O
Cinéfilo Preguiçoso costuma ver no cinema os filmes de Nuri Bilge Ceylan, mas,
desta vez, por causa dos 188 minutos de duração de A Pereira Brava (2018) e também por não ter ficado muito convencido
com Sono de Inverno (2014),
procrastinou um bocadinho. Felizmente, ainda foi a tempo. A Pereira Brava é um filme sobre um recém-licenciado com pretensões
a escritor que, terminada a licenciatura, se vê obrigado a regressar à casa dos
pais na sua aldeia de origem, no Oeste da Turquia, enquanto tenta arranjar
maneira de publicar o livro que escreveu e de prosseguir com a vida. Parece
haver um contraste acentuado entre as ambições elevadas de Sinan e a realidade sórdida
da aldeia, onde se destacam os problemas familiares causados pelo vício do jogo
do pai. O contraste e a discussão são, aliás, as formas que Sinan escolhe para
se relacionar com o mundo. Pressentimos que não deve ser um grande escritor observando-o
em interacção com diversos interlocutores: a mãe, antigos colegas de escola,
dois imãs, e (numa das cenas mais cómicas e mais conseguidas) um autor consagrado
que, atormentado por um princípio de enxaqueca, não mostra grande paciência
para o aturar. A intuição de ele ser um mau escritor não assenta, ao contrário
do que Sinan pensa, no facto de ele “não
gostar de pessoas” – há grandes escritores que nunca “gostaram de pessoas” –
nem no facto de o seu primeiro livro não vender, mas sim na sua preferência por
tópicos grandiosos abordados de modo abstracto, na sua vontade de moralizar, na
superioridade irónica com que agride os outros e nas falhas de compreensão que
revela. A maior ironia do filme, talvez suspensa nos momentos finais do
reencontro com o pai, relaciona-se precisamente com a cegueira do seu protagonista.
Sinan demora muito a perceber não só a complexidade da figura do pai (que vê
como totalmente negativa, apesar de o filme não o retratar apenas desse modo),
mas também as semelhanças do pai com ele próprio, ao ponto de, tal como o pai
trai todos para poder continuar a jogar, também ele cometer actos moralmente
condenáveis para poder publicar o primeiro livro. Do mesmo modo, parece escapar-lhe
a complexidade do seu espaço de origem, que também nós, através do seu ponto de
vista, vemos como feio, mesquinho e pejado de pistas falsas – até à cena final,
altura em que a sua beleza se torna evidente. Nesta secção do filme, percebemos
também que se Sinan não integrar todas as dimensões contraditórias do universo
que herdou e tem de recriar (na vida e na obra), corre o risco de se tornar,
tal como o pai, um falhado que teve de desistir dos seus próprios sonhos. Ostentando
alguns dos traços distintivos do cinema de Ceylan, como conversas muito longas entre
personagens antipáticas e insatisfeitas que testam a paciência do espectador, filmadas
quer em paisagens esmagadoras quer em interiores claustrofóbicos, ou os
contrastes – enganadores – entre o elevado e o mesquinho, o belo e o miserável,
a grandeza e a derrota, A Pereira Brava,
embora não propriamente agradável de ver, é um filme que, pelo modo comovente como expressa a complexidade que Ceylan
sempre tentou captar, não desmerece a comparação com outros bons filmes deste
realizador, como Climas (2006) e Era Uma Vez na Anatólia (2011). Os sons
da picareta dentro do poço que continuamos a ouvir mesmo durante o genérico
final sugerem, no entanto, que Ceylan percebe que fazer cinema, escrever um
livro e viver podem ser tarefas árduas e muitas vezes inglórias. Será que este poço
vem de Moonfleet (Fritz Lang, 1955),
outro filme em que a relação pai/filho está em questão? E o cão “perdido”, que
depois parece reaparecer em vários lugares estranhos, não virá de Stalker (Andrei Tarkovsky, 1979)?
Na
próxima semana não haverá Cinéfilo Preguiçoso, mas voltaremos a seguir à Páscoa.
Boa pausa para todos.