É difícil falar em “cinema francês”, ou de outra nacionalidade, sem incorrer em generalizações pouco úteis. Contudo, parece incontestável que o cinema produzido em França nas últimas duas ou três décadas possui um conjunto de características e temas que, não sendo exclusivos, o distinguem de outras cinematografias, pela insistência com que se repetem. De vez em quando, surge um filme que, independentemente dos seus méritos, funciona como repositório desses assuntos, preocupações, tendências formais e até tiques de realização (por vezes irritantes). Os Passageiros da Noite (2022), realizado por Mikhaël Hers e estreado recentemente, passa-se em Paris durante o primeiro mandato de François Mitterrand e centra-se numa família composta por Élisabeth (Charlotte Gainsbourg, muito convincente, como sempre), pelos seus dois filhos e por uma jovem em dificuldades que é acolhida no apartamento familiar. Vendo-se obrigada a encontrar emprego depois de se separar do marido, Élisabeth é contratada como assistente telefónica de um programa de rádio nocturno – circunstância conveniente, dada a sua propensão para a insónia, mas que a obriga a cumprir horários pouco ortodoxos e a passar menos tempo com os filhos. O argumento descreve as tentativas, por parte das personagens, de encontrarem estabilidade profissional e sentimental. É um filme sobre vidas que estão a arrancar e vidas reinventadas, bem como sobre as agruras e convulsões associadas a esses processos. Os momentos mais conseguidos de Os Passageiros da Noite são aqueles em que vemos as personagens nos seus locais de trabalho, compenetradas nos gestos da sobrevivência quotidiana, ou no apartamento onde se cruzam por breves minutos, entre uma aula e um turno. As piscadelas de olho cinéfilas também são de assinalar: assiste-se a cenas de As Noites da Lua Cheia (1984), de Éric Rohmer, e de Le Pont du Nord (1981), de Jacques Rivette, ambas com a malograda actriz Pascale Ogier. Os Passageiros da Noite acusa algum esquematismo na maneira como as personagens são construídas, em particular o filho e a jovem sem-abrigo, que parecem saídos de um molde já usado até à exaustão. As interacções e os conflitos entre trabalho e vida privada, a crise da adolescência, as tentativas inglórias de singrar no meio artístico, são aqui tratadas de forma nem mais nem menos conseguidas do que em tantos outros filmes franceses. Embora estas comparações possam ser injustas ou ociosas, é interessante pensar na carga dramática e na profundidade que uma realizadora e argumentista como Mia Hansen-Løve, por exemplo, seria capaz de injectar nesta história. Não há mal nenhum na existência de tradições cinematográficas caracterizadas pela atenção a certos assuntos ou ambientes, mas já é mais problemático que a tradição seja cultivada através de uma repetição atávica de gestos formais e procedimentos que inibe a individualidade. Apesar de ter muitos motivos de interesse, Os Passageiros da Noite ressente-se disso mesmo, raramente descolando de uma certa mediania e do conformismo