O Cinéfilo Preguiçoso aproveitou para ver a Double Bill desta semana na Cinemateca, onde foram exibidos os filmes Erotikon (Mauritz Stiller, 1920), com acompanhamento ao piano de João Paulo Esteves da Silva, e Angel (Ernst Lubitsch, 1937). Ambos giram em torno de um casal com um marido totalmente obcecado com a profissão e uma mulher que tem de se distrair de outros modos. A ironia instala-se logo no início de Erotikon, quando a mulher, depois de deixar à porta da universidade o marido, entomólogo famoso, puxa o caderninho em que apontou as tarefas do dia – 1. manicure; 2. ensinar o comerciante de peles a ser mais paciente; 3. subir aos céus com o barão Félix –, que têm de ser entendidas mais literalmente do que no início parece. Sempre hilariantes e surpreendentes, as ilustrações dos intertítulos, muitas delas de inspiração entomológica, dão o tom para este filme com personagens que têm aspirações existenciais e sentimentais surpreendentemente modernas. Estabelece-se um contraste entre o ambiente romântico, trágico e grandioso da ópera e do bailado, associado à mulher, e a atmosfera burguesa, em que se insere o marido. Para perturbar este esquema, no entanto, mesmo o marido dá mais importância às preocupações universitárias do que às convenções burguesas: recusa-se a participar num duelo para defender a honra enquanto não terminar o estudo dos escaravelhos azuis. Indiferentes a quaisquer preocupações associadas à respeitabilidade e aos bons costumes, todas as personagens acabam por conseguir o que querem através da substituição do par inicial por um quadrado. Tanto Erotikon como Angel adaptam textos prévios – o primeiro, a peça A Raposa Prateada, do húngaro Franz Herzeg; o segundo, uma peça do também húngaro Melchior Lengyel. No segundo caso, fazem-se algumas elisões e cortes no que toca ao passado e comportamento da protagonista que são concessões à moralidade vigente. Apesar disso, Angel mantém uma complexidade muitíssimo interessante, graças tanto à extraordinária encenação, que joga habilmente com quem sabe o quê, como ao impressionante desempenho de Marlene Dietrich, capaz de representar duas personagens diferentes numa só – por um lado, uma Lady casada com um político respeitadíssimo; por outro, uma mulher misteriosa que tenta enganar o tédio de modo sofisticado. Nesta história sobre um triângulo em que há dois homens que sentem uma proximidade inesperada ainda antes de descobrirem que já partilharam mais do que uma mulher, a surpresa é o facto de a personagem típica da mulher adúltera entediada ter afinal uma personalidade bem diferente das habituais Madames Bovary e Annas Kareninas. Devido à complexidade da história e ao carácter inesperado de certas situações, os espectadores poderão recordar um filme como Madame de… (Max Ophüls, 1953), em que também há um casal com uma relação pouco convencional. Tanto em Erotikon como em Angel, temos personagens que inicialmente parecem corresponder a determinados estereótipos, mas depois se individualizam pelas suas escolhas. Por não ser só irónico ou satírico, Angel é um filme muito melhor, mas continua a ser divertido ver Erotikon mais de cem anos depois da sua estreia, e não só por ser considerado a matriz das comédias de alcova de Hollywood da década de 1920; aliás, o próprio Stiller emigrou da Suécia para a América seis anos depois deste filme, embora da sua curta carreira além-Atlântico não conste uma única comédia.