, coniventes com a perspectiva distorcida imposta pelos códigos e poderes ocidentais. Le Livre d’Image termina numa nota intensa e comovente: a voz de Godard, interrompida pela tosse, discorrendo (inesperadamente) sobre a necessidade de manter a esperança contra todas as evidências, e um trecho de Le Plaisir (1952), de Max Ophüls, em que uma personagem mascarada dança até desfalecer no chão de um salão de baile. Os cinéfilos sabem (e Godard sabe que eles sabem, ou deveriam saber) que esta personagem é um cavalheiro idoso que usa uma máscara na tentativa de se fazer passar por jovem e assim conservar a capacidade de seduzir as mulheres. Seria simplista pensar que Godard nos apresenta esta personagem como exemplo a seguir, convidando-nos a persistir na esperança, por mais ingénua que esta pareça depois de nos ter apresentado centenas de exemplos de atrocidades e falhanços (da humanidade e da imagem). O cinema de Godard sempre foi assepticamente isento de paliativos ou de prescrições. A imagem do dançarino que tomba e a do rosto chocado da sua parceira Gaby Bruyère são oferecidas ao espectador para que faça delas o que quiser. Cada fotograma de cada filme de Godard é um ponto de partida.

O Cinéfilo Preguiçoso regressa em Janeiro. Boas festas para todos.