5 de junho de 2022

Annette

Que Leos Carax gosta da grandiosidade e do artifício é algo que a sua filmografia, apesar de esparsa (apenas seis longas-metragens em trinta e sete anos), já demonstrou abundantemente. O seu último filme, Annette (2021), gravado na televisão e visto esta semana, confirma isso mesmo, e também a capacidade deste realizador de se reinventar: trata-se do primeiro filme falado em inglês e do primeiro musical da sua carreira. Mais do que um musical clássico, podemos falar em filme-ópera: o enredo, excessivo e inverosímil, é indissociável da encenação, também ela excessiva e repleta de efeitos visuais feéricos. Os protagonistas são um casal composto por um humorista (Adam Driver) e uma cantora (Marion Cotillard), que acaba por morrer num acidente de barco por culpa da negligência e brutalidade do marido. Na parte final do filme, ganha importância uma terceira personagem (Simon Helberg), um maestro que chegara a estar envolvido romanticamente com a cantora e que é contratado pelo viúvo para acompanhar as digressões da filha, Annette, uma bebé com capacidades vocais e melódicas prodigiosas. Como todos os filmes que apostam no excesso e na inverosimilhança, o ridículo espreita a cada esquina. O trabalho de realização de Carax passa por assumir aquilo que o filme tem de bizarro e disparatado, mas consegue evitar que este resvale para a palermice e para a arbitrariedade, graças a um conjunto de escolhas inteligentes. Citemos apenas duas. Em primeiro lugar, a maneira como gere as transições entre as canções – sempre uma questão delicada em qualquer musical –, por meio de diálogos quase naturalistas, mas com trechos melódicos e ritmados, sabiamente doseados, que favorecem a fluidez com as restantes cenas. Em segundo lugar, a opção de representar a bebé Annette por meio de uma marioneta é muito feliz, porque concentra todo o conteúdo fantástico e antinaturalista do filme num único objecto, o que equilibra o resto do enredo e as outras personagens, que, apesar dos desvarios e exageros, são dotadas de paixões e fraquezas humanas. As canções de Annette são compostas e interpretadas pelos Sparks, uma banda com décadas de carreira que foi recentemente objecto do documentário The Sparks Brothers (2021), realizado por Edgar Wright – por coincidência o autor de Last Night in Soho (2021), o filme de que falámos na semana passada. Os dois membros dos Sparks, os irmãos Ron e Russell Mael, são os argumentistas do filme, o que ajuda a explicar a coerência entre a banda sonora e a história, que dependem simbioticamente uma da outra. Annette não pretende transmitir qualquer mensagem moral, política ou outra. É um filme fiel ao espírito primordial do cinema, indissociável da intenção de deslumbrar e impressionar, mas não o faz através de truques ou artimanhas, nem tenta ser mais inteligente nem mais tortuoso do que o espectador. Na sua desmesura e artificialidade, este filme é aquilo que promete ser desde o seu arranque, assente num extraordinário prólogo em plano-sequência que inclui todos os actores, o realizador e os Sparks. Estes interpretam a canção “So May We Start”, onde se diz: «We've fashioned a world, a world built just for you/ A tale of songs and fury with no taboo».