19 de setembro de 2021

Acidente

Entre os filmes de Joseph Losey que a RTP passou recentemente, o Cinéfilo Preguiçoso ainda tinha guardado no arquivo Acidente, de 1967. Este filme baseia-se num romance de Nicholas Mosley (1923-2017) com o mesmo título, adaptado por Harold Pinter na sua terceira colaboração (de quatro) com Losey. As outras foram em O Criado (1963), Modesty Blaise (1966) e The Go-Between (1971). A título de curiosidade, saliente-se que tanto Pinter como Mosley têm breves aparições como actores em Acidente. Enquanto o romance de Mosley assenta num relato na primeira pessoa por associação livre, o argumento de Pinter não só não privilegia uma perspectiva de primeira pessoa como também ignora as explicações das motivações psicológicas do protagonista. Deste modo, à superfície, o filme tem um enredo que explora inicialmente um triângulo amoroso que depois se transforma num quadrado, mas os espectadores percebem que as atracções entre as personagens não se processam exclusivamente entre os pólos masculino e feminino, mas também entre as personagens masculinas. Um resumo breve do enredo seria assim: Stephen (Dirk Bogarde), um professor de Oxford casado e à espera do terceiro filho, envolve-se com dois alunos: William (Michael York) e Anna (Jacqueline Sassard). Entretanto, Charley (Stanley Baker, que desempenhou o papel de protagonista em Eva), colega de Stephen em Oxford, também se envolve com Anna. O filme começa com um acidente de automóvel em que William morre, voltando depois ao início da história, mas apoiando-se numa cronologia fluida, que nem sempre nos permite perceber o que aconteceu antes ou depois. No fim, ouve-se outra vez o ruído de um acidente, o que sugere que estamos todos, espectadores e personagens, presos numa narrativa circular de que não conseguimos sair. Sem a manipulação explicativa de primeira pessoa, a personagem feminina parece funcionar como uma espécie de lugar seguro para a atracção e as tensões entre os homens se expressarem. Anna, aliás, tem um comportamento muito parecido com o do próprio protagonista, na medida em que se relaciona com vários homens sem nunca demonstrar grande ligação com eles, tal como o protagonista se relaciona com várias mulheres sem demonstrar afecto por elas. Poderíamos até considerá-la um duplo do protagonista. Os numerosos enquadramentos através de portas e janelas sugerem que as próprias personagens estão sempre a representar. A composição dos planos de Losey obriga os espectadores a estarem concentrados, para perceberem, entre tantos elementos presentes, a quais devem prestar mais atenção. Os diálogos de Pinter são tão lacónicos e concisos que quase impõem a necessidade de se reflectir sobre eles para se confirmar se algum significado importante não terá escapado. Uma das sequências mais interessantes do filme – a da tarde passada no jardim da casa de Stephen, com todas as personagens na relva – terá depois uma espécie de desenvolvimento no filme Providence (1977), de Alain Resnais, em que Dirk Bogarde também participa como actor. No filme de Resnais, a sugestão de que o enredo era fruto da imaginação de um escritor (John Gielgud) era muito explícita. Em Acidente, isso não passa de uma sugestão fugaz: durante essa tarde de convívio, Charley, que está a escrever um romance, comenta qualquer coisa como: “Escrever ficção é fácil. Por exemplo, olhando para as pessoas aqui presentes, bastaria descrevermos as histórias de que são personagens.” Pouco depois, no mesmo dia, passeando com Anna no bosque adjacente à casa, Stephen recomenda: “Cuidado com essa teia de aranha.” É isso que Losey e Pinter fazem em O Acidente: chamam a atenção para as teias de aranha em que as pessoas estão presas e que as obrigam a representar.