Visto
no cinema, A Verdade (2019), de Hirokazu Kore-eda (conhecido entre nós principalmente
graças a Shoplifters, de 2018), é um filme sobre uma actriz, Fabienne
(Catherine Deneuve), e a relação desta com a sua carreira e com a sua filha,
Lumir (Juliette Binoche). O facto de todas as personagens masculinas serem
secundárias, mesmo a de Ethan Hawke (marido de Lubir), reforça a centralidade
da protagonista, que é uma daquelas pessoas que, onde quer que estejam,
conseguem que tudo gire sempre em torno delas. Quando pensamos em filmes em que
a relação entre mãe e filha desempenha um papel importante, lembramo-nos
imediatamente de Sonata de Outono (1978), de Ingmar Bergman. Em comparação
com este, e apesar de a mãe do filme de Kore-eda também ser uma artista
egocêntrica, antipática, absorvida pela carreira e para quem a arte sempre foi
mais importante do que a vida, A Verdade é um filme onde a exploração do
espectáculo das emoções negativas é residual, na medida em que as personagens
principais, apesar de não se entenderem bem e de por várias vezes se envolverem
em confrontos verbais, não têm discussões de vida ou de morte, ainda que fique
bem claro que há questões complexas entre elas. Pensando no cinema de
Almodóvar, outro cineasta para quem a figura da mãe é importantíssima, podemos
até descrever A Verdade por contraste, como filme antimelodramático. (Não haverá,
aliás, uma relação de eco entre o título Tudo sobre a Minha Mãe (1999),
do realizador espanhol, e o título Recordações da Minha Mãe, do filme
dentro do filme de Kore-eda?) O estatuto da verdade é outro dos temas
principais deste filme. Lumir, argumentista nos Estados Unidos, regressa a
França para celebrar a publicação do livro de memórias da mãe. Quando o lê, no
entanto, conclui que a mãe, além de ter contado várias mentiras, suprimiu do
relato pessoas importantes, como se estas nunca tivessem existido. Ao longo do filme,
vamos percebendo, no entanto, que nem sempre as recordações da filha
correspondem à verdade. Assim como a mãe é uma actriz que representa mesmo na
vida e que usa tudo o que vive para alimentar a representação, a filha é uma argumentista
de cinema, alguém habituado a manipular acontecimentos e diálogos, e que chega
a escrever textos para a mãe e para a sua própria filha representarem na vida
real, quando é preciso sensibilizar alguém para alguma coisa. Também o filme em
que Fabienne participa, apesar de descrito como ficção científica, contém
elementos que espelham a verdade da relação desta com Lumir, nomeadamente uma
mãe que nunca envelhece e uma filha imperfeita. Como se depreende destas
descrições, a estrutura de A Verdade é complexa, a ponto de deixar a impressão de que está sobrecarregada de elementos que, por não serem explorados a fundo, correm o
risco de parecer decorativos e excedentários. Ainda assim, este filme, o
primeiro da extensa filmografia de Kore-eda realizado fora do Japão, desencadeia
uma reflexão interessante não só sobre a relação entre mãe e filha, ou sobre o
estatuto da verdade, mas também sobre um dos temas que este cineasta mais gosta
de trabalhar: as diferentes estratégias de sobrevivência a que as pessoas recorrem
perante as dificuldades da vida.